ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

13.2.18

CARNAVAIS DE OUTRORA, de MANUEL BANDEIRA (1938)

Carnaval de rua no início do séc. XX. Foto obtida na Biblioteca Nacional Digital.

Conheci ainda o carnaval do papel-picado, dos limões-de-cheiro e do Zé-Pereira. O carnaval do Recife, na Rua da União, entre 1892 e 1896. O Zé Pereira 

Bum! Bum! Bum!
Bum! Bum-bum-bum!
Zé-Pereira!

era o baixo-contínuo que alimentava, sustentava toda a dissonante polifonia carnavalesca. Em casa de meu avô, nas casas da vizinhança, muito antes dos dias gordos, compravam-se as grandes folhas de papel de seda, brancas, verdes, azuis, cor-de-rosa, e durante semanas as tesouras trabalhavam picando papel em minúsculos quadradinhos. Eu ainda não tinha dez anos, mas já achava insensato levar horas preparando um punhado de papel picado que se iria embora pelos ares num gesto de mão que durava um segundo. Assisti ao aparecimento dos primeiros confetti, que me deslumbraram, das primeiras bisnagas, que eram como as de pasta dental atuais, das primeiras serpentinas. Das fantasias, a que mais me impressionava eram os dominós negros, as que me pareciam mais estranhas, mais misteriosas, mais poéticas.

Em 96 vim para o Rio e conheci o carnaval carioca, tão diferente do de hoje. Impossível dizer dele o que mestre Machado de Assis disse do Natal. O centro da cidade não era então a avenida Rio Branco; era uma das ruas mais estreitas e mais curtas da cidade, e também a mais elegante – a Rua do Ouvidor. Imagine-se toda a população da cidade querendo brincar na Rua do Ouvidor! O momento capital do desfile das grandes sociedades era na Rua do Ouvidor. As mais belas senhoras da cidade estavam nas sacadas.

Depois adoeci e durante anos, muitos anos, não vi senão os carnavais das cidadezinhas do interior. No Rio abriu-se a Avenida. A Rua do Ouvidor foi perdendo o seu prestígio. Quando voltei a ver o carnaval carioca, já era ele como o descreve Mário de Andrade no seu grande poema, que é de 1923:

... sangue ardendo povo chiba frêmito e clangor
Risadas e danças
Batuques maxixes
Jeitos de micos piricicas
Ditos pesados, graça popular
Coros luzes serpentinas
Coriscos coros caras colos braços serpentinas serpentinas
Sambas bumbos guizos serpentinas serpentinas


Mário esqueceu-se do éter dos lança-perfumes. Cheirava-se éter à vontade. Havia bebedeiras de éter, sobretudo no bar e no hall do Palace Hotel, o que celebrei devidamente no meu “Rondó do Palace Hotel”:

Deus do céu! que alucinação!
Há uma criatura tão bonita,
Que até os olhos parecem nus:
Nossa Senhora da Prostituição!
– “Garçom, cinco Martinis! Os
Adolescentes cheiram éter
No hall do Palace.

Depois... Depois o carnaval carioca passou a ter fama internacional. Criou-se um Departamento de Turismo, que começou a fazer propaganda do nosso carnaval. Instituíram-se prêmios. Não sei por que, se por isto ou por aquilo, ou por coisa nenhuma, a festa entrou a murchar, e o certo é que o carnaval verdadeiro, o carnaval de rua só serve hoje para fazer cinema ou tentar uma Rita Hayworth a dar as caras por estas bandas. O carnaval visto por Mário de Andrade em 1923 não existe mais...

1.2.18

TURMAS DE BATE-BOLAS (CLÓVIS) NO CARNAVAL DO RIO DE JANEIRO

O TEXTO ABAIXO É A CONCLUSÃO DE TRAMAS SIMBÓLICAS: A DINÂMICA DOS BATE-BOLAS NO RIO DE JANEIRO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE ALINE VALADÃO VIEIRA GUALDA PEREIRA. O TEXTO INTEGRAL DA TESE PODE SER ACESSADO AQUI. VÍDEO E FOTOS DO EDITOR DO BLOG & ESPOSA.




Os bate-bolas são personagens característicos do carnaval do Rio de Janeiro. Entretanto, conforme pudemos ver, sua manifestação não tem tanta projeção quanto outras manifestações carnavalescas populares locais, como os desfiles de escolas de samba e os blocos carnavalescos da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo.

