ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

24.12.20

FOTOS COLORIDAS DO RIO DE JANEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX PELO PROCESSO PIONEIRO AUTOCHROME

Antes da popularização da fotografia colorida em papel, com o lançamento do filme Kodachrome em 1935 e do Agfacolor em 1936, já existia um processo pioneiro de fotos coloridas em placas de vidro, chamado Autochrome, patenteado em 1903 pelos Irmãos Lumière, os mesmos que descobriram o cinema.

A maior coleção mundial de fotografias Autochrome é a dos Archives de la Planète, organizada por Albert Kahn, animado pelo ideal da paz universal. Ele acreditava que o conhecimento das culturas estrangeiras encorajaria o respeito e as relações pacíficas entre os povos. Percebeu também que, em pouco tempo, sua época testemunharia uma mutação acelerada das sociedades e a desaparição de certos modos de vida. Assim, criou os Arquivos do Planeta e enviou dezenas de fotógrafos mundo afora para registrares as diferentes realidades culturais. Graças a esse projeto dispomos de fotografias coloridas pioneiras do Rio de Janeiro (e algumas de Recife) tiradas no remoto ano de 1909. As fotos do projeto foram digitalizadas e podem ser acessadas clicando aqui.

A autocromia, e seus imitadores, arrebataram um mundo ávido por cores. A chapa de vidro [...] podia ser usada em qualquer câmera comum. [...] Cada autocromo era uma imagem positiva única sem negativo (visível apenas contra uma luz de fundo ou como uma imagem projetada). Os fotógrafos de arte logo desistiram do processo, em razão das dificuldades inerentes à reprodução e à exibição. (Juliet Hacking (org.), Tudo sobre fotografia, Editora Sextante, pp. 276-7).

Dentre os fotógrafos em atividade no Rio de Janeiro, o único que empregou o processo Autochrome (autocromo), pelo que pude constatar (mas posso estar errado) foi Marc Ferrez. Você pode ler um artigo interessante sobre sua experiência com fotografias coloridas na Brasiliana Fotográfica clicando aqui. Transcrevo a seguir um trecho do texto do site:

“O fotógrafo Marc Ferrez (1843 – 1923) iniciou suas experiências com fotografia colorida, em 1912, utilizando as placas autocromos Lumière, primeiro processo industrializado para esse fim, lançado comercialmente pela fábrica francesa, em 1907. Dedicou-se à fotografia estereoscópica em cores e as primeiras imagens coloridas realizadas nesse período são diferentes das fotografias panorâmicas e de grandes obras públicas, produzidas por ele no século XIX e na primeira década do século XX. São imagens do interior de sua casa e de sua intimidade familiar [...]. Nesse momento, Ferrez também refez, em cores, algumas das fotografias de paisagens, edificações e monumentos que se tornaram clássicas em preto e branco, como a Pedra de Itapuca, vistas do Jardim Botânico, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro , o Palácio Monroe e a Pedra da Gávea, dentre outras.”

A seguir uma coletânea de fotografias coloridas do Rio de Janeiro obtidas pelo processo Autochrome.

1- FOTOS DOS ARQUIVOS DO PLANETA (1909)

Bairro de Santa Teresa, vendo-se o Castelo Valentim (centro-esquerda), prédio em forma de castelo que existe até hoje, e o Hotel Vista Alegre (direita) no terreno onde hoje está a clínica Saint Roman

Corcovado visto dos jardins da Avenida Beira-Mar, entre os bairros do Flamengo e Botafogo.

Vista do Bairro da Glória e Igreja da Glória a partir de Santa Teresa. À direita o Morro de Santo Amaro e ao centro a Rua de Santo Amaro.

Vista do Morro de Nova Cintra, que fica entre o Catete, Laranjeiras e Santa Teresa. 

Corcovado e Lagoa Rodrigo de Freitas vistos do Sumaré.

