Prédio onde morou Pedro Nava
PEDRO DA SILVA NAVA
1903-1984
Médico, escritor e poeta.
Mineiro de Juiz de Fora,
aqui residiu entre 1943 e 1984.
Sua obra destaca-se no
panorama cultural brasileiro.
No início de seu quinto livro de memórias, Galo das Trevas, Pedro Nava rompe a sequência em que vinha contando sua vida até se formar em Medicina em Belo Horizonte e, antes de retomá-la agora sob o alter ego Egon, traz a narrativa para o tempo presente e como que passa em revista sua própria vida. Aí que ele descreve um passeio que costumava fazer, saindo de seu prédio na Rua da Glória, 190, onde até hoje uma placa indica que lá morou (fotos acima), pega a Rua Cândido Mendes, sobe a Hermenegildo de Barros até o mirante em Santa Teresa e desce pela Taylor até a Lapa. Foi esse percurso que reconstituí e mostro aqui. Em seguida o texto do Nava ilustrado com minhas fotos.
Meus passeios a pé pelo bairro seguem sempre os mesmos
itinerários. Saio do meu 190 para a direita, transponho fachadas de
arranha-céus. Na esquina, onde havia aquele café das madrugadas, existe hoje
uma lanchonete. Virando à direita, começo a subir Cândido Mendes que gosto de
chamar de D. Luísa. Essa dona que deu seu nome era a mulher de Joaquim Clemente
da Silva Couto, nos terrenos de cuja chácara abriu-se o logradouro, em 1845.
Meu tio Antônio Salles aí morou, no princípio do século, mais ou menos à altura
dessa Casa da Suíça — onde residiram Rachel e Oyama. Assim, subindo, cada vez
que troco os pés na marcha, sei que estou pisando lugares palmilhados pelos
amigos, por meus tios Salles e Alice, por meu Pai quando vinha visitá-los.
Galgo esse primeiro trecho fazendo essa reprodução do caminhado dos meus e vou
calcando solos do ministro Hermenegildo de Barros, da prima Maricas do Juca
Horta e suas filhas que moraram por aqui. Os passos de minha mãe também
conheceram essas calçadas quando ela vinha ver a parenta. Povoando a rua de
fantasmas, continuo minha ascensão. Nenhuma casa antiga, no princípio. Só os
altos prédios, cujos térreos são ocupados pela alegria comercial de açougues,
casas de ferragens, mais lanchonetes, barbearias, cabeleireiros femininos,
drogarias, mercearias, farmácias. Entre elas, casa fechada, cada janela uma
aparelhagem de ar-refrigerado, porta discreta e desde pela manhã o entra e sai
de pares. Alta rotatividade. Estaco sempre a contemplar as fachadas dos belos
sobradões de números 118 e 117. O último traz data na platibanda: 1882.
Rua Cândido Mendes, 117
Rua Cândido Mendes, 118
Outra
parada obrigatória é a esquina de D. Luísa com Hermenegildo de Barros que
seguindo meu saudosismo gosto também de chamar rua do Chefe de Divisão Salgado.
Numa das esquinas desse encontro e em terrenos ao lado, a demolição de duas
antigas casas. Pela metragem quadrada dos lotes desnudados tem-se ideia do
monstro que vai levantar-se no local.
"tem-se ideia do monstro que vai levantar-se no local"
Consola a visão dos 17 e 19, casas
datadas de 1896, dominando pela sua autenticidade. São de platibanda, dois
andares e térreo habitável. A porta que sai do rés da rua tem a altura do
térreo até a linha superior das janelas. Lembram certos sobradões da Bahia.
Sobrados geminados à Rua Hermenegildo de Barros, 17 e 19
"A porta que sai do rés da rua tem a altura do térreo até a linha superior das janelas."
