ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

26.12.07

GRANDES E PEQUENAS MARAVILHAS

Ivo Korytowski


Existem grandes maravilhas: comer mancheias de caviar ao som de balalaicas às margens do Mar Cáspio. Mas existem pequenas maravilhas também: entrar na primeira padaria que surgir pela frente e escolher a dedo aquele pão doce cheio de creme pra sair comendo pela rua, ou o croissant (ou pão de provolone) pra saborear em casa, camada de manteiga com sal e geléia de morango — ou prefere damasco?

Existem grandes maravilhas: excursão de degustação pelos vinhedos de Borgonha. Mas existem pequenas maravilhas também: entrar em botequim qualquer e saborear aquela latinha de Bohêmia, ouvindo todo o papo furado daquele pessoal que parece não ter horário nem compromisso como você.

Existem grandes maravilhas: assistir à peça de Shakespeare em Stratford-upon-Avon. Mas existem pequenas maravilhas também: ver capítulo de novela qualquer na televisão. Não acompanhar compulsivamente toda e qualquer novela, dia após dia, mas ver um capítulo aleatoriamente, sem saber muito bem a história. Na novela, é como se as revoluções estéticas do século XX jamais tivessem ocorrido. Sua lógica, totalmente romântica, folhetinesca, rocambolesca: incríveis coincidências, amores impossíveis, expectativas dilacerantes — culminando no final feliz! E os diálogos? Os diálogos, de tão naturais, até parecem reais — a gente não se dá conta de que um autor, um escritor, um roteirista escreveu aqueles diálogos.

Existem grandes maravilhas: ouvir a Filarmônica de Berlim, com toda a pompa e circunstância, em seu país natal. Mas existem pequenas maravilhas também: ouvir o CD favorito no momento — que pode ser aquele trio de Schubert, o álbum do ERA ou o velho disco de boleros remasterizado — à meia-luz, balançando na rede, incenso indiano queimando.

Existem grandes maravilhas: ganhar pendentif de ouro do namorado. Mas existem pequenas maravilhas também: beijoca estalada na orelhinha! Existe coisa melhor?

Existem grandes maravilhas: ir a Roma e ver o papa. Mas existem pequenas maravilhas também: subir a Santa Teresa, Rio de Janeiro, e ver o puja no templo budista.

Existem grandes e pequenas maravilhas. E dado que os extremos se tocam, as pequenas acabam se revelando tão prazerosas quanto as grandes. Pensando bem, as pequenas saem ganhando: afinal, poupam-nos de estafantes deslocamentos, do aperto de lata de sardinhas e turbulências dos aviões, das intermináveis prestações pós-viagem...

Afinal, não é a toa que reza o ditado: boa romaria faz quem em casa fica em paz.


Do livro Édipo. O meu livro - o melhor presente de fim de ano para quem curte uma boa leitura - pode ser comprado com bom desconto no site das Lojas Americanas.
Sobre o livro, disse Antonio Carlos Villaça: "Édipo nos revela um grande contista. Um dos melhores contistas do Brasil de hoje. O livro nos mostra a perfeição de um estilo, argúcia da observação, análise implacável, minuciosa, leve. É um contista fluente, ágil, malicioso. Tão humano! O irmão de Marques Rebelo."

Foto da Praia de Ipanema vista do Arpoador de Ivo & Mi

30.11.07

RUA DO LAVRADIO

Fênix em estilo eclético
Da decadência ao renascimento, livro conta a história da Rua do Lavradio
Lívia de Almeida (matéria publicada originalmente na Veja Rio de 28/11/07)
Fotos do editor do blog





Nos idos de 1771, o vice-rei português decidiu abrir uma via que iria atravessar um charco entre os Arcos da Lapa e o emergente Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes). Batizada com o nome do governante, o marquês de Lavradio, a nova rua foi ocupada por chácaras e solares, residências de gente abastada. A partir de então, a história da Rua do Lavradio, do luxo à decadência, da boemia ao abandono, da lama ao renascimento como pólo da vida cultural da cidade, tem sido recheada de lendas, personagens folclóricos e muitos altos e baixos. Com 700 metros de extensão entre as ruas do Riachuelo e a Visconde de Rio Branco, ela demonstrou nos últimos dez anos sua vitalidade graças ao esforço dos comerciantes da área, especialmente antiquários. Em 1996 eles criaram, aos sábados, uma feira de antiguidades que inevitavelmente acabava em roda de samba. A partir daí a rua renovou-se, ganhou melhoramentos urbanos e iluminação, virando atração turística.