Santa Teresa: em primeiro plano à esquerda, Casa de Benjamin Constant; atrás, antigo casarão da União dos Economiários (UNEI) vendida em 2008 

2- FOTOS DE MARC FERREZ

Morro Dois Irmãos a partir da Praia do Leblon (cerca de 1912).

Portão principal do Jardim Botânico (cerca de 1912).

Palácio Monroe (cerca de 1912).

Pão de Açúcar visto do Morro da Urca (cerca de 1912).

São Conrado e sua igrejinha (cerca de 1920).




1.10.20

PASSEANDO COM PEDRO NAVA PELA GLÓRIA, SANTA TERESA E LAPA

Prédio onde morou Pedro Nava
Prédio onde morou Pedro Nava

Placa
PEDRO DA SILVA NAVA
1903-1984
Médico, escritor e poeta.
Mineiro de Juiz de Fora,
aqui residiu entre 1943 e 1984.
Sua obra destaca-se no
panorama cultural brasileiro. 

No início de seu quinto livro de memórias, Galo das Trevas, Pedro Nava rompe a sequência em que vinha contando sua vida até se formar em Medicina em Belo Horizonte e, antes de retomá-la agora sob o alter ego Egon, traz a narrativa para o tempo presente e como que passa em revista sua própria vida. Aí que ele descreve um passeio que costumava fazer, saindo de seu prédio na Rua da Glória, 190, onde até hoje uma placa indica que lá morou (fotos acima), pega a Rua Cândido Mendes, sobe a Hermenegildo de Barros até o mirante em Santa Teresa e desce pela Taylor até a Lapa. Foi esse percurso que reconstituí e mostro aqui. Em seguida o texto do Nava ilustrado com minhas fotos.


Meus passeios a pé pelo bairro seguem sempre os mesmos itinerários. Saio do meu 190 para a direita, transponho fachadas de arranha-céus. Na esquina, onde havia aquele café das madrugadas, existe hoje uma lanchonete. Virando à direita, começo a subir Cândido Mendes que gosto de chamar de D. Luísa. Essa dona que deu seu nome era a mulher de Joaquim Clemente da Silva Couto, nos terrenos de cuja chácara abriu-se o logradouro, em 1845. Meu tio Antônio Salles aí morou, no princípio do século, mais ou menos à altura dessa Casa da Suíça — onde residiram Rachel e Oyama. Assim, subindo, cada vez que troco os pés na marcha, sei que estou pisando lugares palmilhados pelos amigos, por meus tios Salles e Alice, por meu Pai quando vinha visitá-los. Galgo esse primeiro trecho fazendo essa reprodução do caminhado dos meus e vou calcando solos do ministro Hermenegildo de Barros, da prima Maricas do Juca Horta e suas filhas que moraram por aqui. Os passos de minha mãe também conheceram essas calçadas quando ela vinha ver a parenta. Povoando a rua de fantasmas, continuo minha ascensão. Nenhuma casa antiga, no princípio. Só os altos prédios, cujos térreos são ocupados pela alegria comercial de açougues, casas de ferragens, mais lanchonetes, barbearias, cabeleireiros femininos, drogarias, mercearias, farmácias. Entre elas, casa fechada, cada janela uma aparelhagem de ar-refrigerado, porta discreta e desde pela manhã o entra e sai de pares. Alta rotatividade. Estaco sempre a contemplar as fachadas dos belos sobradões de números 118 e 117. O último traz data na platibanda: 1882. 

Rua Cândido Mendes, 117

Rua Cândido Mendes, 118

Outra parada obrigatória é a esquina de D. Luísa com Hermenegildo de Barros que seguindo meu saudosismo gosto também de chamar rua do Chefe de Divisão Salgado. Numa das esquinas desse encontro e em terrenos ao lado, a demolição de duas antigas casas. Pela metragem quadrada dos lotes desnudados tem-se ideia do monstro que vai levantar-se no local

"tem-se ideia do monstro que vai levantar-se no local"

Consola a visão dos 17 e 19, casas datadas de 1896, dominando pela sua autenticidade. São de platibanda, dois andares e térreo habitável. A porta que sai do rés da rua tem a altura do térreo até a linha superior das janelas. Lembram certos sobradões da Bahia. 