Apesar de sua visibilidade relativamente pequena num âmbito maior, nos lugares em que as turmas de bate-bolas se manifestam, elas costumam ser extremamente expressivas, principalmente pela sua capacidade de mobilizar o público local, atraindo olhares e gerando as mais diversas expectativas e espécies de comentários.



A manifestação das turmas de bate-bola parece estar em expansão. Ouve-se falar de muitos novos nomes de turmas de bate-bolas surgindo no universo carnavalesco popular do Rio de Janeiro a cada ano; também se percebe a presença dos grupos de bate-bolas em localidades do município – e até mesmo do Estado do Rio de Janeiro – onde, até então, não era comum encontrá-los. Com isso, a manifestação tem alcançado uma visibilidade aparentemente crescente na sociedade em geral.

Apesar destas possíveis evidências de crescimento da manifestação das turmas de bate-bolas no carnaval do Rio de Janeiro contemporâneo, vimos que poucos estudos acadêmicos se voltaram a produzir um conhecimento mais aprofundado sobre a brincadeira, e os poucos que existem limitam-se, na maioria dos casos, a estabelecer descrições baseadas em maneiras generalizadas de brincar de bate-bola.



Percebemos que os textos sobre os bate-bolas tendem a se concentrar em algumas das facetas da brincadeira, que são aquelas que se mostram mais constantes, deixando de abordar e de explicar as diferenças e variações da manifestação. Além disso, vimos que mesmo os aspectos contemplados nos estudos descritivos devem ser aplicados, hoje em dia, cuidadosamente, pois muitos deles mostram-se defasados em relação às novas formas de visualidade e de performance características das manifestações das turmas de bate-bolas da atualidade.

Para entendermos a manifestação das turmas de bate-bolas contemporâneas de uma forma mais totalizante e atualizada, buscamos considerar todo tipo de informação possível sobre ela, de fontes diversas. Assim, além de recorrermos aos estudos acadêmicos pregressos, recorremos também à mídia impressa, à mídia digital, à sociedade em geral (que chamamos de senso comum), aos fantasiados e às pessoas envolvidas direta e indiretamente na realização das brincadeiras dos bate-bolas contemporâneos, de forma a registrarmos e compreendemos as visões correntes em cada um desses meios.



O que percebemos não foi um consenso, mas sim uma coexistência de formas variadas e até mesmo controversas de entendimento da manifestação. Para alguns, a brincadeira contemporânea dos bate-bolas relaciona-se à tradição, mas para outros, à inovação; para alguns, trata-se de uma prática relacionada à marginalidade, mas para outros, é uma forma genuína de arte e de cultura popular; para uns relaciona-se à agressividade e à violência, mas para outros, é brincadeira e diversão; para uns é sinônimo de pobreza e miséria, mas para outros, é sinal de status pelo dispêndio.

Para buscarmos entender o que teria levado a este conflito de visões da atualidade, pesquisamos brevemente o histórico da manifestação dos bate-bolas no Rio de Janeiro. Percebemos que em relação às origens da manifestação também há desencontros, lacunas e controvérsias. Algumas histórias situam o nascimento dos bate-bolas no bairro de Santa Cruz, no município do Rio de Janeiro, na década de 1930. Porém há registros escritos que falam de fantasias similares em épocas anteriores a esta década. Além disso, há quem defenda a história de que os bate-bolas seriam oriundos da zona norte da cidade.



Embora tenhamos levantado algumas questões acerca das narrativas históricas sobre os bate-bolas, sabemos que este é um assunto que merece ser visto com mais atenção, e que necessita de uma pesquisa mais específica, atenta às diferenças terminológicas que denominam a brincadeira e também às influências assimiladas pela manifestação no decorrer do tempo, pois as observações que fizemos se prestaram somente a demonstrar de maneira breve a existência de incoerências e de diferentes interesses subjacentes a cada história de origem que analisamos.

Além das informações teóricas, acompanhamos, registramos e analisamos certas práticas de algumas turmas de bate-bolas por meio de análise etnográfica. Através destes registros, concluímos que as turmas de bate-bolas contemporâneas são grupos que instituem certas identidades, compartilhadas coletivamente. Compreendemos as turmas de bate-bolas como espécies de grupamentos comunitários porque notamos a existência, em níveis diferenciados, de elementos simbólicos de manutenção de identidades coletivas em todas as turmas analisadas, como por exemplo a existência de nome, de emblemas, de lemas, bandeiras, e também, de histórias e ideais, entre outros elementos.



