Texto publicado originalmente no Quarentena News, uma página de jornalistas no Facebook.
Central do Brasil. (Foto: Rogério Marques) |
Quantas histórias de trabalhadores e quantas músicas estão gravadas naquele caminho de ferro que começa no grande relógio de quatro faces, o Relógio da Central. Tirei essa foto da janela de um ônibus, a caminho de Niterói, e lá fui eu pensando nessas histórias.
Na minha infância e adolescência morei no Rocha, subúrbio carioca, e usei muito os trens da Central, atualmente SuperVia. Antes da popularização das máquinas de lavar, lembro das lavadeiras que vinham de longe, até de municípios da Baixada Fluminense, com suas trouxas grandes e pesadas. Desciam na estação Central do Brasil, aquelas guerreiras, às vezes acompanhadas de filhos pequenos, que não tinham com quem deixar, e pegavam os ônibus para a Zona Sul, onde moravam seus clientes.
Havia também os baleiros, os vendedores de mariolas, de amendoim, os pingentes que volta e meia despencavam. Na hora do rush, os batedores de carteiras e os famosos bolinas, hoje chamados de assediadores, aproveitavam-se da superlotação dos vagões para agir.
Muito antes das fake news, lendas urbanas corriam os subúrbios na velocidade dos trens. Como a do sujeito que urinou do alto de uma passarela sobre a linha férrea e morreu eletrocutado, quando "acertou" a rede aérea de alta voltagem.
MARCHINHAS DE PROTESTO
Em carnavais passados, a vida dura dos passageiros era retratada em marchinhas de protesto de grande sucesso. Como na música "O trem atrasou" (Paquito, Estanislau Silva, Artur Vilarinho), sucesso no Carnaval de 1941 na voz de Roberto Paiva, mais tarde gravada por outros artistas, entre eles Nara Leão. Naquela época, quando o trem atrasava, a Central do Brasil dava um memorando aos passageiros, para eles apresentarem aos patrões. Velhos tempos!
"Patrão, o trem atrasou
Por isso estou chegando agora
Trago aqui um memorando da Central
O trem atrasou meia hora
O senhor não tem razão
Pra me mandar embora."
"Mundo de zinco", de Wilson Batista e Antônio Nássara, retrata uma época em que as favelas e seus barracos, de madeira com teto de zinco, eram muito mais pobres do que atualmente. Na Rua Visconde de Niterói, de frente para a linha férrea, os trens sempre fizeram parte da Estação Primeira. Gravada por Jorge Goulart, “Mundo de zinco” foi uma das músicas mais cantadas nos carnavais do começo dos anos 1950.
"Aquele mundo de zinco que é Mangueira
Desperta com o apito do trem
Uma cabrocha, uma esteira
Um barracão de madeira
Qualquer malandro em mangueira tem."
Também de Wilson Batista, em parceria com Roberto Martins, a história do pedreiro Valdemar é a mesma de tantos trabalhadores que madrugam diariamente. A "Circular", citada na marchinha, é o bairro Penha Circular, perto da Avenida Brasil. A gravação original foi de Blecaute, cantor de muitos sucessos e pouco lembrado.
"Você conhece o pedreiro Valdemar?
Não conhece, mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem na Circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar."
Outro grande sucesso de carnavais passados é a marchinha "Zé Marmita", de Luís Antônio e Brasinha, gravada por Marlene. A canção retrata o cotidiano de milhões de trabalhadores, como os camelôs que vemos nas ruas diariamente, almoçando junto às suas bancas, sem interromper o trabalho.
"Quatro horas da manhã
Sai de casa o Zé Marmita
Pendurado na porta do trem
Zé Marmita vai e vem."
ZAQUIA JORGE E O TREM DE LUXO
Atualmente poucos lembram ou mesmo sabem quem foi Zaquia Jorge, atriz e empresária do ramo teatral, conhecida como "A vedete do subúrbio". Zaquia atuou no teatro de revista, também conhecido como teatro de rebolado, um gênero popular que misturava vedetes, humor, sátiras, sensualidade.
As revistas eram alvo de críticas dos conservadores. Para eles, aquele tipo de teatro não era arte. Além de preconceitos, as vedetes às vezes enfrentavam problemas com a censura. Ainda assim, o teatro de revista revelou talentos como Wilza Carla, as irmãs Carmen e Aurora Miranda, Dercy Gonçalves, Luz del Fuego, Virgínia Lane, Sônia Mamede, Elvira Pagã e tantas outras. Feministas desde sempre.
Luz del Fuego, adepta da prática do nudismo, criou o primeiro clube de naturismo do Brasil, em uma pequena ilha da Baía de Guanabara, a Ilha do Sol. Seu sonho de uma sociedade mais livre, sem ver pecado na nudez, acabou em 1967, quando foi assassinada na ilha por dois assaltantes, juntamente com seu caseiro.
Em abril de 1952, Zaquia Jorge criou o Teatro Madureira, primeiro e talvez único teatro de revista do subúrbio carioca, na Rua Carolina Machado, em frente à estação ferroviária. A peça de estreia foi "Trem de luxo", de Walter Pinto e Freire Júnior, que fez muito sucesso.
Cinco anos depois, em 1957, também num mês de abril, a carreira da atriz foi interrompida por uma tragédia. Aos 33 anos de idade, Zaquia morreu afogada quando tomava banho de mar com amigas na Barra da Tijuca. A notícia causou comoção na cidade e deu origem à música "Madureira chorou", de Carvalhinho e Júlio Monteiro, gravada por Joel de Almeida no Carnaval de 1958:
"Madureira chorou
Madureira chorou de dor
Quando a voz do destino
Obedecendo ao Divino
A sua estrela chamou."
Em homenagem à atriz, o teatro que ela criou passou a ter o nome de Zaquia Jorge, mas fechou poucos anos depois.
ESTRELA DE MADUREIRA
No Carnaval de 1975, o Império Serrano, escola de Madureira, homenageou a artista e ficou em terceiro lugar no desfile do Grupo 1. O samba-enredo escolhido pela escola foi "Zaquia Jorge, a vedete do subúrbio, estrela de Madureira", de autoria de Avarese, pseudônimo de Abimael Nascimento Álvares. O samba, interpretado por Roberto Ribeiro, começava com esse estribilho, que logo caiu no agrado do povo:
"Baleiro, bala
Grita o menino assim
Da Central a Madureira
É pregão até o fim".
Curiosamente, o samba-enredo que ficou em segundo lugar, de autoria de Roberto Ribeiro, Alcyr Pimentel e Cardoso, fez muito mais sucesso. Mais tarde, foi gravado por Roberto Ribeiro, que encurtou o título para "Estrela de Madureira". Passou, então, a ser tocado nas rádios e acabou tornando-se um clássico do samba.
"Brilhando, um imenso cenário
Num turbilhão de luz, de luz
Surge a imagem daquela
Que meu samba traduz
A estrela vai brilhando
Mil paetês salpicando
O chão de poesia
A vedete principal
Do subúrbio da Central
Foi a pioneira.
E um trem de luxo parte
Para exaltar a sua arte
Que encantou Madureira
Mesmo com o palco apagado
A apoteose é o infinito
Continua a estrela brilhando no céu.”
À noite, voltando de Niterói, a caminho de casa, passo novamente pela estrada de ferro de tantas histórias. Vou no ônibus pensando na Estrela de Madureira e em tantas outras atrizes que, em defesa de sua arte, da liberdade, dos direitos das mulheres, enfrentaram todo tipo de preconceitos e jamais desistiram.