ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

4.8.23

ESSE RIO QUE EU AMO; HEI DE SEMPRE AMAR, de CLAUDIO ARAGÃO

A previsão do tempo dava chuvas espaças no decorrer do dia. Frio. Devia me agasalhar, pegar minha sombrinha pra ir ao Centro do Rio de Janeiro. Ando com minha imunidade baixa. Problemas de autoestima... sei lá ...

 

Central do Brasil

Saí nesta segunda de casa, na minha Vila São José, às 8,20 da manhã, Peguei na estação Gramacho o trem das 8:45 rumo a Central do Brasil, deixando pra trás um Gramacho tão querido meu. De minha infância no circo Império onde um cantor em início de carreira fazia apresentações, depois entrava em seu fusquinha e se mandava. O nome dele era Roberto Carlos. Ali, aprendi em 1972 a Datilografia, pra entrar com tudo no acirrado mercado de trabalho. A-S-D-F-G...

 
Jairzinho

O trem passou pelo pequeno bairro de COPACABANA, onde Jairzinho, furacão, artilheiro, recordista, tricampeão  da copa de 70 nasceu e ninguém diz. Parou na recém criada estação Corte Oito. Dali pro Centenário é um pulo. No campo do Tricolor, careca, joguei grandes peladas. O clássico do lugar era Tricolor versus União. Também ali brinquei no Bloco do China só por causa de tanta menina bonita.

 

as meninas eram lindas

“O. lelé, o lá lá/ se segura, fica devagar/ abram alas pro bloco do China passar...” Eu era tímido pra cacete mas as meninas eram lindas...

 
um punho cerrado e altivo no meio da comunidade 

Estação Duque de Caxias. Centro. Da janela olho um imenso chapéu de Cardeal  ocupando a nossa praça de tanto romantismo. Último projeto do gênio Oscar Niemeyer. Ali, os velhos ficavam em seus carteados. Pipoqueiros, árvores, dois cinemas Santa Rosa e um grande de nome PAZ, onde aprendi meus primeiros golpes de Kung Fu com o astro Wang Yu. Hoje é uma C & A sem graça. Muita gente entrou e o próximo destino é Vigário Geral. Tão sofredora. Percebo por um punho cerrado e altivo no meio da comunidade como a pedir justiça que nunca veio. Lembro dos “cavalos corredores” e pra esquecer, melhor ir pra Parada de Lucas, onde reina o Galo dourado da Leopoldina, Unidos de Lucas, que tem o único samba enredo que me faz chorar, Sublime Pergaminho:

 

Uma voz na varanda do paço ecoou

 Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão.

 

Como não quero chorar a próxima estação é Cordovil, cuja capital é Cidade Alta. Controlada pelo Complexo de Israel e dele eu não falo. Mas sim que o bairro tem um dia, 2 de Outubro, e que na Cidade Alta, o imarcável ponta esquerda do Flamengo, Julio Cesar Uri Gueller ensaiou seus primeiros dribles.

 

Brás de Pina

Olhando pro alto, sinto o trem se encaminhar pra Brás de Pina, que já foi bairro de elite. Era chique morar em Brás de Pina. Aliás, o dito Sr. Brás de Pina tinha uma ligação com o balneário mais badalado do Brasil, Armação de Búzios. Pois que na Praia dos Ossos as baleias eram esquartejadas, deixados seus ossos ali (daí o nome) e o aproveitável seguia para o Sr. Brás de Pina que fazia o fabrico. Óleo de Baleia, por exemplo. Pra esquecer essa prática, prefiro lembrar que neste ex. suntuoso bairro, a lendária e genial Dolores Duran aprendeu sus primeiras notas ao piano. Antes das portas se fecharem pra próxima estação, vejo as comunidades do Pica Pau e das Cinco bocas.