Sobrados geminados à Rua Hermenegildo de Barros, 17 e 19


"A porta que sai do rés da rua tem a altura do térreo até a linha superior das janelas."


O 35 já é outro arranha-céu. Em frente, sem placa de numeração (mas entre o 32 e 36) ressalta um dos mais lindos chalés do bairro. As duas águas são alegradas na frente pelo rendado leve dos lambrequins e, na parte mais alta da fachada, duas janelinhas para arejamento do forro, conjugadas e protegidas por grade de serralheria tão cheia de curvas, alças, protuberâncias, bossas que nos seus restos de prateado o ferro se liquefaz e fica parecendo quebrado de espuma da crista de onda que fosse imobilizado na graça de sua posição — como em chapa de fotografia instantânea. 


"duas janelinhas para arejamento do forro, conjugadas e protegidas por grade de serralheria"


Vêm depois, do lado par, sobradões de portas e janelas com cercadura de granito. No lado ímpar eu vejo há dois anos o muro onde está gravada a capricho e a indelével piche a palavra corno e depois seta que aponta um portão. Acho reprovável indicação assim omissa: devia ser seguida da informação bravo ou manso — esclarecedora dos interessados. 


"sobradões de portas e janelas com cercadura de granito"


O 59 dir-se-ia que é sonoro como as clochetes da elevação, na missa. Esse zirzumbir prateado vibra retine nas serralherias das sacadas e do portão
Minha alma se entristece com a reforma aviltante por que passou o velho 67… Assim vou visitando meus amigos dessa subida. 


Rua Hermenegildo de Barros, 59. As serralherias (gradis) a que se refere o autor desapareceram.


"Minha alma se entristece com a reforma aviltante por que passou o velho 67." Observe que deste prédio só sobrou a fachada.


Paro diante dos gêmeos que viraram suas fachadas para a travessa Cassiano e de que um tem porta lateral para Hermenegildo, com o número 73. Parecem com nosso 106 de Aristides Lobo e pela travessa, acima, começa Ouro Preto. Longa extensão de construções reformadas, de paredões e baldios servindo para despejo de lixo — colchões, velhas poltronas eventradas, baldes furados, penicos descascados, bacias sem fundo, entulho despejo da vizinhança. Um pouco antes do 111, belo muralhão com escadas de pedra, conduzindo a terreno que derrama sua vegetação como gigantesco pote de avencas. Os degraus devem ter sido o acesso para casa ruída ou derrubada


Rua Hermenegildo de Barros, 73


"travessa, acima, começa Ouro Preto"

 "paredões e baldios servindo para despejo de lixo." Já não servem mais. A coleta de lixo e entulho tornou-se mais eficiente.

"Os degraus devem ter sido o acesso para casa ruída ou derrubada"


O dito 111 é um casarão modernizado. Está pintado dum verde estridente, com tinta plástica. Essas tintas dão colorido novo que acentua e aumenta os vermelhos, os amarelos, os azuis, os róseos, todas as cores que eram usadas na pintura dos prédios coloniais e imperiais. Sua aplicação, longe de desvirtuar, como que revela e salienta os caracteres das nossas velhas edificações. Mais lances de paredões de pedra que o tempo foi desconjuntando e entre cujas frestas irrompem árvores que sobem renteando o muro sobre o qual espalham digitações de raízes que são como mãos magras mas potentes a segurar os punhados de monolitos que sem sua força ruiriam. Voltando ao que mencionei antes, vale dizer alguma coisa sobre a maneira como são tratadas nossas construções pelos que as reformam. Uns querem modernizá-las e suprimem toda a fantasia, enfeite belle-époque que salientava-se nas fachadas e florescia em torno às janelas e portas. As cores álacres da pintura são substituídas por um cinzento de cimento cheio de faiscações duras de mica. Mais valia derrubar a residência antiga que desfigurá-la desse jeito. Outros pensam que respeitam o tradicional querendo melhorá-lo e acrescentando à simplicidade primitiva das casas desornadas o excesso que lhes parece mais requintado. Exageram nos painéis de azulejo, nos jarrões de louça sobre os muros, nas pinhas em cima dos parapeitos, nas estátuas vidradas dos beirais. Os dois exemplos abundam nessa subida de Hermenegildo e depois, em toda Santa Teresa. 