O
35 já é outro arranha-céu. Em frente, sem placa de numeração (mas entre o 32 e
36) ressalta um dos mais lindos chalés do bairro. As duas águas são alegradas
na frente pelo rendado leve dos lambrequins e, na parte mais alta da fachada,
duas janelinhas para arejamento do forro, conjugadas e protegidas por grade de
serralheria tão cheia de curvas, alças, protuberâncias, bossas que nos seus
restos de prateado o ferro se liquefaz e fica parecendo quebrado de espuma da
crista de onda que fosse imobilizado na graça de sua posição — como em chapa de
fotografia instantânea.
"duas janelinhas para arejamento do forro, conjugadas e protegidas por grade de serralheria"
Vêm depois, do lado par, sobradões de portas e janelas
com cercadura de granito. No lado ímpar eu vejo há dois anos o muro onde está
gravada a capricho e a indelével piche a palavra corno e depois seta que aponta
um portão. Acho reprovável indicação assim omissa: devia ser seguida da
informação bravo ou manso — esclarecedora dos interessados.
"sobradões de portas e janelas com cercadura de granito"
O 59 dir-se-ia que
é sonoro como as clochetes da elevação, na missa. Esse zirzumbir prateado vibra
retine nas serralherias das sacadas e do portão. Minha alma se entristece com a
reforma aviltante por que passou o velho 67… Assim vou visitando meus amigos
dessa subida.
Rua Hermenegildo de Barros, 59. As serralherias (gradis) a que se refere o autor desapareceram.
"Minha alma se entristece com a reforma aviltante por que passou o velho 67." Observe que deste prédio só sobrou a fachada.
Paro diante dos gêmeos que viraram suas fachadas para a travessa
Cassiano e de que um tem porta lateral para Hermenegildo, com o número 73.
Parecem com nosso 106 de Aristides Lobo e pela travessa, acima, começa Ouro
Preto. Longa extensão de construções reformadas, de paredões e baldios servindo
para despejo de lixo — colchões, velhas poltronas eventradas, baldes furados,
penicos descascados, bacias sem fundo, entulho despejo da vizinhança. Um pouco
antes do 111, belo muralhão com escadas de pedra, conduzindo a terreno que
derrama sua vegetação como gigantesco pote de avencas. Os degraus devem ter
sido o acesso para casa ruída ou derrubada.
Rua Hermenegildo de Barros, 73
"travessa, acima, começa Ouro Preto"
"paredões e baldios servindo para despejo de lixo." Já não servem mais. A coleta de lixo e entulho tornou-se mais eficiente.
"Os degraus devem ter sido o acesso para casa ruída ou derrubada"
O dito 111 é um casarão
modernizado. Está pintado dum verde estridente, com tinta plástica. Essas
tintas dão colorido novo que acentua e aumenta os vermelhos, os amarelos, os
azuis, os róseos, todas as cores que eram usadas na pintura dos prédios
coloniais e imperiais. Sua aplicação, longe de desvirtuar, como que revela e
salienta os caracteres das nossas velhas edificações. Mais lances de paredões
de pedra que o tempo foi desconjuntando e entre cujas frestas irrompem árvores
que sobem renteando o muro sobre o qual espalham digitações de raízes que são
como mãos magras mas potentes a segurar os punhados de monolitos que sem sua
força ruiriam. Voltando ao que mencionei antes, vale dizer alguma coisa sobre a
maneira como são tratadas nossas construções pelos que as reformam. Uns querem
modernizá-las e suprimem toda a fantasia, enfeite belle-époque que
salientava-se nas fachadas e florescia em torno às janelas e portas. As cores
álacres da pintura são substituídas por um cinzento de cimento cheio de
faiscações duras de mica. Mais valia derrubar a residência antiga que
desfigurá-la desse jeito. Outros pensam que respeitam o tradicional querendo
melhorá-lo e acrescentando à simplicidade primitiva das casas desornadas o
excesso que lhes parece mais requintado. Exageram nos painéis de azulejo, nos
jarrões de louça sobre os muros, nas pinhas em cima dos parapeitos, nas
estátuas vidradas dos beirais. Os dois exemplos abundam nessa subida de
Hermenegildo e depois, em toda Santa Teresa.
