Crônica originalmente publicada em 18 de julho de 2005, pouco depois da morte de Villaça, em 19 de maio. Hoje, 31 de agosto de 2007, Villaça completaria 79 anos de idade. Em homenagem a esse grande memorialista e amigo estamos repetindo a postagem.
Claustro limpo, chão de sepulturas, chão-cemitério, chão de pedras. Paredes caiadas. Jardinzinho. O sino da portaria, voz do mundo. Claustro. O monge passeia pelo claustro. Eu sei que não vou ficar enterrado aqui, sei que nenhum desses túmulos é meu túmulo, sei que sou de outro país. Sei que vou partir.
Antonio Carlos Villaça, O nariz do morto
Antonio Carlos Villaça, O nariz do morto
Conheci o Villaça em 1992 quando ganhei um prêmio literário da UBE — Villaça fez parte da banca de jurados. Dias depois da premiação, telefonei para ele (eu já havia lido O nariz do morto), meio que inseguro: será que um escritor da fama do Villaça vai dar bola a um ilustre desconhecido como eu? Às primeiras palavras minhas, Villaça já se mostrou receptivo: "Ora viva! Ora viva!" Saudação que era a marca do Villaça. Combinamos almoço em restaurante do Catete.
Villaça era corpulento, devia ter uns 160 quilos, entrar no carro e sair, operação delicada. Eu, aspirante a escritor, diante de "monumento" da literatura, precisava impressionar, ostentar minha "cultura". Falei falei de um fôlego só. Na hora do cafezinho, Villaça educadamente deu a entender: aquele bombardeio deixara-o meio atordoado. Grande Villaça!
Em agosto Villaça comemorava o aniversário, sempre em algum restaurante. Villaça, apetite pantagruélico — desfia rosário de restaurantes e pratos suculentos em capítulo do Degustação: "Filé de peixe com molho de camarão, pirão de batata, filé mignon com fritas. Vinho português. Pêssego em calda com queijo. Ou torta. Licor." Vinha um monte de gente ao aniversário do Villaça, ala inteira do restaurante tinha que ser reservada, cada qual pagava sua conta.
Lembra-me o aniversário de 1995, numa Parmê que existiu alguns anos na Rua das Laranjeiras. Nos jornais, manchetes garrafais e fotos (horripilantes) do massacre de Vigário Geral. Anotei na agenda (eu que não tenho nem um por cento da memória fotográfica do Villaça) os nomes de meus companheiros de mesa: Sinésio Pires Cavalcanti, autor de Lembranças de um fuzileiro naval. Leandro Tocantins, autor de Formação histórica do Acre e de dois livros de memórias. Nilsson Pena (assim anotei na agenda, não sei se escrevi certo), cenógrafo, amigo de Bidu Saião, freqüentador dos saraus de Laurinda Santos Lobo. Incrível a capacidade de fazer amigos do Villaça. Quantos terão ido ao seu sepultamento? Eu próprio não fui — vim a saber de sua morte com dias de atraso.
Na época em que convivi com Villaça, residia ele na sede do Pen Clube (do qual era vice-presidente), à Praia do Flamengo. Passava os dias na biblioteca, cercado de livros, o paraíso de Borges (e de todo amante da literatura). "Aqui estou no mirante do Flamengo. Nunca antes morei assim tão perto do mar. Agora, estou no meu mirante solitário, diante do mar. E vejo a entrada da barra, o Pão de Açúcar". Visitei-o várias vezes no mirante.
Certa vez, eu e um amigo desatamos a questionar, como é que Deus permite tanto mal no mundo, tantas doenças, crimes, Holocausto? (Afinal, Villaça passara período da vida no convento, em busca de Deus). Ao cabo de nossa diatribe, Villaça simplesmente retruca: "Vocês estão querendo fazer o inventário do mundo!" E propôs que descêssemos a paragens mais amenas.
Mas o grande Villaça não estava alheio ao problema da teodicéia. No Degustação, escreve: "A presença do sofrimento no mundo sempre me pareceu uma provocação, um desafio. O sofrimento não é um problema: é um mistério." E mais adiante prossegue: "Eu me pergunto: como afirmar que Deus é bom, quando entramos num hospital? Como falar do amor de Deus a uma mulher cujo filho é idiota, simplesmente porque a mãe contraiu rubéola durante a gravidez? Como falar de Deus a este rapaz que a poliomielite transformou num paralítico? Como falar do amor diante de um campo de concentração? Diante de um hospício? Diante da morte?"
