ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

5.2.24

A ALMA CANTANTE DE STELLA LEONARDOS, de CYRO DE MATTOS

 

Ascendino Leite, Jorge Amado, Nertan Macedo, Salim Atalla, Stella Leonardos, Edna Savaget em noite de autógrafos em 31 de outubro de 1960 no Clube Monte Líbano. Foto da revista O Cruzeiro.

Autora muito premiada, com destaque para nove láureas concedidas pela Academia Brasileira de Letras, Stella Leonardos (Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1923 - Rio de Janeiro, 11 de junho de 2019) publicou mais de uma centena de livros, entre romances, poemas, literatura infantil e dramaturgia. Formada em Letras Neolatinas, tradutora do inglês, francês, italiano, espanhol, catalão e provençal, sua estreia aconteceu com Passos na areia, em 1941. Os críticos costumam situar a vasta obra poética de Stella Leonardos na terceira geração do Modernismo, relacionando nessa condição os livros Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência (1974) e Romanceiro da Abolição (1986).

Nome dos mais festejados pela crítica, Stella Leonardos entregou por muito tempo sua vocação poética ao projeto de recriação de um Brasil bem brasileiro. Da sua alma cancioneira e romanceira salta um Brasil de sentimentos românticos, epicidades, ideais, relatos e saberes populares. Brasil iluminado de estados líricos, formado por elementos míticos, que irrompe do lugar onde nasce a história feita de passagens marcantes, ações, tantas razões e casos.

O épico apresenta, o lírico lembra, o dramático articula mundos interiores    dos seres humanos conflitantes na criação da vida. No palco da duração crítica e contínua dos acontecimentos expande-se a poesia de Stella Leonardos. Conota essa maneira íntima do lírico, calcada em permanente mergulho na memória, feita de emotividade, cena histórica e pesquisa. Gentis seus versos, em Memorial da Casa da Torre (2010) recordam vivências nas arcadas, aludem a finíssimos lavores nos salões e aposentos. Abrem-se nos portões com senhores de terras na época de conquista e domínio. Tocam no berço territorial da Pátria, no músculo dos negros, no primitivismo resistente dos indígenas. Restauram o homem através de intenções, ímpetos, sonhos e idealismo. Retiram-no do passado para ser lembrado no desassombro dos sertões vencidos, entoados na música rústica das boiadas.

Poesia é emoção condensada em linguagem mítica, rica, tensa e ambígua. Reflexão em suas formas geométricas calcadas na imagem, sob o pretexto da escrita para revelar uma ideia. Em Stella Leonardos mostra um discurso significante pontuado pelo som, no ritmo que ela imprime em sua maneira particular de sustentar a ideologia. Sua palavra cantante escorre musicalmente com interferência de vozes, tornadas dinâmicas, apropriadas nas lembranças e cenas descritas.

O registro que é feito do fato bom ou triste é mais endereçado aos ouvidos do que aos olhos. Sua dicção musical enceta versos que dialogam com a história, ecoam procedentes de alguém que permaneceu no tempo.  Em seus cancioneiros e romanceiros tão brasileiros, Stella Leonardos canta e conta. Revive o Brasil com maestria de poeta que encanta, consciente de que no rememorar tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo, como falou Fernando Pessoa.

Assinalada a terra por armas e brasões de uma gente remota, que aqui chegou por mares nunca dantes navegados, o governo português teve que enfrentar situações desfavoráveis para fazer a colonização. Um desses obstáculos consistia na imensidão da terra descoberta, com a sua mata de sono milenar, jamais incomodada. Foi necessário dividir a terra rica em capitanias, glebas de muitas léguas, e doá-las àqueles que tivessem condições de fixar o homem no solo.

Por quase três séculos, a Casa da Torre distendeu suas cordas e acordes de inúmeros serviços prestados ao Brasil, começando pelas guerras aos piratas, aos holandeses e da Independência. Dali partiram os primeiros desbravadores do Norte brasiliense, as intrépidas bandeiras, as principais entradas dos sertanistas do Nordeste.