Percebemos que as turmas de bate-bolas contemporâneas empreendem leituras particularizadas do personagem bate-bola, que, no Rio de Janeiro, seria a representação local de uma espécie de arquétipo global de comicidade (que tem sido encontrado representado com feições próprias em diferentes localidades do Brasil e do mundo). Falamos em leituras particularizadas porque não encontramos um padrão rigoroso e estável da manifestação do bate-bola balizando as formulações e reformulações das brincadeiras de cada turma. Ao contrário, presenciamos a existência de repertórios abertos de elementos materiais e performáticos com significados flutuantes, a partir dos quais as turmas elaboraram suas “versões” para a fantasia e para o comportamento dos bate-bolas.

Como forma de ilustrar a multiplicidade e a variabilidade características dos elementos componentes da manifestação das turmas de bate-bolas, expusemos alguns dos elementos materiais e performáticos captados das turmas de bate-bolas observadas no momento da pesquisa. Mostramos que estes elementos são variados, que são opcionais e que são abertos à ressignificação. Mostramos ainda que os repertórios material e performático são dinâmicos e que se alimentam de elementos do cotidiano dos brincantes que, por sua vez, ao serem incorporados à brincadeira dos bate-bolas operam o duplo de adquirirem outras significações e de, ao mesmo tempo, conferirem outras significações à manifestação.



Entretanto, como também tivemos a oportunidade de verificar, as incorporações de elementos à manifestação dos bate-bolas não se dá de maneira completamente livre. Ela se submete à compreensão mais ou menos consensual que se tem da manifestação no universo conceitual compartilhado por todos os bate-bolas. Isto fica claro ao observarmos a classificação das turmas de bate-bolas em “estilos”, que são as categorias criadas pelos brincantes e correntes no universo conceitual da manifestação, e que se estabelecem por meio de identificações / diferenciações entre as turmas.

Um estilo pode ser compreendido como uma articulação de determinados elementos materiais com outros determinados elementos performáticos, associados a certos tipos de comportamentos. Ao relacionarmos uma amostragem dos estilos que identificamos no decorrer da pesquisa, privilegiamos a exibição visual dos elementos materiais a se combinarem para caracterizar cada estilo analisado – através da representação destes elementos no formato de desenho técnico. Elaborando a legenda com os desenhos técnicos, pudemos oferecer uma noção imediata das diferenças materiais de elementos tidos como genéricos – como o macacão, a casaca, a máscara e os adereços de cabeça, mão, pernas e pés –, marcando visualmente as diferenças materiais existentes entre eles. Em seguida, mostramos cada estilo analisado e suas respectivas articulações dos elementos materiais e elementos performáticos, e os tipos de comportamento associados a cada combinação específica.



Demonstramos que o repertório de estilos também não é fechado ou estável, demonstrando que além de se constituir com base em elementos de repertórios abertos e instáveis, um estilo pode também mudar de configuração, novos estilos podem ser constantemente criados, antigos estilos podem ser renomeadas e há estilos que podem deixar de existir. Além disso, mostramos haver a possibilidade das turmas de bate-bolas migrarem entre estilos.

Com isso tudo que se pesquisou e que se observou, não poderíamos deixar de perceber como características marcantes da manifestação das turmas contemporâneas de bate-bolas a capacidade de hibridismo, de dinâmica e de dissenso, reforçadas pela existência de diferentes formas de brincar sob uma designação genérica.



Em dados tipos de abordagem teórica, a dinâmica e o dissenso característicos da manifestação poderiam levar até mesmo a se desqualificar a brincadeira dos bate-bolas enquanto objeto cultural, pois a cultura popular normalmente oscila entre duas concepções clássicas: aquela que entende o popular como sendo o campo de resistência às investidas dos meios massivos, da autonomia simbólica e da perpetuação da tradição através da conservação dos costumes; ou aquela que compreende o popular como o campo da submissão às investidas efêmeras da indústria cultural, da passividade simbólica e da ignorância ou da negação das raízes culturais.

O que vimos na manifestação dos bate-bolas contemporâneos não se enquadra nem em uma nem na outra destas concepções de cultura popular. Para nós, a cultura popular é, ao contrário, o terreno no qual as transformações são operadas. Ela não se expressa nem pela autonomia pura, nem pelo total encapsulamento; nem como algo inteiro e coerente, nem como algo corrompido, mas sim como a tensão entre estas polaridades. E, enquanto tensão, a cultura popular engendra movimento.



