IVO BARROSO
Numa semana cheia de denúncias, desastres, inundações e acidentes aéreos, fechando o mês de agosto (em que a “bruxa” andou solta), melhor será esquecer severinos e malufes e, para arejar as idéias, caminhar no calçadão. Mal porém chego à esquina (Igarapava/Visconde de Albuquerque), dou com a estonteante beleza citrina de uma árvore em trabalho de parto florescente. Milhares de flores campanulares circundando a copa espraiada e altaneira, que se sobrepõe aos negros fios elétricos e às redes de chumbo das comunicações. Um dossel amarelo-âmbar, como uma bela cabeleira loura, uma cabeça de anjo no alto daquele tronco que, esguio, sem galhos adjacentes, parecia ufanar-se de seu garbo e sua altura. Nem uma só folha, só flores. A floração, em toda a sua plenitude, devia ter arrebentado durante a noite, pois o chão não estava ainda salpicado com as gotas de âmbar das pétalas caídas; só uma ou outra flor pontilhava aqui e ali, como um grito de alerta na calçada em redor. Atravessei a rua, para melhor observar a visão que me transportara num segundo de um pesadelo de infâmias para a esperança de uma visão futura. Há tanto tempo não contemplava a Beleza, que já me havia esquecido de que ela existe e mora ao lado. Refeito do primeiro alumbramento, corri ao prédio em frente, ao feliz vizinho daquele portento floral, e perguntei ao porteiro se sabia o nome da árvore.
“Sei, não senhor; é a terceira pessoa que me pergunta, mas o jardineiro só vem na segunda. Vou saber com ele, pois também ando curioso”.
Foi melhor assim, melhor que o prodígio botânico permanecesse para mim no anonimato da espécie, assim como uma bela mulher que passa inidentificável pela rua. Já o bardo dizia What´s in a name? Seria desfazer o milagre se a resposta fosse, por exemplo: “Trata-se de uma Tabebuia tecoma, da família das bignoniáceas, de flores caducas sazonais, em formato ovóide, de florescência anual, cujo lenho é muito resistente à putrefação”. Não, aquela árvore não precisa ter nome nem função utilitária. É apenas um milagre de presença, para nos revelar o esplendor do efêmero. Um acidente visual, que nos permite considerar a transitoriedade do belo e a renovação indefectível da vida. Amanhã ou depois, quando passar de novo por ali, o chão estará coberto de flores amarelas, esmagadas pelas pessoas que as pisaram, enxovalhadas pela chuva da noite, espalhadas pelo vento que soprou do mar. Os galhos, no alto, estarão nus, voltados para cima como dedos votivos, suplicando por novas florações. O tronco esguio me parecerá velho e recurvo, de coloração exausta, como esses astros-deuses do cinema de ontem que hoje nos assustam com suas nostálgicas figuras enrugadas e disformes. É a vida que passa. Não creio que haja um momento, como no Fausto, que se possa dizer ao Tempo: “Pára! Porque és tão belo!” A vida está na renovação, na alternância, enfim no movimento que nos permite sonhar, esperar, contemplar e esquecer. Creio que voltei dali sem prosseguir na caminhada. Já havia feito um longo percurso dentro de mim mesmo com a simples contemplação de um momento inesperado. Era forçoso registrar em seguida o corolário da visão: a crise política que estamos vivendo tem um lado positivo, e tolo seria se nos entregássemos totalmente à descrença. Se um bando de oportunistas cretinos implodiram o sonho de um governo voltado para as conquistas sociais que por tanto tempo acalentamos, devemos esperar é que esse bando se auto-destrua em vez de abdicarmos de vez desse sonho que ainda temos. As folhas caídas são o prenúncio de novas florações.
Texto publicado no Jornal do Brasil em 10.09.05 e gentilmente enviado pelo autor para publicação neste blog. Foto do autor do texto. A árvore é um ipê-amarelo.