 

Estação Penha

Estação Penha. Ali meu coração fraqueja. Menino de cinco anos, descido de um caminhão “pau-de-arara” em 1964, fui morar na rua 4, Morro do Parque Proletário da Penha. Aprendi juntar letrinhas na Escola Monsenhor Rocha com a Professora Cecília. Me divertir no Parque Shangai e a ter Fé subindo os 365 degraus da escadaria  até chegar aos pés de Nossa Senhora. No campo de terra do Ordem e Progresso, auri-verde invencível, joguei minhas primeiras peladas. Até vir pra Duque de Caxias em 1969. Marejando os olhos, sei que a próxima estação é Olaria. Se percebe pela quantidade de prédios azul e branco e o nome Álvaro da Costa Mello. Dono de Olaria e do Olaria Atlético Clube, de Romário, Cané, Gonçalves, Airton, Roberto Pinto, Afonsinho, Altivo, Alfinete, Miguel. O “Alçapão da Rua Bariri” fazia qualquer valente tremer. Também a Invernada, comandada pelo Homem de ouro Humberto de Mattos. Do alto do morro meu ficava da janela vendo ela cruzar a fronteira com a Penha, poeira subindo, indo atrás de malandros desocupados no jogo da ronda, o grande crime da época. Depois voltava cheia... quase arrastando no chão.

 
Imperatriz Leopoldinense

No vagão onde estou passa por mim somente velhas guardas. O homem rouco que vende sabonete da raspa do Joá, que serve pra tudo. Passa Escobar e sua pomada Canela de velho e o eterno “cuem, cuem” com as legítimas bananadas de Campos dos Goitacazes. Compro três por dois reais e quando olho, chegamos a Ramos. Tá na cara. É só olhar a imensa tamarineira no Cacique, onde uma revolução no samba se fez, num Fundo de Quintal.  Ao lado, na Professor Lacê, a Imperatriz  Leopoldinense  que um dia foi pequena mas que Zé Katimba e Rosinha Magalhães a tornaram gigante. Ademais, e o Piscinão de Dicró é onde? E por falar em grandeza, a FIOCRUZ é onde? Viva a Ciência!  Acho que o Capitão Ramos, que deu nome ao bairro, deve estar orgulhoso onde quer que esteja.

 
Teleférico

Se o tema é orgulho, a próxima estação é Bonsucesso, sobrenome de uma das proprietárias primeiras no bairro. Aqui o Diamante Negro Leônidas da Silva, nosso primeiro Pelé, deu seus primeiros passos justamente no Bonsucesso Futebol Clube, que tem a camisa igual a do Barcelona. Bonsucesso de tantos problemas com poluição. Mas de comércio pulsante. Da Praça das Nações. E do Teleférico subindo pra Comunidade do Adeus. Sinto meu coração acelerar e já sei que a próxima estação é Triagem. Meu primeiro emprego de carteira assinada em 1974 foi ali, na Prefeito Olimpio de Mello, fábrica de cintos, malas e artefatos de metais COFABAM. Tinha apenas 15 anos. Da estação seguia a pé até a fábrica, bairro Benfica. Passava pelo quartel de soldados carrancudos prendendo em trens soldados relapsos, depois a saudosa CCPL, cooperativa de leite e a rua dos Lustres. Lembranças tantas e tantos planejamentos... em 1974... O trem sai lentamente pra me doer mais ainda. Ouço gritos de gols e sei que se trata da estação Maracanã. Lembranças dos  trens cheios, barulhentos, bandeiras desfraldadas, Geral e copos de xixis arremessados em cima de nós, pobres, que não tinha grana pra ir de arquibancadas. Hoje o Maracanã é “arena”. Acabaram com a geral e mandaram pobres pros botequins. Quase ninguém entra na Estação Maracanã e rumamos pro Imperial Bairro de São Cristóvão. Da Quinta da Boa Vista. Do Jardim Zoológico, onde minha família tinha como programação principal ver os animais e depois estender uma toalha no gramado com os alimentos. Lembrança boa de se ter... inda mais quando sei que uma parte de mim está em São Cristóvão. A “Feira dos Paraíbas”.

 

“Feira dos Paraíbas”

O maquinista agradece, deseja bom trabalho e avisa que a próxima estação, Central do Brasil, o desembarque é obrigatório. Ponto final e eu olhando aquele imenso e histórico Relógio lá no alto que não dá as horas. Local de tantas manifestações, protestos, discursos, numa desses um certo presidente foi pro saco e a longa noite desceu.

