Antes de emigrar definitivamente para o Brasil fugindo da barbárie nazista, Stefan Zweig já fizera uma viagem pelo país, descrita no ensaio PEQUENA VIAGEM AO BRASIL, escrito no outono de 1936 e incluído no livro ENCONTROS COM HOMENS, LIVROS E PAÍSES, publicado pela Editora Guanabara em 1939 em tradução de Milton Araujo e gentilmente cedido a este blog por Salomão Rovedo. Fotos do Rio antigo extraídas de PPS que circularam pela Internet. O texto aqui reproduzido é um raro relato da entrada de navio na Baía da Guanabara que tanto impressionava os visitantes da Cidade Maravilhosa — incluindo minha mãe como você pode ler em seu diário clicando em Diário de minha mãe no menu à direita — antes do advento da aviação intercontinental.
De manhã cedo, já todos os passageiros esperam com
impaciência e curiosidade, a bordo, munidos de binóculos e câmaras; ninguém
quer perder a ocasião de ver a entrada famosa do Rio de Janeiro, mesmo aqueles
que já a conhecem de muitas viagens. Ainda o mar brilha azul e metálico como há
dias e dias, numa monotonia acalmante e ao mesmo tempo fatigante, e, não
obstante, sente-se a proximidade da terra; respira-se a terra antes de vê-la,
pois o ar torna-se de repente úmido, doce e mais suave, uma exalação pesada vem
voando imperceptivelmente, conglomerada, nas profundidades dos bosques imensas,
do hálito das plantas e da umidade dos cálices, aquela exalação das regiões
tropicais, indescritível, quente, mormacenta, como o vinho em fermentação, que
de maneira ensurdecedora, nos torna ébrios e cansados ao mesmo tempo. Agora,
finalmente, muito ao longe, avista-se um contorno: uma cadeia de montanhas
destaca-se com alguma incerteza ainda, nebulosa, no horizonte, e, à medida que
o navio sulca seu caminho pelas águas, vai sendo avistado mais
perceptivelmente; é uma série de montanhas que com braços estendidos protege
uma das maiores baías do mundo, a bela baía de Guanabara. Todos os navios de
todas as nações caberiam aí ao mesmo tempo, tão vasta e grandiosa ela é, abaulando-se
com suas múltiplas enseadas e promontórios. Dentro dessa concha gigantesca
arrombada estão espalhadas, como pérolas, inúmeras ilhas, cada uma diferente em
forma e cor. Algumas mal aparecem, uniformes e acinzentadas, de dentro do mar
ametístico; podia-se tomá-las, à distância, por baleias, tão nuas e peladas são
suas costas. Outras são oblongas e pedregosas, estriadas como crocodilos;
outras povoadas de casas; algumas são fortalezas, outras assemelham-se a
jardins flutuantes com palmeiras e flores; e, enquanto se admira curiosamente
essa variedade inesperada das formas, com o auxilio do binóculo, vêm-se
destacar ao mesmo tempo, bem ao fundo, plasticamente, as montanhas, também cada
uma delas diferente, cheia ·de caprichos. Uma é nua, a outra coberta de um
vestido de palmas verdes, esta com penhascos, aquela cingida por um cinto
resplandecente de casas e jardins; parece que a natureza, como escultora
atrevida, experimentou colocar todas as formas terrestres uma ao lado da outra;
e por isso, a fantasia do povo deu nomes terrestres a cada uma dessas figuras
de pedra: Morro da Viúva, Corcovado, Cão, Dedo de Deus, e, à mais visível de
todas, o nome de Pão de Açúcar. Esta montanha, subindo diante da cidade, com
seu declive abrupto, acha-se na entrada do Rio de Janeiro como a estátua da
Liberdade diante de New York, ambas como o símbolo antiquíssimo e imóvel destas
cidades. Por cima de todos esses monólitos e montanhas vê-se, como capital
dessa geração de gigantes, o Corcovado, onde se eleva a imagem de Jesus, de
braços abertos (à noite toda iluminada), abençoando o Rio de Janeiro como um
padre ao levantar o hostiário sobre os crentes ajoelhados.
Agora percebe-se a cidade após a passagem por um complicado
labirinto de ilhas. Não se avista, porém, toda de uma vez. Não é como em
Nápoles, na Argélia ou em Marselha, cujas cidades aparecem num panorama de
casas, como uma arena aberta com degraus de pedras, logo à primeira vista.
Quadro por quadro, parte por parte, plano por plano, desdobra-se a cidade do
Rio de Janeiro como um leque, e é por isso que a sua entrada é tão dramática,
tão inexpressivelmente admirável e surpreendente. Cada uma dessas baías
povoadas, de cuja reunião resulta a sua costa, é separada uma da outra por meio
de cadeias de montanhas — são como as varetas do leque, que isolam cada quadro,
reunindo-as ao mesmo tempo. Finalmente avistamos a praia arqueada. Aspecto
encantador! Um passeio vasto ao longo da praia, continuamente espumada pelas
ondas, com casas, praças e jardins; distingue-se claramente o hotel de luxo e,
elevando o olhar, os outeiros com as vilas cercadas de árvores — porém, novo
engano! É somente a praia de Copacabana, uma das mais belas do mundo, um bairro
novo e chic, não a própria cidade. Ainda é preciso passar o Pão de Açúcar, que
impede a vista; somente então é que se vê a cidade maciça e branca, olhando
para o mar e deslizando nas alturas verdes. Veem-se os jardins públicos das
praias, recentemente feitos, e o campo de aviação, que há pouco tempo foi ganho
do mar. Já vamos atracar e a impaciência será satisfeita. Mas não! Era
novamente um erro. Desta vez é a enseada de Botafogo e a praia do Flamengo; o
vapor ainda deve ser pilotado; ainda é preciso abrir-se outra folha desse leque
divino, resplandecente, com todas as cores; ainda é necessário passar a ilha da
marinha e aquela outra pequena com o palácio gótico, onde o imperador D. Pedro,
dois dias antes de sua deposição deu, sem nenhum pressentimento, o último
baile. E só agora podemos saudar as casas altas, uma só massa vertical; agora o
vapor pode atracar e estamos na América do Sul, no Brasil, estamos na cidade
mais maravilhosa do mundo — o Rio de Janeiro.
Essa entrada de uma hora é um acontecimento único no seu
gênero e comparável somente à impressão irresistível daquela de New York, porém
a saudação de New York é mais dura, mais enérgica, como um golfo setentrional
com seus cubos amontoados, brancos como gelo. Manhattam nos oferece uma
saudação viril, heroica; é a vontade humana indômita da América, uma irrupção
da força acumulada. Rio de Janeiro estende-nos os seus braços meigos de mulher,
recebe-nos com carinho, atrai-nos, entrega-se ao espectador, com uma certa
voluptuosidade. Tudo aqui é harmonia; a cidade, o mar, o seu verde e as
montanhas, tudo desliza como que ao som de uma música; mesmo os arranha-céus,
os navios, os reclames luminosos de muitas cores não perturbam; e esta harmonia
repete-se em acordes sempre novos. Diferente é a cidade vista do alto dos
outeiros e vista do mar; contudo, é sempre harmonia, multiplicidade desprendida
num conjunto completo, natureza que ficou cidade, e uma cidade que causa o
efeito da natureza. Pela maneira grandiosa e generosa que o Rio nos recebe, já
se sabe de antemão que a vista não se cansará de apreciar e a alma não se fartará
dessa cidade extraordinária.