"Em 1997, havia onze bares. Hoje são 23, para todos os tipos de público", diz o secretário municipal de Urbanismo, Augusto Ivan Pinheiro, que desde os anos 80 batalha pela preservação e revitalização do Centro. Ele calcula que as atividades culturais atraiam para a área cerca de 30.000 visitantes por mês. "Ressurgiu das cinzas como uma fênix", descreve o empresário Plínio Fróes, dono das casas noturnas mais badaladas do pedaço, como o Rio Scenarium, a cachaçaria Mangue Seco e o bar Santo Scenarium. A história da Rua do Lavradio, do luxo ao lixo, e sua volta por cima são contadas com primor no livro Rua do Lavradio (Andréa Jakobson Editora, 240 págs., R$ 95,00), que será lançado na terça (27) no Rio Scenarium, com organização de Augusto Ivan e Eliane Canedo. "Tínhamos muita vontade de registrar a transformação de uma rua completamente degradada em uma história de sucesso", explica Fróes, idealizador do projeto.



As imagens registradas pelo fotógrafo Renan Cepeda celebram os detalhes da arquitetura eclética dos sobrados que sobreviveram, construções da segunda metade do século XIX. Do lado par, pouca coisa sobrou em conseqüência das desapropriações da época do desmonte do Morro de Santo Antônio, nos anos 30, um processo demoradíssimo que deu origem aos terrenos onde foram construídos os arranha-céus da Petrobras e do BNDES e, mais recentemente, um espigão pós-moderno do arquiteto Paulo Casé. O livro traz histórias saborosas do passado. No fim do século XIX, sabe-se que a rua tinha virado uma espécie de extensão da Praça Tiradentes e chegou a ter seis teatros. Na decadência, depois da reforma urbana do prefeito Pereira Passos, muitos sobrados foram convertidos em cortiços. Madame Satã, por exemplo, o famoso malandro valente, transformista, viveu no sobrado sugestivamente numerado como 171. Não se conseguiu descobrir, no entanto, onde ficava o infame Le Chat Noir, descrito em 1912 por João do Rio, outro morador da rua, como "um cabaré com todo o sabor do vício parisiense, tudo quanto há de mais rive-gauche". São segredos que os anjinhos sapecas das fachadas não contam para ninguém.



A tradicional Feira Rio Antigo, na Rua do Lavradio, ocorre no primeiro sábado de cada mês. Mais informações no site da Riotur.

5.11.07

COM DALLIER NO JARDIM BOTÂNICO


Quem visita regularmente nosso blog deve ter lido a postagem Dallier e o Morro da Conceição (pra ir até lá, clique em "Morro da Conceição" no menu Destaques do Blog da esquerda). Ele é um dos artistas plásticos que têm ateliê nesse aprazível morro do centro do Rio. Visitar o Morro da Conceição sem ver o ateliê de Dallier é como visitar Roma sem apreciar a Capela Sistina.

Mas Dallier nasceu e passou sua infância numa região da Gávea hoje considerada parte do bairro Jardim Botânico. Quem percorre a Gávea e o Jardim Botânico atualmente não imagina que, na virada do século XIX para o XX, lá se instalaram quatro fábricas de tecidos, passando a atrair considerável população operária, que fixou moradia nas proximidades das indústrias. Escreve Brasil Gerson na clássica História das Ruas do Rio: “A Gávea, apesar de sua aparência ainda tão campestre, se converteu num dos bairros mais industriais do Rio e, pois, de população operária mais densa — razão pela qual nela tanto repercutiria a violenta greve geral de 1918, dirigida pelos anarquistas.” (As fábricas de tecidos Corcovado e Carioca são abordadas no excelente blog Curiosidades Cariocas.)