"O dito 111 é um casarão modernizado." O verde estridente a que se refere Nava há muito virou um azul claro.
"lances de paredões de pedra que o tempo foi desconjuntando e entre cujas frestas irrompem árvores"
É justamente assim que acaba esse
lance de via pública em cujo ângulo fronteiro fica a moradia que parece
abandonada, onde viveu o ministro cujo nome passou à rua. É uma construção
arnuvô [art nouveau] cheia de vidros coloridos fazendo coberturas apoiadas em estruturas de
ferro. Num canto, essas vidraças de cima a baixo parecem cobrir elevador ou
escada de caracol. Tem o número 158, dois andares na frente e três no lado que
fica em Visconde de Paranaguá.
"É uma construção arnuvô cheia de vidros coloridos"
Próximo existe pequeno belvedere dando sobre
níveis inferiores e abrindo vista fantástica sobre a baía. Tem bancos de pedra
para os namorados e os desocupados. Geralmente ninguém no lugar ermo e propício
aos ladrões. Dele vê-se o mar, a ponta dos aterros onde está o Aeroporto Santos
Dumont e, mais próxima, a do que vem do Flamengo e onde começaram,
recentemente, grande construção de cimento armado destinada, dizem, a
restaurante. Ninguém. Nenhum veículo. Só passa o vento que vai para o largo ou
dele vem mais fresco sobre a testa e o corpo molhado do suor da ladeira
vingada.
Belvedere
"bancos de pedra para os namorados e os desocupados"
A "vista fantástica sobre a baía" foi em grande parte bloqueada pelos prédios
Depois da parada nestes altos visão ouro e azul, começa-se a descida.
Duas opções. Taylor ou Visconde de Paranaguá. Ambas profundamente Rio velho e
tão bairro da Glória que sempre hesito. Taylor principia numa ladeira curta e
mais escabrosa que a do resto da rua. Do lado direito, grandes barrancos e em
frente, o 159, bela e pequena casa do início do século [hoje desaparecida]. Logo em seguida,
ribanceiras, do mesmo lado, que servem para despejo de lixo. Toda a encosta da
montanha está coberta de utensílios imprestáveis e policrômicos, de restos de
papel, de comida, de roupas que repugnam e revoltam a quem olha de perto aquela
imundice acumulada pela negligência, descaso e incapacidade de nossa limpeza
urbana.
A encosta que no tempo do Nava servia para o despejo de entulhos agora está limpinha. Palmas para a Comlurb.
A rua Taylor tem esse nome por ter sido aberta nos terrenos da chácara do Chefe
de Divisão João Taylor. Certo em parte alta dessa propriedade — o que
determinou a forma de crossa do logradouro. Seus números de 139 a 135 oferecem,
a quem vai descendo, primeiro a vista de casinhas típicas do princípio dos 1900
e depois ruínas de muro com sobras de gradil e portão. A paisagem do resto da
rua até sua chegada à esquina de Lapa é cheia de velhas casas cada qual
oferecendo detalhes arquitetônicos casuais ou intencionais.
À esquerda as "ruínas de muro" referidas pelo autor. À direita ficavam as "casinhas típicas do princípio dos 1900", derrubadas.
