Saí nesta segunda de casa, na minha Vila São José, às
8,20 da manhã, Peguei na estação Gramacho o trem das 8:45 rumo a Central do
Brasil, deixando pra trás um Gramacho tão querido meu. De minha infância no
circo Império onde um cantor em início de carreira fazia apresentações, depois
entrava em seu fusquinha e se mandava. O nome dele era Roberto Carlos. Ali,
aprendi em 1972 a Datilografia, pra entrar com tudo no acirrado mercado de
trabalho. A-S-D-F-G...
Jairzinho |
O trem passou pelo pequeno bairro de COPACABANA, onde
Jairzinho, furacão, artilheiro, recordista, tricampeão da copa de 70 nasceu e ninguém diz. Parou na
recém criada estação Corte Oito. Dali pro Centenário é um pulo. No campo do
Tricolor, careca, joguei grandes peladas. O clássico do lugar era Tricolor
versus União. Também ali brinquei no Bloco do China só por causa de tanta
menina bonita.
“O. lelé, o lá lá/ se segura, fica devagar/ abram alas
pro bloco do China passar...” Eu era tímido pra cacete mas as meninas eram
lindas...
um punho cerrado e altivo no meio da comunidade |
Estação Duque de Caxias. Centro. Da janela olho um
imenso chapéu de Cardeal ocupando a
nossa praça de tanto romantismo. Último projeto do gênio Oscar Niemeyer. Ali,
os velhos ficavam em seus carteados. Pipoqueiros, árvores, dois cinemas Santa
Rosa e um grande de nome PAZ, onde aprendi meus primeiros golpes de Kung Fu com
o astro Wang Yu. Hoje é uma C & A sem graça. Muita gente entrou e o próximo
destino é Vigário Geral. Tão sofredora. Percebo por um punho cerrado e altivo
no meio da comunidade como a pedir justiça que nunca veio. Lembro dos “cavalos
corredores” e pra esquecer, melhor ir pra Parada de Lucas, onde reina o Galo
dourado da Leopoldina, Unidos de Lucas, que tem o único samba enredo que me faz
chorar, Sublime Pergaminho:
Uma voz na varanda do paço ecoou
Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão.
Como não quero chorar a próxima estação é Cordovil,
cuja capital é Cidade Alta. Controlada pelo Complexo de Israel e dele eu não
falo. Mas sim que o bairro tem um dia, 2 de Outubro, e que na Cidade Alta, o
imarcável ponta esquerda do Flamengo, Julio Cesar Uri Gueller ensaiou seus
primeiros dribles.
Olhando pro alto, sinto o trem se encaminhar pra Brás
de Pina, que já foi bairro de elite. Era chique morar em Brás de Pina. Aliás, o
dito Sr. Brás de Pina tinha uma ligação com o balneário mais badalado do Brasil,
Armação de Búzios. Pois que na Praia dos Ossos as baleias eram esquartejadas,
deixados seus ossos ali (daí o nome) e o aproveitável seguia para o Sr. Brás de
Pina que fazia o fabrico. Óleo de Baleia, por exemplo. Pra esquecer essa
prática, prefiro lembrar que neste ex. suntuoso bairro, a lendária e genial
Dolores Duran aprendeu sus primeiras notas ao piano. Antes das portas se
fecharem pra próxima estação, vejo as comunidades do Pica Pau e das Cinco
bocas.
Estação Penha. Ali meu coração fraqueja. Menino de
cinco anos, descido de um caminhão “pau-de-arara” em 1964, fui morar na rua 4,
Morro do Parque Proletário da Penha. Aprendi juntar letrinhas na Escola
Monsenhor Rocha com a Professora Cecília. Me divertir no Parque Shangai e a ter
Fé subindo os 365 degraus da escadaria
até chegar aos pés de Nossa Senhora. No campo de terra do Ordem e
Progresso, auri-verde invencível, joguei minhas primeiras peladas. Até vir pra
Duque de Caxias em 1969. Marejando os olhos, sei que a próxima estação é
Olaria. Se percebe pela quantidade de prédios azul e branco e o nome Álvaro da
Costa Mello. Dono de Olaria e do Olaria Atlético Clube, de Romário, Cané,
Gonçalves, Airton, Roberto Pinto, Afonsinho, Altivo, Alfinete, Miguel. O
“Alçapão da Rua Bariri” fazia qualquer valente tremer. Também a Invernada,
comandada pelo Homem de ouro Humberto de Mattos. Do alto do morro meu ficava da
janela vendo ela cruzar a fronteira com a Penha, poeira subindo, indo atrás de
malandros desocupados no jogo da ronda, o grande crime da época. Depois voltava
cheia... quase arrastando no chão.