Sua memória, prodigiosa. Eu gostava de levá-lo a passear em meu automóvel pela Zona Sul do Rio de Janeiro. Passávamos por um edifício e o Villaça lembrava: aqui morou (digamos) Carlos Lacerda no período de não sei quando. E assim ia ele apontando as ex-moradas terrenas de homens ilustres que agora habitavam a morada celeste. Villaça dispensava as agendas. As anotações. O computador. A Villaça, bastavam-lhe a velha máquina de escrever e a memória.
Sua pobreza, franciscana. Villaça, tipo do homem que dedicou a vida às coisas do espírito. "A grande experiência da literatura é a experiência da liberdade. A literatura para mim é a liberdade. Ser escritor é, antes e acima de tudo, uma posição diante da vida." Não constituiu família, não amealhou bens. Parecia-me que usava sempre o mesmo terno, surrado — ou seriam vários ternos de mesma aparência? À semelhança do Quintana, morou anos num hotel, o Hotel Bela Vista, em Santa Teresa.
Por ironia do destino, quase ao final da vida, em 2003, ganhou um prêmio polpudo, o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. Apesar da bolada, terminou os dias "despejado" (?) do Pen Clube, em Casa de Repouso no Caju, vítima de depressão... Onde foi parar aquela dinheirama toda?
Em fevereiro de 1996, Villaça telefonou, convidou-me para almoçar, e frisou: hoje eu pago a conta. Estava irritado, inseguro. Por dinheiro (contou-me) aceitara ficar mês e meio enfurnado numa universidade no interior do Paraná pra proferir uma série de palestras a professores — "uns crédulos, acreditam em tudo que a gente diz".
O mês e meio na Universidade do Professor, em Faxinal do Céu, Paraná, "pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores" (nas palavras de Ivo Barroso na bela crônica-necrológio sobre o Villaça), acabou se estendendo por alguns anos (com idas e vindas), e aquela acabaria se revelando (volto a dar a palavra ao meu xará) "sua grande realização como homem de saber".
Escreveu Affonso Romano de Sant'ana em crônica-depoimento sobre Faxinal do Céu: "Num dos intervalos de conferências fui visitar Antonio Carlos Villaça, essa viva e modesta memória de nossa cultura. Ele sabe tudo, todos os detalhes não só das obras mas dos próprios autores. É a História viva, contada fraternalmente."
Escreveu Villaça em Diário de Faxinal do Céu: "Aqui é tão tranqüilo, tão sereno, tão quieto. Apenas o canto harmonioso dos pássaros. Apenas. E há os grilos, mais insistentes no inverno. E há a grande paz silenciosa da mata."
Repouse em paz, amigo Villaça!
Villaça era corpulento, devia ter uns 160 quilos, entrar no carro e sair, operação delicada. Eu, aspirante a escritor, diante de "monumento" da literatura, precisava impressionar, ostentar minha "cultura". Falei falei de um fôlego só. Na hora do cafezinho, Villaça educadamente deu a entender: aquele bombardeio deixara-o meio atordoado. Grande Villaça!
Em agosto Villaça comemorava o aniversário, sempre em algum restaurante. Villaça, apetite pantagruélico — desfia rosário de restaurantes e pratos suculentos em capítulo do Degustação: "Filé de peixe com molho de camarão, pirão de batata, filé mignon com fritas. Vinho português. Pêssego em calda com queijo. Ou torta. Licor." Vinha um monte de gente ao aniversário do Villaça, ala inteira do restaurante tinha que ser reservada, cada qual pagava sua conta.
Lembra-me o aniversário de 1995, numa Parmê que existiu alguns anos na Rua das Laranjeiras. Nos jornais, manchetes garrafais e fotos (horripilantes) do massacre de Vigário Geral. Anotei na agenda (eu que não tenho nem um por cento da memória fotográfica do Villaça) os nomes de meus companheiros de mesa: Sinésio Pires Cavalcanti, autor de Lembranças de um fuzileiro naval. Leandro Tocantins, autor de Formação histórica do Acre e de dois livros de memórias. Nilsson Pena (assim anotei na agenda, não sei se escrevi certo), cenógrafo, amigo de Bidu Saião, freqüentador dos saraus de Laurinda Santos Lobo. Incrível a capacidade de fazer amigos do Villaça. Quantos terão ido ao seu sepultamento? Eu próprio não fui — vim a saber de sua morte com dias de atraso.
Na época em que convivi com Villaça, residia ele na sede do Pen Clube (do qual era vice-presidente), à Praia do Flamengo. Passava os dias na biblioteca, cercado de livros, o paraíso de Borges (e de todo amante da literatura). "Aqui estou no mirante do Flamengo. Nunca antes morei assim tão perto do mar. Agora, estou no meu mirante solitário, diante do mar. E vejo a entrada da barra, o Pão de Açúcar". Visitei-o várias vezes no mirante.