 

Santo Guerreiro

Atravessei a roleta, parei na Lanchonete DOURADO, Seu Brás, 30 anos de casa, já sabe meu gosto. Média de café com leite e pão na chapa. Conversamos e ele nunca deixou de reclamar. Me despeço e cruzo a Presidente Vargas. Entro no abandonado Campo de Santana. Não olho pra direita, residência do mal agradecido, escroto Marechal que deu o golpe no Imperador que o promoveu. Saio pela esquerda. Dou de cara com São Jorge em seu cavalo. Entro, me ajoelho, rezo, peço ao Santo Guerreiro que me proteja dos olhares maldosos, dos dragões do dia a dia. Acendo uma vela, compro três canetas e uma fita vermelha que boto no pulso. Sigo e passo pela Alfandega, Buenos Aires, no prédio do TCE mudo de calçada, retomo e viro na Rua da Constituição. Dali, Praça Tiradentes. Mitológica. da Gafieira Estudantina da inesquecível Maria Antonieta. Teatro Carlos Gomes, João Caetano. Agora entro na Rua da Carioca famosa. Todas as lojas fechadas compradas por um banco oportunista (Sim! Sei que é um pleonasmo!!!) menos o outrora suntuoso, aristocrático CINE-THEATRO ÍRIS, que se viu obrigado a mudar para o ramo erótico e sobreviver. Paro a olhar toda aquela arquitetura e três porteiros me olham e dão um folheto com a programação daquela noite. Agradeço. Cruzo a Rio Branco, o Buraco do Lume, a Primeiro de março, estou na Praça XV a olhar o magistral Chafariz do Mestre Valentim. Depois passo sob o Arco do Telles, travessa do Comércio, Rua do Ouvidor. Ali, o Toca do Baiacu está repleta de gente almoçando. A barriga está nas costas. Ao lado da Toca está uma deslumbrante e sagrada Igreja; Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, de 1753, depois de três anos restaurada e linda demais. Ela tem uma bala explosível de canhão alojada em sua torre desde muito tempo que um navio revoltoso disparou contra ela.  Mesmo ao lado do sino trepidando constantemente, até hoje não explodiu; Milagre.

 

Bala que atingiu a torre da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores. Na verdade, não está mais alojada na torre, e sim exposta na sacristia.

Entro, me ajoelho, olho, peço, registro. Em Jejum, minha oração tem mais chance de chegar ao céu. 

Ao lado da Igreja está um dos últimos bastiões na luta da verdadeira identidade carioca; a Livraria FOLHA SECA, de Rodrigo Ferrari (Digão) e seu fiel escudeiro, Miguelzinho. Nos abraçamos, botamos o papo em dia e levei um Aldir Blanc; o delicioso “ UMA CAIXINHA DE SURPRESAS” .

 

o essencial CCBB

Agora, o essencial CCBB. Ver a programação com música, teatro, exposições. Fui lá especificamente pra uma sobre HEITOR DOS PRAZERES. Me identifiquei e subi pro segundo andar.

 

“Mangueira teu cenário é uma beleza

Que a natureza criou”

 

foi grande nas Artes Plásticas

Esse magistral artista Multi foi Compositor, Ator, Cantor, participou da fundação das primeiras escolas de samba do Brasil e foi grande nas Artes Plásticas com uma pintura que abordava comunidades com um viés alegre, cheio de cores. Certa vez a jovem Rainha Elizabeth esteve numa exposição e ao ver seus quadros perguntou a alguém : “Quem é esse artista extraordinário?!”

 

Pois é. Nas paredes, seus quadros, matérias em jornais daqui e do estrangeiro. Roupas de desfiles, instrumentos, vídeos.

 

esse Rio que eu amo; hei de sempre amar.

Ufa! Banho de Brasil, banho de Rio de Janeiro. Imunidade lá nos píncaros. Deixei então o CCBB, todo janotas. Segui a pé pra Central do Brasil. Em lá chegando pedi ao Seu Brás dois “Joelhos” Presunto e queijo. Um suco de acerola. Seu Brás sorriu; sorrimos. Depois na roleta da gratuidade peguei o trem ramal Gramacho horário 16:45. E da janela vendo de novo esse Rio que eu amo; hei de sempre amar. 

O AUTOR

Claudio Aragão foi retirante da seca do Ceará, cursou faculdade de Letras no Rio de Janeiro, gerenciou restaurantes famosos como o lendário bistrô francês Le Bec Fin, frequentado pelo pai do editor deste blog, e tem várias obras publicadas, destacando-se a série sobre futebol em forma de literatura de cordel.