"O dito 111 é um casarão modernizado." O verde estridente a que se refere Nava há muito virou um azul claro.


"lances de paredões de pedra que o tempo foi desconjuntando e entre cujas frestas irrompem árvores"


É justamente assim que acaba esse lance de via pública em cujo ângulo fronteiro fica a moradia que parece abandonada, onde viveu o ministro cujo nome passou à rua. É uma construção arnuvô [art nouveau] cheia de vidros coloridos fazendo coberturas apoiadas em estruturas de ferro. Num canto, essas vidraças de cima a baixo parecem cobrir elevador ou escada de caracol. Tem o número 158, dois andares na frente e três no lado que fica em Visconde de Paranaguá. 



"É uma construção arnuvô cheia de vidros coloridos"


Próximo existe pequeno belvedere dando sobre níveis inferiores e abrindo vista fantástica sobre a baía. Tem bancos de pedra para os namorados e os desocupados. Geralmente ninguém no lugar ermo e propício aos ladrões. Dele vê-se o mar, a ponta dos aterros onde está o Aeroporto Santos Dumont e, mais próxima, a do que vem do Flamengo e onde começaram, recentemente, grande construção de cimento armado destinada, dizem, a restaurante. Ninguém. Nenhum veículo. Só passa o vento que vai para o largo ou dele vem mais fresco sobre a testa e o corpo molhado do suor da ladeira vingada. 

Belvedere

"bancos de pedra para os namorados e os desocupados"


A "vista fantástica sobre a baía" foi em grande parte bloqueada pelos prédios


Depois da parada nestes altos visão ouro e azul, começa-se a descida. Duas opções. Taylor ou Visconde de Paranaguá. Ambas profundamente Rio velho e tão bairro da Glória que sempre hesito. Taylor principia numa ladeira curta e mais escabrosa que a do resto da rua. Do lado direito, grandes barrancos e em frente, o 159, bela e pequena casa do início do século [hoje desaparecida]. Logo em seguida, ribanceiras, do mesmo lado, que servem para despejo de lixo. Toda a encosta da montanha está coberta de utensílios imprestáveis e policrômicos, de restos de papel, de comida, de roupas que repugnam e revoltam a quem olha de perto aquela imundice acumulada pela negligência, descaso e incapacidade de nossa limpeza urbana.


A encosta que no tempo do Nava servia para o despejo de entulhos agora está limpinha. Palmas para a Comlurb.


A rua Taylor tem esse nome por ter sido aberta nos terrenos da chácara do Chefe de Divisão João Taylor. Certo em parte alta dessa propriedade — o que determinou a forma de crossa do logradouro. Seus números de 139 a 135 oferecem, a quem vai descendo, primeiro a vista de casinhas típicas do princípio dos 1900 e depois ruínas de muro com sobras de gradil e portão. A paisagem do resto da rua até sua chegada à esquina de Lapa é cheia de velhas casas cada qual oferecendo detalhes arquitetônicos casuais ou intencionais. 


À esquerda as "ruínas de muro" referidas pelo autor. À direita ficavam as "casinhas típicas do princípio dos 1900", derrubadas.