Convidei Dallier para percorrer comigo a região onde passou sua infância. Aqui estão as fotos que tiramos e seus comentários (entre aspas), além de um depoimento seu sobre os velhos tempos.
E antes que eu me esqueça: visitas ao ateliê de Dallier podem ser agendadas pelo e-mail dallier@oi.com.br. E não deixem de visitar o blog do Dallier para conhecerem um pouco mais do morro da Conceição e de sua arte. É isso aí!


Antiga casa de cômodos na rua Lopes Quintas, 211


Rua Lopes Quintas vista da janela do brechó


Janela do brechó Estela Oliveira (Rua Lopes Quintas, 53)


Dallier em frente ao brechó


Miau


"A vila onde morei, na Lopes Quintas, durante 15 anos, dos 7 aos 22 anos, e de onde me mudei no dia do suicidio de Getulio Vargas"

"10 de julho de 1932. Em plena revolução eu nasci, entre tiros e correrias vim ao mundo nesse dia tumultuado. Fui amparado pelas mãos carinhosas, em casa, por minha mãe preta de nome Judith, com quem meus pais dividiam a casa de número 28 de uma ruazinha de nome Estela, quase no fim da Pacheco Leão, bem pertinho do Horto Florestal. Minha mãe não teve leite para me amamentar, tampouco ao meu irmão Oswaldo, nascido quase dois anos antes. Foi Dona Judith quem nos amamentou e foi de seus seios negros que nos alimentamos no princípio de nossas vidas. Ali vivemos por mais algum tempo até que viemos morar no Morro da Conceição, na Praça Mauá [onde Dallier tem hoje seu ateliê]. Minha mãe era operária da Fábrica Carioca e todos os dias viajava até a Gávea para trabalhar juntamente com minha tia Rosa.

Já quase completando sete anos, meus pais resolveram voltar ao bairro onde nasci. Fomos morar em uma pequena casa de vila na Rua Lopes Quintas onde anteriormente morava o contramestre de minha mãe na fábrica, cujo apelido era Jaime Malhado. A casa além de ser muito pequena estava em péssimo estado, meu pai que ainda não havia visto a casa recusava-se a entrar. As paredes esburacadas, a cerca com pedaços de madeiras amarradas com trapos velhos e sujos mostravam o que nos esperava. Minha mãe confiava na capacidade de meu pai, que era um ótimo pedreiro, e como ela já estava cansada de viajar diariamente, chegando tarde em casa, e de subir a ladeira do morro da Conceição todos os dias, insistiu em ficarmos. E assim foi.

Meu pai, apesar de sua opinião, colocou mãos à obra e, aos poucos, a casa foi ficando habitável. Pertinho da fábrica, minha mãe acordava cedo, deixava a comida pronta, a casa arrumada e voltava na hora do almoço com algumas colegas a quem dava pensão, e depois quando soava o primeiro apito voltavam para a fábrica. Devo dizer que minha mãe sempre era a última a entrar de volta justamente quando o último apito tocava e ninguém mais poderia entrar."


"O interior da Igreja Divina Providência onde fiz minha primeira comunhão, realizada pelo Padre Vicente, que mais tarde morreu atropelado. e onde se ouvia aos domingos na missa a voz da cantora lírica Diva Pierante"


"Frente da Igreja Divina Providência" (observe atrás o Cristo)


"Sentado na frente de um novo restaurante onde, no meu tempo de menino, existia uma padaria"


"Idosos jogando cartas na esquina da Rua Abreu Fialho. Vêem-se as casas que antes pertenciam à Fábrica Carioca, onde minha mãe trabalhava."


"Em frente à casa onde nasci, na Rua Estela, 28"


Casa na "Pequena Itália", a área em torno da antiga Fábrica Carioca


"Pequena Itália"


Ainda a "Pequena Itália"


"Bar de esquina da Pacheco Leão e Rua Corcovado que virou reduto da TV Globo"


"Bebendo um chopinho no bar"


"De braços dados com o escritor Otto Lara Rezende - quem diria"


Botequim na esquina da Pacheco Leão com Jardim Botânico. Fotos do editor do blog.

