Gosta de se mostrar nas livrarias. O lugar mais digno para acomodá-lo em nossa casa é a biblioteca. Quem não tem poder aquisitivo para adquiri-lo, pode achá-lo em uma biblioteca pública. Lá está nas prateleiras o amigo solidário, esperando nossa visita para uma conversa útil. Mostra muitas coisas numa cumplicidade que informa, dá prazer, encanta. Faz aparecer paisagens impossíveis, que vão entrando na medida que uma página puxa a outra.
Livro xilografado, impresso com pranchas de madeira gravadas. Em rolos de papiro e também de pergaminho, no Egito. Nas telas de seda da China. Recolhido em manuscritos, no trabalho paciente e anônimo dos bibliotecários de Alexandria. Livro da sabedoria, do antigo Testamento. Filosófico, científico e literário. Repositório do pensamento humano, dos povos para os povos, de geração em geração, com seus rumores milenares.
Vem contribuindo para que o mundo mantenha portas e janelas abertas, o sol acenda manhãs, o vento sopre momentos que somam. Das formas primitivas às técnicas de editoração moderna com esse amigo, como o braço ao abraço, os seres humanos aprendem que os dias de exercitar a existência e conhecer o outro ficam mais humanos. O padre Antônio Vieira disse certa vez que “o livro é um mundo que fala, um surdo que responde, um cego que via, um morto que vive.” Acho que a fala da nossa maior figura da oratória sacra combina com o que eu li num pára-choque de caminhão: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.” Verdade. Hoje, na terceira idade, reli “O Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupéry, a seguir “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Saí depois para a vida rejuvenescido.
De cabeceira ou de bolso, o fiel amigo por vias e arredios, com seu poder de falar silêncios.
Fiquei certa vez abatido por conta da afeição que nutro por esse amigo. Quando morei na fazenda São Bernardo, nas imediações de Ferradas, chão onde nasceu o romancista do mundo Jorge Amado e o poeta Telmo Padilha, os livros que trouxe do Rio de Janeiro ficaram encaixotados até que pudesse comprar uma estante digna de recebê-los. E, numa noite sem estrelas, a chuva caiu pesada na terra centenária. O telhado velho da pequena casa não suportou o volume da água que corria por entre as calhas. Em pouco tempo, poças d’água formaram-se em vários cantos da casa por causa das goteiras.
No outro dia, encontrei molhados os caixões que guardavam velhos amigos. Lembro que apressado fui retirando do primeiro caixão “Além dos Marimbus”, de Herberto Sales, Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, “Uma Vida em Segredo”, de Autran Dourado, “Fábulas”, de La Fontaine, “Dom Quixote”, de Cervantes, “O País de Outubro”, de Ray Bradbury, “A Metamorfose”, de Kafka, “O Muro”, de Sartre, “Poesias”, de Manuel Bandeira, “O Salto do Cavalo Cobridor”, de Assis Brasil, e “História da Civilização Ocidental”, de Edward McNall Burns. Foram os livros mais atingidos pela chuva que caíra naquela noite cortada por relâmpago e trovoada. Páginas manchadas, letras borradas, capas danificadas. Ainda tentei salvá-los, espalhando-os abertos no passeio para que fossem aquecidos pelos raios de um sol tímido.
Aqueles livros haviam sido adquiridos com o dinheiro da mesada que o pai mandava para o moço do interior na Capital, onde cursava a Faculdade de Direito. Outros foram comprados nos meus anos de jornalista no Rio de Janeiro. Meu coração tinha um tremor quando descobria um desses amigos na vitrina, balcão ou prateleira de livraria.
À noite peguei no sono como um herói inútil. Acordei deprimido no outro dia. Aqueles que não consegui salvar tinham me ofertado ricos e prazerosos momentos de leitura, varando as madrugadas. Madrugadas do homem solitário, que, no silêncio da noite, lograva extrair sentidos da vida com aqueles companheiros. Jamais esqueci isso.