No 120-A, por
exemplo, uma escadaria barranco acima teria sido solução para resolver a subida
mas o ziguezague dos lances de degraus de ferro se acumulando e empilhando
acaba desenhando uma geometria esticada que parece sanfona puxada de cima,
enquanto os corrimãos de metal, polidos pelo uso e cintilando ao sol, ficam
como raios que se baralhassem simetricamente. O 120, desvirtuado por
aperfeiçoamento, deixa de ser convincente apesar de ter ficado bonito e alegre:
azul e branco, pinhas e estátua de louça. A varanda canta em cima, atulhada de
gaiolas de pássaros. Logo sobrados geminados da maior dignidade — o 114 tendo
na platibanda a data 1894. Mas a mais curiosa e interessante edificação da rua
é o 110 de que a graça reside na varanda cujas janelas são encimadas e têm por
baixo painéis de madeira trabalhada a serra tico-tico, ostentando vazios
favoráveis à ventilação. Fazem renda de Veneza. Do outro lado escarpas do
morro. Às vezes as modificações introduzidas num prédio pela sua quantidade e
variedade são como improvisos musicais na sua surpresa e fantasia. Os sobrados
no alto de vasta amurada de arrimo de números 100 e 96 oferecem essa sugestão.
Escadaria barranco acima, em ziguezague
"O 120, desvirtuado por aperfeiçoamento, deixa de ser convincente apesar de ter ficado bonito e alegre." As gaiolas de pássaros na varanda não existem mais. Observe no meio do telhado uma estátua de louça (que você vê ampliada na foto abaixo).
"sobrados geminados da maior dignidade"
Rua Taylor, 110. Os "painéis de madeira trabalhada a serra tico-tico" não existem mais.
Painel de madeira trabalhado a serra tico-tico. Imagem capturada por Raul Félix do documentário O Tempo e a Glória de Joaquim Pedro de Andrade.
"Do outro lado escarpas do morro"
Todo o lado ímpar diante das edificações que estamos descrevendo é composto de
barrancos cheios de capim e lixo até ao número 45, sobrado de 1887 [duas correções: o número é 47 e a data, 1897], quatro janelas
de frente, as de cima enriquecidas pelas varandas com serralheria representando
dragões simétricos que se afrontam pelo olhar de ferro, bico, peitos, patas,
garras — sobre fundo desenhado por florões e curvas da mais elaborada
elegância.
Sobrado no número 45
1897
"dragões simétricos que se afrontam pelo olhar de ferro, bico, peitos, patas, garras"
Depois de atravessar Conde de Lages, Taylor mostra à frente um belo
trecho da rua da Lapa, mas antes de nela entrar, apresenta ainda três
edificações dignas de atenção. A fachada lateral de casa avarandada numerada
como 11 de Conde de Lages que é o Hotel Canarinho, com quartos para rapazes; um
chalé de três janelas datado de 1886, beirais rendados de lambrequins,
bandeirolas de vidro central que se ilumina ao dia como safira e um óculo de
ventilação do forro, tão tecido e trabalhado que parece uma aplicação redonda;
finalmente os lados de outro chalé, um dos mais lindos do bairro e numerado por
Lapa 230.
Antigo Hotel Canarinho, hoje aparentemente invadido.
Chalé de três janelas datado de 1886. Os lambrequins dos beirais desapareceram.
Óculo de ventilação do forro
Outro chalé, um dos mais lindos do bairro
Virando à direita, um pequeno trecho desta rua que pelo aspecto e
caráter já é a da Glória. Piso com atenção a buraqueira. Dupla atenção:
primeira por saber que palmilho o velho caminho da Lapa do Desterro, aberto na
colônia pelo governador Vasqueanes; segunda atenção, para não quebrar os ossos
no logradouro que duvido tenha símile — pelo desmazelo dos responsáveis por seu
calçamento e limpeza. É como Sapucaia que tivesse passado por terremoto ou
bombardeio. Entra-se. Vê-se janela onde, como aparição de outras eras, como uma
espécie de celacanto, há uma velha rebocada que chama pela fresta das portadas
postas de meia jota. Dizem que essa relíquia de uma prostituição superada faz a
vida ali há mais de quarenta anos, que é de tudo e pelo jeito ainda tem
freguesia. Conheço-a de vista de meus passeios a pé e quando ela da janela me
rejuvenesce com seu discreto sinal de cabeça (entra, simpático) — nunca deixo
de cumprimentá-la grave e profundamente como a uma grande dama. Depois desta,
outras instituições: Hotel Cid, Empire Hotel, Escola Deodoro com sua fachada
imunda, os portões enferrujando e breve deixando cair no chão as duas belas
moldagens metálicas das armas do antigo Distrito Federal; o arranha-céu no 122
onde mora o nosso José Olympio e chegamos ao chafariz mandado erigir em 1772
pelo vice-rei e capitão-general-de-mar-e-terra d. Luís de Almeida Soares
Portugal Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas, conde de Avintes e marquês do
Lavradio.