3.11.07

COW PARADE RIO 2007

Vaca do Drummond (Celso da Silva e Alexandre Cardoso)

Cowçadão (Louise Avigdor Hasky)

As vaquinhas decoradas que compõem a “Cow Parade”, maior exposição de rua do mundo, invadiram a cidade ontem [3 de outubro de 2007] e deram o que falar. Vacas de fibra de vidro decoradas por artistas plásticos foram instaladas nos pontos mais movimentados do Rio e chamaram atenção de cariocas e turistas.

“São lindas! É bom que dá uma valorizada na cidade”, disse a carioca Mara Cruz, 48 anos. “A ‘Cow Parade’ reforça a idéia de que o Rio de Janeiro é um lugar interessante, está animando a cidade”, completou ela, observando a “Vaca do Drummond” [primeira foto acima], sentada ao lado da estátua do poeta, em Copacabana. A peça é assinada por Celso da Silva. Amigo de Mara, Paulo Neri de Oliveira, 31, é de Manaus e está na cidade a trabalho. “Só no Rio mesmo para encontrar esse tipo de programação cultural, tão divertida assim”, elogia Paulo.

Na verdade, não é só no Rio. Criada há nove anos, a “Cow Parade” já passou por mais de 30 cidades de diferentes países e foi vista por mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. No Rio, as cerca de 100 esculturas ficam até 26 de novembro. Em dezembro serão leiloadas, em prol de obras sociais da Prefeitura.
(Texto extraído do jornal O Dia de 4 de outubro de 2007)


Olhar o Brasil - Caras do Brasil (Chicô Gouvêia)

Caurioca (Ruth Reis)

Vacas estão espalhadas pela nossa cidade. As crianças urbanas estão atualizando seus conhecimentos rurais e muitas experimentando seu primeiro contato, extasiadas. Acho até que deveriam aproveitar a idéia e instalar galinhas, porcos e demais animais que outrora eram do convívio humano e, hoje, são seres distantes do nosso olhar, mas perto do nosso prato e das estantes do supermercado. Quem sabe, educativamente, instalar diversas
vacas ao redor do Planalto em cenas moralizantes e motivadoras da ética, da probidade e do decoro? (carta de Márcio Mourão publicada no Jornal do Brasil de 8 de outubro)


Cowxinha de leite (Daniela Fisher)

Vaca orelhão (Fernando Tige)

Cowmprida (Ana Couto Branding & Design)

Rio de Norte a Sul (Ana Camelo)

Paraíso Tropical (Edgar Moura Brasil)

Nycowmed (Diogo Russo)

Marylisa Monroe (Fabio Malx)

Vá com Cowma! (Miguel Salgado "Road")

Cowçadão de Ipanema (Patricia Secco)

Vaca Praiana (Christina Murad)

Locowlize-se (Equipe de Criação Farm)

Cownstelação (Equipe de Criação H. Stern)

Provocowte (Daniella Di Nubila e Renata Gobert)

Fotos do editor do blog. Veja outras fotos da Cow Parade nas postagens de 11 a 18/10 do meu blog em inglês Rio de Janeiro Around the Year.

29.10.07

UMA AMIZADE ANTIGA

Texto de Cyro de Mattos especial para o Dia do Livro


Estátua de Manuel Bandeira ao lado da ABL


Estátua de José de Alencar perto do Largo do Machado

O livro é esse amigo que acompanha os seres humanos há séculos, possibilitando o crescimento interior. Conhecemos outras vozes do mundo com esse amigo. Inauguramos a vida com novos olhares, superamos vícios e medos. Sabemos de casos que divertem, viajamos por terras nunca antes conhecidas. Damos vôo à razão através da linguagem que usa para cada tipo de leitor. Um de seus milagres consiste em tornar leve todo o peso terrestre feito de solidões, angústias e perdas. Sua amizade não trilha os caminhos do interesse, transpira sinceridade. Com ele aprendemos que só talento não basta para quem quiser se tornar um filosofo, cientista ou poeta, faz-se necessário o hábito da leitura. Esse amigo está pronto para dizer que, vivendo na sua companhia, a vida fica mais fácil. Matamos até a morte.