Imperatriz Leopoldinense |
No vagão onde estou passa por mim somente velhas
guardas. O homem rouco que vende sabonete da raspa do Joá, que serve pra tudo.
Passa Escobar e sua pomada Canela de velho e o eterno “cuem, cuem” com as
legítimas bananadas de Campos dos Goitacazes. Compro três por dois reais e
quando olho, chegamos a Ramos. Tá na cara. É só olhar a imensa tamarineira no
Cacique, onde uma revolução no samba se fez, num Fundo de Quintal. Ao lado, na Professor Lacê, a
Imperatriz Leopoldinense que um dia foi pequena mas que Zé Katimba e
Rosinha Magalhães a tornaram gigante. Ademais, e o Piscinão de Dicró é onde? E
por falar em grandeza, a FIOCRUZ é onde? Viva a Ciência! Acho que o Capitão Ramos, que deu nome ao
bairro, deve estar orgulhoso onde quer que esteja.
Teleférico |
Se o tema é orgulho, a próxima estação é Bonsucesso,
sobrenome de uma das proprietárias primeiras no bairro. Aqui o Diamante Negro
Leônidas da Silva, nosso primeiro Pelé, deu seus primeiros passos justamente no
Bonsucesso Futebol Clube, que tem a camisa igual a do Barcelona. Bonsucesso de
tantos problemas com poluição. Mas de comércio pulsante. Da Praça das Nações. E
do Teleférico subindo pra Comunidade do Adeus. Sinto meu coração acelerar e já
sei que a próxima estação é Triagem. Meu primeiro emprego de carteira assinada
em 1974 foi ali, na Prefeito Olimpio de Mello, fábrica de cintos, malas e
artefatos de metais COFABAM. Tinha apenas 15 anos. Da estação seguia a pé até a
fábrica, bairro Benfica. Passava pelo quartel de soldados carrancudos prendendo
em trens soldados relapsos, depois a saudosa CCPL, cooperativa de leite e a rua
dos Lustres. Lembranças tantas e tantos planejamentos... em 1974... O trem sai
lentamente pra me doer mais ainda. Ouço gritos de gols e sei que se trata da
estação Maracanã. Lembranças dos trens
cheios, barulhentos, bandeiras desfraldadas, Geral e copos de xixis
arremessados em cima de nós, pobres, que não tinha grana pra ir de arquibancadas.
Hoje o Maracanã é “arena”. Acabaram com a geral e mandaram pobres pros
botequins. Quase ninguém entra na Estação Maracanã e rumamos pro Imperial
Bairro de São Cristóvão. Da Quinta da Boa Vista. Do Jardim Zoológico, onde
minha família tinha como programação principal ver os animais e depois
estender uma toalha no gramado com os alimentos. Lembrança boa de se ter... inda
mais quando sei que uma parte de mim está em São Cristóvão. A “Feira dos
Paraíbas”.
O maquinista agradece, deseja bom trabalho e avisa que a próxima estação, Central do Brasil, o desembarque é obrigatório. Ponto final e eu olhando aquele imenso e histórico Relógio lá no alto que não dá as horas. Local de tantas manifestações, protestos, discursos, numa desses um certo presidente foi pro saco e a longa noite desceu.
