"uma cidade imensa e assustadora" |
O ano? Começo do século XX... Foi aí que tudo começou. Nossa semente, que veio nos corpos dos que um dia iriam se encontrar e se unir, sementes da terra e do além-mar, dormia tranquila à luz dos lampiões da Av. São João. Uma coruja fortuita olhava por entre as chaminés das fábricas, antevendo lojas se abrindo e o guinchar dos bondes, previa o sol, que não demoraria a dissipar o nevoeiro das frias madrugadas. Se ela tivesse uma bola de cristal, veria através dela, o futuro: uma cidade imensa e assustadora, onde tudo seria possível e ao mesmo tempo lhe pareceria impossível haver um lugar assim. Mas era só uma coruja. Uuuu... Uuuu... bateu asas, voou.
Jazigo no Cemitério da Consolação: "Pousou num cemitério" |
Pousou num cemitério, onde a vida parecia ainda mais obscura e misteriosa. Sim, vida. Ali repousavam os corpos do que prepararam o caminho para as futuras gerações, dos que sonharam, ousaram, realizaram, se tornaram quase imortais, e por isso viviam ainda, nos patrimônios construídos, nos bustos de bronze aqui e ali, na memória da geração anterior. Uuu... Uuu... Voou de novo...
E pousou no alto do sobrado. Ah, o sobrado... suas telhas tão acolhedoras, quanto a própria cidade parecia ser aos humanos que já se agitavam, se preparavam para mais um dia... dormir não era para os humanos de São Paulo. Dormir era um luxo supremo, que servia apenas para descansar o corpo, porque a alma, ah a alma, voava ainda mais alto que a coruja.
Ouviu o rodar de uma carroça de leite e viu os pássaros acordando lentamente, e um pardal lhe avisou que o sol não tardaria. E se recolheu.
Estátua do Pequeno Jornaleiro na Rua Sete de Setembro, Rio de Janeiro |
Então o pardal passou voando perto do garoto de calças curtas que andava apressado, para pegar os primeiros jornais e levá-los até a Estação da Luz, para vendê-los. Anunciaria as manchetes do jornal do dia, como quem anuncia a evolução dos tempos. O menino jornaleiro e o pardal olhavam as muitas pessoas que passavam apressadas, sem notarem que a flor se abriu, as frutas estão quase maduras na árvore da praça, e... Oh! Um bonde atropelou um transeunte! Que desastre! Esta cidade está caótica!
Mas mal sabiam que muitos mais estavam morrendo nas trincheiras do Vale do Paraíba, em nome de São Paulo, em nome da Constituição.
O menino jornaleiro, de repente, se viu diante do prelo de um jornal que levava o nome da cidade e do estado, não mais de calças curtas, mas de avental, manuseando os jornais, vendo o avanço de Hitler sobre a Europa, e pagando uma fortuna por um pão para levar para sua casa, na Bela Vista. Tudo controlado por racionamento, um futuro tão incerto. Tempos sombrios... Se ele voltasse a ser um menino, pensava, certamente teria medo da cidade, tão moderna, se enchendo de arranha-céus medonhos e temíveis, pessoas que nem dão mais um bom dia ao que passa ao seu lado, que não têm tempo a perder com sentimentalismos e trivialidades. Então ele se refugiava no circo, nos cinemas, nos campos de futebol. E eis que já quase se aposentando, rodando seus últimos jornais da manhã, lia a estranha notícia da mudança da capital do país. Será que São Paulo continuará a crescer? – pensou. Será que meus filhos e netos verão dias de progresso, como nos filmes americanos e seu way of life, ou saberão o que são as chagas vermelhas que a foice e o martelo provocam? Seremos homogeneizados pelo capitalismo, ou massacrados pelo comunismo? E São Paulo foi tomado pelos militares, que chegavam em caminhões, muitos mais do que seria de se imaginar.