Para os Estudos Culturais as impurezas são características inerentes ao objeto cultural, pois um objeto cultural seria estabelecido num processo constante de contatos e influências. A cultura popular seria a arena de disputa simbólica pela definição dos objetos culturais, cujos significados permaneceriam sempre conflituosos e contestados. Por isso, adotamos os Estudos Culturais como campo teórico para subsidiar a análise da manifestação, tal qual ela se apresenta nos dias de hoje, em sua totalidade, e considerando as suas constantes atualizações.

No caso da manifestação das turmas de bate-bolas contemporâneas, as lutas simbólicas nas quais os brincantes estão envolvidos podem ser observadas por dois prismas: pelo da disputa simbólica entre as turmas, na qual está em jogo a definição hegemônica da manifestação das turmas de bate-bolas; e pelo da disputa simbólica sobre a definição dos objetos apropriados do cotidiano e incorporados aos repertórios de bens simbólicos da manifestação.



Quanto às disputas simbólicas entre as turmas, que são as que mais nos interessam, afirmamos serem lutas em processo porque não identificamos a existência de uma definição hegemônica da brincadeira que norteie os caminhos a serem percorridos pelos brincantes, na constituição de sua prática, de uma forma fechada, inequívoca. Também não vimos, na constituição das formas particulares de brincar, uma total liberdade de se autoformularem de maneira muito dissonante em relação ao que se costuma praticar no universo maior da manifestação.

Compreendemos a manifestação dos bate-bolas como um objeto cultural complexo, tenso, disputado, uma espécie de luta onde se lida com adesões e recusas simbólicas. Nesta manifestação, percebe-se que os brincantes ora se submetem às regras alheias, ora determinam regras para o jogo. São agentes culturais em potencial, e sua ação se manifesta por meio do consumo particularizado, ou seja, pelas formas próprias de uso dos bens simbólicos estabelecidos no seio do universo conceitual da manifestação.



Compreendemos, finalmente, que a manifestação dos bate-bolas não deve ser definida em ambiente externo ao universo simbólico da manifestação, pois cabe aos bate-bolas da contemporaneidade decidirem o que é, atualmente, a manifestação das turmas de bate-bolas.

Esperamos, com nossas argumentações, termos contribuído com informações mais atualizadas e abrangentes sobre a manifestação das turmas de bate-bolas, em sua complexidade atual. Esperamos também ter levantado mais uma possibilidade de abordagem do conceito de cultura popular, o que acreditamos ser de extrema relevância nos dias atuais, em virtude da ocorrência de tantas manifestações tidas como fronteiriças, ou impuras, e que estão aguardando por consideração.



Como complemento deste trabalho, em continuidade à análise da manifestação das turmas de bate-bolas contemporâneas em suas interações, acreditamos ser relevante abordar mais detalhadamente a relação da manifestação das turmas de bate-bolas contemporâneas com o contexto social mais amplo, considerando melhor as leituras da manifestação promovidas por agentes culturais externos ao universo simbólico da manifestação das turmas dos bate-bolas.

Acreditamos também que seja relevante realizar uma pesquisa histórica detida naqueles que teriam sido os modelos de comicidade popular sobre os quais a manifestação dos bate-bolas veio se definindo ao longo do tempo e que, ao que parece, possuem raízes bem mais profundas e bem menos lineares do que aquilo que investigamos até aqui.



Vemos as manifestações das turmas de bate-bolas contemporâneas como uma expressão cultural popular extremamente potente e em franca expansão. Acreditamos que as disputas simbólicas acerca da definição do seu conceito perdurarão por muito tempo, e que com isso, nos brindarão com muitos novos espetáculos de fecundidade estética, de criatividade e de talento; afinal, ao contrário de tantas outras brincadeiras carnavalescas que surgiram e desapareceram ao longo dos anos, a brincadeira dos bate-bolas permanece, dando uma prova de que a sua abertura às assimilações do cotidiano tem sido uma garantia de longevidade.

Desejamos que num futuro próximo os bate-bolas venham a ser reconhecidos e valorizados no cenário carnavalesco do Rio de Janeiro mais por sua beleza e por sua expressividade plástica, do que por qualquer espécie de demérito que, porventura, seja associado à sua manifestação, pois entendemos a manifestação das turmas de bate-bolas contemporâneas como uma genuína e inequívoca expressão da cultura e da arte populares.