"um pequeno trecho desta rua que pelo aspecto e caráter já é a da Glória"
Escola Deodoro, em melhor estado de conservação do que na época em que foi descrita por Nava.
"o arranha-céu no 122 onde mora o nosso José Olympio"
Esse chafariz é como brasão da rua da Glória e mostra sua antiguidade
colonial. Servia para aguada das embarcações quando a orla marítima era no
nosso logradouro como ficou até o fim do século passado. Minha mãe, sempre que
vinha ao nosso apartamento, olhava pela janela e dizia que conhecera o mar ali,
onde está aquele parapeito que vai até ao Relógio. Essa linha pode ser vista
como enrocamento e cais em gravuras de Rugendas. Ela possuía no meio
reentrância quadrada, como aparece numa daquelas estampas, para abrigo das
pequenas embarcações. Foi aterrada quando afastaram o mar. Pois tive a
prerrogativa de ver suas pedras ao demolirem o Elixir de Nogueira [ver foto
aqui] para erguerem
o arranha-céu pegado ao meu. Das janelas da sala de jantar do nosso apartamento
eu me aprazia em ver cavar buracos para os alicerces do prédio atual. Pois deu
pano para mangas a amurada que apareceu e que fui ver de perto, feita de lajes
monumentais ainda incrustadas de conchas. Era a parte mais recuada do antigo
recôncavo de que falamos e demarcação continuada no nosso terreno pelos
paredões atrás da garage. Moro pois em cima de área roubada do mar. Seu limite
primitivo era o fundo do nosso apartamento; depois foi a amurada da Glória;
posteriormente na primeira pista curva depois de Augusto Severo; mais tarde na
última passagem de rolamento antes do Aterro, agora nas lindes externas deste.
Olho com melancolia pelas minhas janelas da frente e calculo que cerca de um
quilômetro de largura já foi tomado às águas, aqui na Glória.
Esse chafariz é como brasão da rua da Glória e mostra sua antiguidade colonial.
Velho chafariz do Caminho da Glória (1772). Do livro Terra Carioca: Fontes e Chafarizes de Armando Magalhães Corrêa
Das alturas que
descrevemos e onde fica a casa que pertenceu ao ministro Hermenegildo de Barros
pode-se baixar não só por Taylor (assim acabamos de fazer) como por Visconde de
Paranaguá. Essa via pública começa naquela e é primeiro uma reta que parece ter
procurado a rua da Glória mas que recuou diante das escarpas do morro onde
deixou o fundo de saco dum impasse. Descendo pelo outro lado, inflete-se em
ângulo reto de modo que sua segunda parte está para a primeira como a haste de
um T maiúsculo. Seu início faz-se por cerca duns cento e cinquenta degraus
separados de dez em dez por patamares em cujo centro está plantada uma árvore.
Aos lados dessa descida, sobrados e casas do início do século, restos de muros
ruindo, casarões se desmantelando, baldios cheios de lixaria e a alegria das
crianças naqueles batentes onde elas levantam suas fantasias e rolam suas
aventuras. Há uma ruína no lado ímpar, mostrando fundos para a ladeira e tendo
frente provável em Conde de Lages, que desafia a gravura — tanta a poesia que
foi dada aos paredões se desarmando pela erva fina dumas folhinhas da forma de
salsa miúda toda cerrada e fechada como se fosse reunião de avencas postas em
gramado na beira das platibandas, molduras e beirais. Visconde de Paranaguá
termina em Taylor por arrimos de pedra, muros do lado par e pelo inevitável
arranha-céu no lado ímpar. Vira-se naquela, segue-se pequeno trecho e já damos
em Conde de Lages.