Certa vez, eu e um amigo desatamos a questionar, como é que Deus permite tanto mal no mundo, tantas doenças, crimes, Holocausto? (Afinal, Villaça passara período da vida no convento, em busca de Deus). Ao cabo de nossa diatribe, Villaça simplesmente retruca: "Vocês estão querendo fazer o inventário do mundo!" E propôs que descêssemos a paragens mais amenas.
Mas o grande Villaça não estava alheio ao problema da teodicéia. No Degustação, escreve: "A presença do sofrimento no mundo sempre me pareceu uma provocação, um desafio. O sofrimento não é um problema: é um mistério." E mais adiante prossegue: "Eu me pergunto: como afirmar que Deus é bom, quando entramos num hospital? Como falar do amor de Deus a uma mulher cujo filho é idiota, simplesmente porque a mãe contraiu rubéola durante a gravidez? Como falar de Deus a este rapaz que a poliomielite transformou num paralítico? Como falar do amor diante de um campo de concentração? Diante de um hospício? Diante da morte?"
Sua memória, prodigiosa. Eu gostava de levá-lo a passear em meu automóvel pela Zona Sul do Rio de Janeiro. Passávamos por um edifício e o Villaça lembrava: aqui morou (digamos) Carlos Lacerda no período de não sei quando. E assim ia ele apontando as ex-moradas terrenas de homens ilustres que agora habitavam a morada celeste. Villaça dispensava as agendas. As anotações. O computador. A Villaça, bastavam-lhe a velha máquina de escrever e a memória.
Sua pobreza, franciscana. Villaça, tipo do homem que dedicou a vida às coisas do espírito. "A grande experiência da literatura é a experiência da liberdade. A literatura para mim é a liberdade. Ser escritor é, antes e acima de tudo, uma posição diante da vida." Não constituiu família, não amealhou bens. Parecia-me que usava sempre o mesmo terno, surrado — ou seriam vários ternos de mesma aparência? À semelhança do Quintana, morou anos num hotel, o Hotel Bela Vista, em Santa Teresa.
Por ironia do destino, quase ao final da vida, em 2003, ganhou um prêmio polpudo, o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. Apesar da bolada, terminou os dias "despejado" (?) do Pen Clube, em Casa de Repouso no Caju, vítima de depressão... Onde foi parar aquela dinheirama toda?
Em fevereiro de 1996, Villaça telefonou, convidou-me para almoçar, e frisou: hoje eu pago a conta. Estava irritado, inseguro. Por dinheiro (contou-me) aceitara ficar mês e meio enfurnado numa universidade no interior do Paraná pra proferir uma série de palestras a professores — "uns crédulos, acreditam em tudo que a gente diz".
O mês e meio na Universidade do Professor, em Faxinal do Céu, Paraná, "pequena cidade universitária planejada em meio às araucárias para servir à formação de professores" (nas palavras de Ivo Barroso na bela crônica-necrológio sobre o Villaça), acabou se estendendo por alguns anos (com idas e vindas), e aquela acabaria se revelando (volto a dar a palavra ao meu xará) "sua grande realização como homem de saber".
Escreveu Affonso Romano de Sant'ana em crônica-depoimento sobre Faxinal do Céu: "Num dos intervalos de conferências fui visitar Antonio Carlos Villaça, essa viva e modesta memória de nossa cultura. Ele sabe tudo, todos os detalhes não só das obras mas dos próprios autores. É a História viva, contada fraternalmente."
Escreveu Villaça em Diário de Faxinal do Céu: "Aqui é tão tranqüilo, tão sereno, tão quieto. Apenas o canto harmonioso dos pássaros. Apenas. E há os grilos, mais insistentes no inverno. E há a grande paz silenciosa da mata."
Repouse em paz, amigo Villaça!
Texto de Ivo Korytowski e fotos de Carlos Roberto Carvalho. Veja também neste blog a postagem O Mosteiro com trechos de O Nariz do Morto, a obra-prima de Villaça.
Em 2003 Antonio Carlos Villaça ganhou pelo conjunto da sua obra a mais alta láurea da nossa literatura, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Veja no vídeo de Carlos Roberto Carvalho no YouTube.
Em 2003 Antonio Carlos Villaça ganhou pelo conjunto da sua obra a mais alta láurea da nossa literatura, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Veja no vídeo de Carlos Roberto Carvalho no YouTube.