TEXTO E ILUSTRAÇÃO DO LIVRO MEMÓRIAS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO DE VIVALDO COARACY
Iniciava-se a Quaresma com a Procissão de Cinzas que
percorria a cidade na quarta-feira desse nome. Segundo Moreira de Azevedo, era
a mais aparatosa e que maior concurso de povo atraía de quantas se celebravam
no antigo Rio de Janeiro. Nem é de duvidar. Com os seus andores imponentes e
ricamente ornados, com a multidão de figurantes que a compunham:
"anjos", membros das irmandades em opas multicores, clero em
sobrepelizes de rendas, "virgens" cantando, estandartes, maceiros,
personagens simbólicos, guarda militar, acompanhamento de devotos portadores de
tochas—constituía imponente espetáculo para a assistência que se comprimia ao
longo das ruas por onde serpenteava o extenso préstito.
Instituída em 1647, dela se encarregavam os Terceiros da
Ordem da Penitência de cujo templo partia, descendo a Ladeira de Santo Antônio.
Depois de atravessar o Largo da Carioca, percorria as ruas principais do centro
da cidade, visitando várias igrejas em que se detinha, para após longas horas
recolher-se novamente ao Morro de Santo Antônio. Era a princípio composta de
vinte andores, número que sucessivamente foi reduzido a quinze, treze e dez,
sem prejuízo da riqueza e luxo com que eram adornados e da opulência da
vestimenta das imagens. Desses andores o mais notável era o da imposição das
chagas, com a imagem de São Francisco de Assis ajoelhado diante de um crucifixo
enorme, cuja cruz se elevava acima da altura do segundo pavimento das casas.
Doze homens robustos tornavam-se precisos para, com esforço, carregar esta
almanjarra, honra disputada entre os Irmãos Terceiros que, no dia seguinte,
exibiam aos conhecidos, com orgulho, os ombros machucados e chagados.
À saída e entrada da procissão havia salvas de
mosquetaria dadas pela tropa destacada para companhá-la. E após a recolhida, a
Irmandade distribuía enormes cartuchos de amêndoas, rebuçados e doces às crianças
que houvessem figurado como "anjos", o que não deixava de ser mais um
atrativo para a meninada empenhar-se com as respectivas famílias para
comparecer nesse caráter à procissão. O pecado da gula estimulava a devoção.
Um episódio interessante é digno de registro, como
exemplo de preconceito e superstição. Em 1849 deixou de figurar na procissão o
andor de São Benedito que, havia dois séculos, nela sempre tivera seu lugar
após o de Santa Isabel de Hungria. Naquele ano, porém, alguns Terceiros, mais suscetíveis
às distinções de pigmento, cismaram que "branco não carrega negro nas
costas, mesmo que seja Santo". A esdrúxula noção contaminou, por imitação
ou timidez, a confraria e São Benedito não encontrou quem lhe levasse o andor.
Teve que ficar abandonado e macambúzio na sacristia. Ora, nesse ano irrompeu no
Rio de Janeiro a primeira grande epidemia de febre amarela que assolou
cruelmente a população. Não tardaram, naturalmente, logo as beatas a propalar
nas massas crédulas a afirmativa de que tão tremendo castigo era indubitável
efeito da cólera vingativa do Santo ofendido. Resultado: no ano imediato, São
Benedito, de manto novo de veludo, com resplendor dourado, foi reintegrado na procissão
de Cinzas, com o andor pintado de novo e fartamente florido de palmas e rosas.
Era uma penitência de apaziguamento. Nem por isso, porém, deixou a febre
amarela de periodicamente fustigar a cidade, até que Osvaldo Cruz a extirpasse.
A procissão de Cinzas realizava-se imediatamente em
seguida ao carnaval. Com o declínio que os costumes trouxeram ao sentimento
religioso, derramado o espírito de irreverência, não faltaram os que nela
vissem uma espécie de anexo ou encerramento dos folguedos profanos da véspera.
Já havia quem a considerasse quase como um préstito carnavalesco retardado.
Figuras de mascarados, que apareciam noutras procissões também, começaram a se
imiscuir na de Cinzas. Desvanecia-se em grande parcela da massa popular o
respeito que as cerimônias religiosas deste tipo antes inspiravam.
Desvirtuou-se o caráter da procissão. Alguns dos elementos perniciosos que nela
se introduziram tomavam atitudes grotescas, provocando os risos, as chufas, os
gracejos de parte daqueles que, ao longo das ruas, assistiam à passagem do
cortejo. Surgiram incidentes e conflitos a agravar-se de ano para ano. Os
capoeiras, que infestavam a cidade, não perderam esta oportunidade de provocar
as arruaças em que se compraziam. Tomou-se, cada vez com maior frequência, necessária
a intervenção da força policial para manter a ordem e assegurar à procissão o
seu curso.
De tal forma se acentuaram estas condições que em 1861
decidiu a Venerável Ordem Terceira da Penitência, por proposta do Ministro Manuel
Gonçalves Machado, suprimir a Procissão de Cinzas que desde então não mais se
realizou. Dizia-se ao tempo ter a Ordem tornado esta decisão por insinuação das
próprias autoridades, a fim de evitar que estas se vissem forçadas a, no ano
seguinte, proibir a saída do préstito transformado em ocasião de escândalo
publico.
Vivaldo Coaracy, Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. A ilustração abre o capítulo "As Procissões" não sendo necessariamente da Procissão de Cinzas. Uma curiosidade: Em 1 de março de 1863 Machado de Assis, em crônica publicada em O Futuro, menciona a supressão dessa procissão, que portanto não se deu em 1861 como informa Coaracy. A crônica começa com este parágrafo: "Entre
os poucos fatos desta quinzena um houve altamente importante: foi a supressão
da procissão de Cinzas. Em 1862, logo ao começar a quinzena, publicou uma das
folhas diárias desta Corte um artigo pequeno, mas substancial, no qual uma voz
generosa pedia mais uma vez a supressão das procissões, como nocivas ao
verdadeiro culto e filhas genuínas dos cultos pagãos. Nem o autor, nem o mais crédulo
dos seus leitores, acreditaram que essa usança fosse suprimida; e a mesma
grosseria, o mesmo fausto, o mesmo vão e ridículo aparato passou aos olhos do
povo sob pretexto de celebrar os sucessos gloriosos da Igreja."