No 120-A, por exemplo, uma escadaria barranco acima teria sido solução para resolver a subida mas o ziguezague dos lances de degraus de ferro se acumulando e empilhando acaba desenhando uma geometria esticada que parece sanfona puxada de cima, enquanto os corrimãos de metal, polidos pelo uso e cintilando ao sol, ficam como raios que se baralhassem simetricamente. O 120, desvirtuado por aperfeiçoamento, deixa de ser convincente apesar de ter ficado bonito e alegre: azul e branco, pinhas e estátua de louça. A varanda canta em cima, atulhada de gaiolas de pássaros. Logo sobrados geminados da maior dignidade — o 114 tendo na platibanda a data 1894. Mas a mais curiosa e interessante edificação da rua é o 110 de que a graça reside na varanda cujas janelas são encimadas e têm por baixo painéis de madeira trabalhada a serra tico-tico, ostentando vazios favoráveis à ventilação. Fazem renda de Veneza. Do outro lado escarpas do morro. Às vezes as modificações introduzidas num prédio pela sua quantidade e variedade são como improvisos musicais na sua surpresa e fantasia. Os sobrados no alto de vasta amurada de arrimo de números 100 e 96 oferecem essa sugestão. 


Escadaria barranco acima, em ziguezague

"O 120, desvirtuado por aperfeiçoamento, deixa de ser convincente apesar de ter ficado bonito e alegre." As gaiolas de pássaros na varanda não existem mais. Observe no meio do telhado uma estátua de louça (que você vê ampliada na foto abaixo).



"sobrados geminados da maior dignidade"


Rua Taylor, 110. Os "painéis de madeira trabalhada a serra tico-tico" não existem mais.

Painel de madeira trabalhado a serra tico-tico. Imagem capturada por Raul Félix do documentário O Tempo e a Glória de Joaquim Pedro de Andrade.


"Do outro lado escarpas do morro"

Todo o lado ímpar diante das edificações que estamos descrevendo é composto de barrancos cheios de capim e lixo até ao número 45, sobrado de 1887 [duas correções: o número é 47 e a data, 1897], quatro janelas de frente, as de cima enriquecidas pelas varandas com serralheria representando dragões simétricos que se afrontam pelo olhar de ferro, bico, peitos, patas, garras — sobre fundo desenhado por florões e curvas da mais elaborada elegância. 


Sobrado no número 45

1897

"dragões simétricos que se afrontam pelo olhar de ferro, bico, peitos, patas, garras"


Depois de atravessar Conde de Lages, Taylor mostra à frente um belo trecho da rua da Lapa, mas antes de nela entrar, apresenta ainda três edificações dignas de atenção. A fachada lateral de casa avarandada numerada como 11 de Conde de Lages que é o Hotel Canarinho, com quartos para rapazes; um chalé de três janelas datado de 1886, beirais rendados de lambrequins, bandeirolas de vidro central que se ilumina ao dia como safira e um óculo de ventilação do forro, tão tecido e trabalhado que parece uma aplicação redonda; finalmente os lados de outro chalé, um dos mais lindos do bairro e numerado por Lapa 230. 


Antigo Hotel Canarinho, hoje aparentemente invadido.

Chalé de três janelas datado de 1886. Os lambrequins dos beirais desapareceram.
Óculo de ventilação do forro