Gosta de se mostrar nas livrarias. O lugar mais digno para acomodá-lo em nossa casa é a biblioteca. Quem não tem poder aquisitivo para adquiri-lo, pode achá-lo em uma biblioteca pública. Lá está nas prateleiras o amigo solidário, esperando nossa visita para uma conversa útil. Mostra muitas coisas numa cumplicidade que informa, dá prazer, encanta. Faz aparecer paisagens impossíveis, que vão entrando na medida que uma página puxa a outra.

Livro xilografado, impresso com pranchas de madeira gravadas. Em rolos de papiro e também de pergaminho, no Egito. Nas telas de seda da China. Recolhido em manuscritos, no trabalho paciente e anônimo dos bibliotecários de Alexandria. Livro da sabedoria, do antigo Testamento. Filosófico, científico e literário. Repositório do pensamento humano, dos povos para os povos, de geração em geração, com seus rumores milenares.

Vem contribuindo para que o mundo mantenha portas e janelas abertas, o sol acenda manhãs, o vento sopre momentos que somam. Das formas primitivas às técnicas de editoração moderna com esse amigo, como o braço ao abraço, os seres humanos aprendem que os dias de exercitar a existência e conhecer o outro ficam mais humanos. O padre Antônio Vieira disse certa vez que “o livro é um mundo que fala, um surdo que responde, um cego que via, um morto que vive.” Acho que a fala da nossa maior figura da oratória sacra combina com o que eu li num pára-choque de caminhão: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.” Verdade. Hoje, na terceira idade, reli “O Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupéry, a seguir “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Saí depois para a vida rejuvenescido.

De cabeceira ou de bolso, o fiel amigo por vias e arredios, com seu poder de falar silêncios.

Fiquei certa vez abatido por conta da afeição que nutro por esse amigo. Quando morei na fazenda São Bernardo, nas imediações de Ferradas, chão onde nasceu o romancista do mundo Jorge Amado e o poeta Telmo Padilha, os livros que trouxe do Rio de Janeiro ficaram encaixotados até que pudesse comprar uma estante digna de recebê-los. E, numa noite sem estrelas, a chuva caiu pesada na terra centenária. O telhado velho da pequena casa não suportou o volume da água que corria por entre as calhas. Em pouco tempo, poças d’água formaram-se em vários cantos da casa por causa das goteiras.

No outro dia, encontrei molhados os caixões que guardavam velhos amigos. Lembro que apressado fui retirando do primeiro caixão “Além dos Marimbus”, de Herberto Sales, Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, “Uma Vida em Segredo”, de Autran Dourado, “Fábulas”, de La Fontaine, “Dom Quixote”, de Cervantes, “O País de Outubro”, de Ray Bradbury, “A Metamorfose”, de Kafka, “O Muro”, de Sartre, “Poesias”, de Manuel Bandeira, “O Salto do Cavalo Cobridor”, de Assis Brasil, e “História da Civilização Ocidental”, de Edward McNall Burns. Foram os livros mais atingidos pela chuva que caíra naquela noite cortada por relâmpago e trovoada. Páginas manchadas, letras borradas, capas danificadas. Ainda tentei salvá-los, espalhando-os abertos no passeio para que fossem aquecidos pelos raios de um sol tímido.

Aqueles livros haviam sido adquiridos com o dinheiro da mesada que o pai mandava para o moço do interior na Capital, onde cursava a Faculdade de Direito. Outros foram comprados nos meus anos de jornalista no Rio de Janeiro. Meu coração tinha um tremor quando descobria um desses amigos na vitrina, balcão ou prateleira de livraria.

À noite peguei no sono como um herói inútil. Acordei deprimido no outro dia. Aqueles que não consegui salvar tinham me ofertado ricos e prazerosos momentos de leitura, varando as madrugadas. Madrugadas do homem solitário, que, no silêncio da noite, lograva extrair sentidos da vida com aqueles companheiros. Jamais esqueci isso.



Estátua de Carlos Drummond de Andrade na Praia de Copacabana



Estátua de Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras (fotos do editor do blog)