Bombas estavam sendo lançadas nas ruas, cavalaria, prisões, professores perseguidos, estudantes desaparecidos, trabalhadores em greve, São Paulo parecia estar se acabando. Sim, era o fim da cidade em que nasceu.
Mas São Paulo é como a Fênix. Rapidamente começaram a chegar famílias do norte, buracos e mais buracos pela cidade, mais caos, mais arranha-céus, mais carros, mais gente, mais casas, mais ônibus (ué! cadê os bondes?), mais comércio, mais indústrias, mais e mais e mais. Metrô! Shopping! Refugiados! Anistia! Eleições Diretas...
"meditavam nos templos budistas" |
O menino dos jornais era um senhor idoso, e as memórias se misturavam dentro dele, como a história de São Paulo se misturava intrinsecamente à memória do país, enquanto tomava um café, recostado na poltrona do terraço, olhando o céu cor de rosa, numa tarde de outono... Seus filhos e netos desfrutavam de vários países, viajavam pelo mundo sem sair do lugar... Moravam na Itália da Bela vista, iam à Espanha do Cambuci, frequentavam as missas portuguesas da Vila Maria, compravam roupas ocidentais na Israel do Bom Retiro, se deliciavam e compravam variedades no Oriente Médio do Parque Dom Pedro II, meditavam nos templos budistas no Japão da Liberdade, e tantas outras coisas de tantos outros países, dentro da cidade, que fazia o que podia, através de um esforço comunitário, para oferecer o de melhor, para todos, sem distinção. Uma cidade que “amanhecia trabalhando, que não parava de crescer, como dizia a canção”, e que, ao mesmo tempo, sabia o que é “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como dizia outra canção.
Fechou os olhos, e o menino de calças curtas, com os jornais debaixo do braço, saiu feliz para as ruas de paralelepípedos, tomando cuidado com os bondes, gritando as manchetes do dia...
— Vô, preciso fazer uma crônica de São Paulo, para a faculdade... você me ajuda?
— Eu nasci aqui. Eu amo São Paulo. Eu vi esta cidade crescer, e como era linda... como é linda... como me orgulho de dizer que sou paulistano...
Cristo |
— Mas vô, como o senhor pode amar este caos, este barulho e esta poluição? Essa gente que nem dá bom dia, que pára com qualquer chuvinha, com qualquer acidente? O senhor não pode amar uma cidade que só tem fila e mais fila, que mói a gente de tanto estresse, que é tudo tão caro, que não tem mar! Não tem Cristo, nem Bondinho, nem Maracanã... São Paulo é o túmulo do Samba, já disse Vinicius de Moraes e ainda por cima, o Carnaval não se compara ao meu Rio querido!
— Mas eu amo... sabe, meu bem, esta cidade é um caleidoscópio. A gente olha, tá de um jeito. Olha de novo, tudo mudou. Esse é o encanto dela. E as cores, as formas, o cheiro, uma força mística e terrena... uma metamorfose sem fim... até o clima mudou!
— Me conta, vô... como era, quando o senhor era um menino...
— Eu morava no Brás. E vendia jornais. E pelos jornais, acompanhei tudo que de melhor e de pior aconteceu nesta cidade. E vivi o bastante para estar aqui, agora, te contando estas coisas... Foi assim: No começo, foi Anchieta, os Bandeirantes e a gente nem sabia o que era dinheiro. Tudo era na base da troca. Daqui partiam as expedições para o interior dos sertões intocados. A Igreja Católica mandava em tudo, sabia de tudo, registrava tudo o que podia.
— Mas o senhor nem era nascido nessa época!
Hospedaria dos Imigrantes em 1920. Hoje abriga o Museu da Imigração. |
— Ué! Você não quer falar de São Paulo, de como nós somos e porque somos? Somos quatrocentões dos brasões enferrujados! Somos migrantes, emigrantes e imigrantes foragidos, somos endinheirados que investimos nesta Terra Nova, somos escravos libertos, somos o resumo do mundo. O Resumo do mundo...