Outro chalé, um dos mais lindos do bairro


Virando à direita, um pequeno trecho desta rua que pelo aspecto e caráter já é a da Glória. Piso com atenção a buraqueira. Dupla atenção: primeira por saber que palmilho o velho caminho da Lapa do Desterro, aberto na colônia pelo governador Vasqueanes; segunda atenção, para não quebrar os ossos no logradouro que duvido tenha símile — pelo desmazelo dos responsáveis por seu calçamento e limpeza. É como Sapucaia que tivesse passado por terremoto ou bombardeio. Entra-se. Vê-se janela onde, como aparição de outras eras, como uma espécie de celacanto, há uma velha rebocada que chama pela fresta das portadas postas de meia jota. Dizem que essa relíquia de uma prostituição superada faz a vida ali há mais de quarenta anos, que é de tudo e pelo jeito ainda tem freguesia. Conheço-a de vista de meus passeios a pé e quando ela da janela me rejuvenesce com seu discreto sinal de cabeça (entra, simpático) — nunca deixo de cumprimentá-la grave e profundamente como a uma grande dama. Depois desta, outras instituições: Hotel Cid, Empire Hotel, Escola Deodoro com sua fachada imunda, os portões enferrujando e breve deixando cair no chão as duas belas moldagens metálicas das armas do antigo Distrito Federal; o arranha-céu no 122 onde mora o nosso José Olympio e chegamos ao chafariz mandado erigir em 1772 pelo vice-rei e capitão-general-de-mar-e-terra d. Luís de Almeida Soares Portugal Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas, conde de Avintes e marquês do Lavradio. 


"um pequeno trecho desta rua que pelo aspecto e caráter já é a da Glória"


Escola Deodoro, em melhor estado de conservação do que na época em que foi descrita por Nava.


"o arranha-céu no 122 onde mora o nosso José Olympio"


Esse chafariz é como brasão da rua da Glória e mostra sua antiguidade colonial. Servia para aguada das embarcações quando a orla marítima era no nosso logradouro como ficou até o fim do século passado. Minha mãe, sempre que vinha ao nosso apartamento, olhava pela janela e dizia que conhecera o mar ali, onde está aquele parapeito que vai até ao Relógio. Essa linha pode ser vista como enrocamento e cais em gravuras de Rugendas. Ela possuía no meio reentrância quadrada, como aparece numa daquelas estampas, para abrigo das pequenas embarcações. Foi aterrada quando afastaram o mar. Pois tive a prerrogativa de ver suas pedras ao demolirem o Elixir de Nogueira [ver foto aqui] para erguerem o arranha-céu pegado ao meu. Das janelas da sala de jantar do nosso apartamento eu me aprazia em ver cavar buracos para os alicerces do prédio atual. Pois deu pano para mangas a amurada que apareceu e que fui ver de perto, feita de lajes monumentais ainda incrustadas de conchas. Era a parte mais recuada do antigo recôncavo de que falamos e demarcação continuada no nosso terreno pelos paredões atrás da garage. Moro pois em cima de área roubada do mar. Seu limite primitivo era o fundo do nosso apartamento; depois foi a amurada da Glória; posteriormente na primeira pista curva depois de Augusto Severo; mais tarde na última passagem de rolamento antes do Aterro, agora nas lindes externas deste. Olho com melancolia pelas minhas janelas da frente e calculo que cerca de um quilômetro de largura já foi tomado às águas, aqui na Glória. 

Esse chafariz é como brasão da rua da Glória e mostra sua antiguidade colonial.

Velho chafariz do Caminho da Glória (1772). Do livro Terra Carioca: Fontes e Chafarizes de Armando Magalhães Corrêa


Das alturas que descrevemos e onde fica a casa que pertenceu ao ministro Hermenegildo de Barros pode-se baixar não só por Taylor (assim acabamos de fazer) como por Visconde de Paranaguá. Essa via pública começa naquela e é primeiro uma reta que parece ter procurado a rua da Glória mas que recuou diante das escarpas do morro onde deixou o fundo de saco dum impasse. Descendo pelo outro lado, inflete-se em ângulo reto de modo que sua segunda parte está para a primeira como a haste de um T maiúsculo. Seu início faz-se por cerca duns cento e cinquenta degraus separados de dez em dez por patamares em cujo centro está plantada uma árvore. Aos lados dessa descida, sobrados e casas do início do século, restos de muros ruindo, casarões se desmantelando, baldios cheios de lixaria e a alegria das crianças naqueles batentes onde elas levantam suas fantasias e rolam suas aventuras. Há uma ruína no lado ímpar, mostrando fundos para a ladeira e tendo frente provável em Conde de Lages, que desafia a gravura — tanta a poesia que foi dada aos paredões se desarmando pela erva fina dumas folhinhas da forma de salsa miúda toda cerrada e fechada como se fosse reunião de avencas postas em gramado na beira das platibandas, molduras e beirais. Visconde de Paranaguá termina em Taylor por arrimos de pedra, muros do lado par e pelo inevitável arranha-céu no lado ímpar. Vira-se naquela, segue-se pequeno trecho e já damos em Conde de Lages. 