"Seu início faz-se por cerca duns cento e cinquenta degraus": escadaria da Rua Visconde de Paranaguá
"Aos lados dessa descida, sobrados e casas do início do século"
"Visconde de Paranaguá termina em Taylor por arrimos de pedra, muros do lado par e pelo inevitável arranha-céu no lado ímpar." Na verdade, a ladeira termina, no lado par, com a dilapidada mansão do Visconde de Paranaguá, comprada por um industrial português nos anos 1930 e frequentada então pela alta sociedade. Conhecida como Casarão dos Amores, foi imortalizada por poema de Manuel Bandeira cuja primeira estrofe diz: "Um dia destes a saudade / (Saudade, a mais triste das flores) / Me deu da minha mocidade / No Palacete dos Amores." Pelo que pude constatar, foi ocupada por um "coletivo" de estudantes e hoje abriga eventos.
Aqui outrora retumbaram hinos. Quando havia prostituição
ostensiva no Rio, o trecho da zona que vinha da parte sul — transversais do
Catete, Russel — comunicava-se com o da parte que ia para o norte pelos braços
abertos das ruas da Glória e Conde de Lages que desaguavam nas calçadas felizes
de Lapa, Joaquim Silva, Morais e Vale, do glorioso beco dos Carmelitas. Essa
zona alegre continuava um tanto diluída, por Mem de Sá e Riachuelo, escondia-se
um pouco e reaparecia apoteótica nos quarteirões prodigiosos do Mangue — que
puseram Blaise Cendrars bestificado e dizendo que não vira ainda nada igual nos
bairros prostibulares das partes do mundo que conhecera. Eu e os meus colegas
da Assistência Pública, veteranos do seu Serviço Externo, somos, com as donas
de bordel, os souteneurs, os cafetões, os malandros, os gigis, os carachués [=rufiões] e
as próprias putas, os grandes conhecedores desse ambiente. Lavagens de estômago
de envenenadas com fenol, permanganato, oxicianureto, sublimado, creolina —
praticamo-las nos randevus de luxo e valhacoutos mais canalhas; caras
trabalhadas à navalha, lombadas abertas em belas incisões esguichando sangue,
contusões de porrete, ferimentos penetrantes, tripas ao léu, comas alcoólicos,
êxtases de éter sulfúrico, estupores de cocaína — transportamos às centenas
para entregar ao Serviço Interno do nosso antigo e desaparecido H.P.S. E éramos
bem tratados, respeitados, em ambientes que nunca teríamos a ousadia de entrar
sem as imunidades do avental branco e da malinha de madeira do socorro-urgente.
Sempre penso nesse mundo iluminado, poético, trágico, sinistro e orgástico
quando nos meus passeios pela Glória entro — como íamos começando a fazer antes
dessa digressão — quando entro, dizia, numa rua Conde de Lages despida das
galas de seus antigos festivais e vazia de suas multidões de machos em cio.
[...] O quarteirão que se percorre por Conde de Lages
e sua angulação até a Glória modificaram-se completamente. A população é de
pessoal do comércio, famílias modestas, estudantes, gente simples. As aves de
arribação procuraram outros pousos. [...] As velhas casas
impluíram por si ou foram demolidas. Sobraram sobrados e térreos do princípio
deste século — inconfundíveis pelas fachadas arnuvô e a rua segue quieta e
apaziguadora até as paredes laterais da Escola Deodoro e do arranha-céu em
frente — batentes abertos sobre o antigo Boqueirão, o Caminho da Olaria — hoje
nossa rua da Glória — velha de duzentos para trezentos anos.