Atravessei a roleta, parei na Lanchonete DOURADO, Seu
Brás, 30 anos de casa, já sabe meu gosto. Média de café com leite e pão na
chapa. Conversamos e ele nunca deixou de reclamar. Me despeço e cruzo a
Presidente Vargas. Entro no abandonado Campo de Santana. Não olho pra direita,
residência do mal agradecido, escroto Marechal que deu o golpe no Imperador que
o promoveu. Saio pela esquerda. Dou de cara com São Jorge em seu cavalo. Entro,
me ajoelho, rezo, peço ao Santo Guerreiro que me proteja dos olhares maldosos,
dos dragões do dia a dia. Acendo uma vela, compro três canetas e uma fita
vermelha que boto no pulso. Sigo e passo pela Alfandega, Buenos Aires, no
prédio do TCE mudo de calçada, retomo e viro na Rua da Constituição. Dali,
Praça Tiradentes. Mitológica. da Gafieira Estudantina da inesquecível Maria
Antonieta. Teatro Carlos Gomes, João Caetano. Agora entro na Rua da Carioca
famosa. Todas as lojas fechadas compradas por um banco oportunista (Sim! Sei
que é um pleonasmo!!!) menos o outrora suntuoso, aristocrático CINE-THEATRO
ÍRIS, que se viu obrigado a mudar para o ramo erótico e sobreviver. Paro a
olhar toda aquela arquitetura e três porteiros me olham e dão um folheto com a
programação daquela noite. Agradeço. Cruzo a Rio Branco, o Buraco do Lume, a
Primeiro de março, estou na Praça XV a olhar o magistral Chafariz do Mestre
Valentim. Depois passo sob o Arco do Telles, travessa do Comércio, Rua do
Ouvidor. Ali, o Toca do Baiacu está repleta de gente almoçando. A barriga está
nas costas. Ao lado da Toca está uma deslumbrante e sagrada Igreja; Nossa
Senhora da Lapa dos Mercadores, de 1753, depois de três anos restaurada e linda
demais. Ela tem uma bala explosível de canhão alojada em sua torre desde muito
tempo que um navio revoltoso disparou contra ela. Mesmo ao lado do sino trepidando constantemente, até hoje não
explodiu; Milagre.
Bala que atingiu a torre da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores. Na verdade, não está mais alojada na torre, e sim exposta na sacristia.
Entro, me ajoelho, olho, peço, registro. Em Jejum, minha oração tem mais chance de chegar ao céu.
Ao lado da Igreja está um dos últimos bastiões na luta
da verdadeira identidade carioca; a Livraria FOLHA SECA, de Rodrigo Ferrari
(Digão) e seu fiel escudeiro, Miguelzinho. Nos abraçamos, botamos o papo em dia
e levei um Aldir Blanc; o delicioso “ UMA CAIXINHA DE SURPRESAS” .
Agora, o essencial CCBB. Ver a programação com música,
teatro, exposições. Fui lá especificamente pra uma sobre HEITOR DOS PRAZERES.
Me identifiquei e subi pro segundo andar.
“Mangueira teu cenário é uma beleza
Que a natureza criou”
foi grande nas Artes Plásticas
Esse magistral artista Multi foi Compositor, Ator,
Cantor, participou da fundação das primeiras escolas de samba do Brasil e foi
grande nas Artes Plásticas com uma pintura que abordava comunidades com um viés
alegre, cheio de cores. Certa vez a jovem Rainha Elizabeth esteve numa
exposição e ao ver seus quadros perguntou a alguém : “Quem é esse artista
extraordinário?!”
Pois é. Nas paredes, seus quadros, matérias em jornais
daqui e do estrangeiro. Roupas de desfiles, instrumentos, vídeos.
esse Rio que eu amo; hei de sempre amar.
Ufa! Banho de Brasil, banho de Rio de Janeiro.
Imunidade lá nos píncaros. Deixei então o CCBB, todo janotas. Segui a pé pra
Central do Brasil. Em lá chegando pedi ao Seu Brás dois “Joelhos” Presunto e
queijo. Um suco de acerola. Seu Brás sorriu; sorrimos. Depois na roleta da
gratuidade peguei o trem ramal Gramacho horário 16:45. E da janela vendo de
novo esse Rio que eu amo; hei de sempre amar.
O AUTOR
Claudio Aragão foi retirante da seca do Ceará, cursou faculdade de Letras no Rio de Janeiro, gerenciou restaurantes famosos como o lendário bistrô francês Le Bec Fin, frequentado pelo pai do editor deste blog, e tem várias obras publicadas, destacando-se a série sobre futebol em forma de literatura de cordel.