"Seu início faz-se por cerca duns cento e cinquenta degraus": escadaria da Rua Visconde de Paranaguá



"Aos lados dessa descida, sobrados e casas do início do século"

"Visconde de Paranaguá termina em Taylor por arrimos de pedra, muros do lado par e pelo inevitável arranha-céu no lado ímpar." Na verdade, a ladeira termina, no lado par, com a dilapidada mansão do Visconde de Paranaguá, comprada por um industrial português nos anos 1930 e frequentada então pela alta sociedade. Conhecida como Casarão dos Amores, foi imortalizada por poema de Manuel Bandeira cuja primeira estrofe diz: "Um dia destes a saudade / (Saudade, a mais triste das flores) / Me deu da minha mocidade / No Palacete dos Amores." Pelo que pude constatar, foi ocupada por um "coletivo" de estudantes e hoje abriga eventos.

Aqui outrora retumbaram hinos. Quando havia prostituição ostensiva no Rio, o trecho da zona que vinha da parte sul — transversais do Catete, Russel — comunicava-se com o da parte que ia para o norte pelos braços abertos das ruas da Glória e Conde de Lages que desaguavam nas calçadas felizes de Lapa, Joaquim Silva, Morais e Vale, do glorioso beco dos Carmelitas. Essa zona alegre continuava um tanto diluída, por Mem de Sá e Riachuelo, escondia-se um pouco e reaparecia apoteótica nos quarteirões prodigiosos do Mangue — que puseram Blaise Cendrars bestificado e dizendo que não vira ainda nada igual nos bairros prostibulares das partes do mundo que conhecera. Eu e os meus colegas da Assistência Pública, veteranos do seu Serviço Externo, somos, com as donas de bordel, os souteneurs, os cafetões, os malandros, os gigis, os carachués [=rufiões] e as próprias putas, os grandes conhecedores desse ambiente. Lavagens de estômago de envenenadas com fenol, permanganato, oxicianureto, sublimado, creolina — praticamo-las nos randevus de luxo e valhacoutos mais canalhas; caras trabalhadas à navalha, lombadas abertas em belas incisões esguichando sangue, contusões de porrete, ferimentos penetrantes, tripas ao léu, comas alcoólicos, êxtases de éter sulfúrico, estupores de cocaína — transportamos às centenas para entregar ao Serviço Interno do nosso antigo e desaparecido H.P.S. E éramos bem tratados, respeitados, em ambientes que nunca teríamos a ousadia de entrar sem as imunidades do avental branco e da malinha de madeira do socorro-urgente. Sempre penso nesse mundo iluminado, poético, trágico, sinistro e orgástico quando nos meus passeios pela Glória entro — como íamos começando a fazer antes dessa digressão — quando entro, dizia, numa rua Conde de Lages despida das galas de seus antigos festivais e vazia de suas multidões de machos em cio. [...] O quarteirão que se percorre por Conde de Lages e sua angulação até a Glória modificaram-se completamente. A população é de pessoal do comércio, famílias modestas, estudantes, gente simples. As aves de arribação procuraram outros pousos. [...] As velhas casas impluíram por si ou foram demolidas. Sobraram sobrados e térreos do princípio deste século — inconfundíveis pelas fachadas arnuvô e a rua segue quieta e apaziguadora até as paredes laterais da Escola Deodoro e do arranha-céu em frente — batentes abertos sobre o antigo Boqueirão, o Caminho da Olaria — hoje nossa rua da Glória — velha de duzentos para trezentos anos.