Em Memorial da Casa da Torre, um dos episódios mais significativos da história do Brasil Colônia, oriundo da influência da prole mameluca de Garcia D’Ávila, que levou domínio e ambição às regiões desconhecidas, Stella Leonardos, com idade avançada, demonstra que ainda domina bem o verso e faz uma poesia cativante, bebendo na tradição da poesia de todos os tempos. Usa o arcaísmo e o neologismo para narrar os acontecimentos da pátria nascendo a passo de marcha. Na decorrência de versos que se alteiam com vozes em coro, de viva gesta, acende sinais luminosos da labareda que haveria de contribuir como ideal de heroísmo, cultura e civilização.

É da tradição da poesia ibérica vazar o amor e a saudade como figurantes que convergem para o lirismo e o épico. O registro de vultos e fatos heroicos são recorrências manejadas por rapsodos com inspiração no populário e saberes anônimos. No caso de Stella Leonardos, o relato poético se municia de pesquisa e de saberes locais do populário. Atenta, a poeta não se descuida de rimar memória e fatos que melhor repercutam ao fazer modelar do nosso cancioneiro e romanceiro. Seus livros aí estão espalhados para que sejam lidos como resultado da aproximação mágica de uma alma sensitiva à nossa memória, arrebatada de sentimentos românticos, valendo-se do histórico por quem ama a beleza e o valor exercido pela estima da Pátria.

No poema “In Memoriam”, introdutório ao assunto deste Memorial da Casa da Torre, Stella Leonardos abre seu verso terno para o que vai contar e cantar, com leveza deixa ser conduzida pela inspiração que lhe é particular:

 

No barro desses tijolos

Por mãos índias acalcado

Quanta voz índia não dorme?

Na alvenaria da pedra

Por mãos afras carregada

Quanta voz negra não pesa?

Na torre desse Castelo

Por brancos rostos vigiada

Quanta saudade não se ergue?

 

A autora desses versos torna suficiente a imagem que interpela e, ao mesmo tempo, contempla a passagem do tempo guardada na memória. Apoiada na sensação do que se refaz triste, sob um ritmo que atrai, nos embala e envolve até o final da cantiga. Como estratégia usual de seus cancioneiros e romanceiros, ela sabe tirar efeito na linguagem quando emprega o neologismo através dos vocábulos que inventa: saudadeado, largoandante, longivozes, multivária, plurilínguas, existenciar, surpresada, passilargo, fugileve, impulsada, noviterra, ensonho, sonoite, novihorizontes, azulando.

A Casa da Torre é a primeira grande fortificação portuguesa do Brasil. As pegadas dos valentes que a povoaram com desassombro inigualável dos tempos de Garcia Dávila renascem neste memorial poético de Stella Leonardos. Da cidadela em ruína, muralhas cobertas de musgo, gestos que resvalam por entre sombras, das fendas e rastros do poder extinto, reencontramo-nos na poesia de versos generosos. Das paisagens com passagens cheias de histórias marchamos, somos levados com o mesmo brilho das gerações que fundaram nossa nacionalidade.

O épico em forma de cancioneiro acontece com o Romanceiro do Bequimão (1979) na lírica de Stella Leonardos. Considerada pelos historiógrafos como nativista, embora haja divergência, a Revolta de Beckman aconteceu no Estado do Maranhão, em 1684. Foi um movimento que contestou o estanco, monopólio exacerbado da Companhia do Comércio do Maranhão, que atuava como uma das instituições fundamentais da ordem colonial, tanto quanto o escravismo e o latifúndio. Os que acham que não se tratou de um movimento nativista argumentam que houve apenas uma contestação de natureza econômica ao poder colonial, motivada pelo descontentamento contra o desmando da Companhia de Comércio do Maranhão.

Movimento nativista dentre os primeiros em território brasileiro, embora desencadeado por razões econômicas, foi impulsionado no seu inconformismo pelas discordâncias veementes dos comerciantes locais, que se sentiam espoliados pelo monopólio da Companhia, e os proprietários rurais que entendiam serem insuficientes os preços oferecidos pelos seus produtos. Além disso os apresadores de indígenas estavam inconformados com a aplicação das leis que proibiam a escravidão dos nativos. Nessa conjuntura de inconformismo, a população protestava contra a irregularidade do abastecimento dos gêneros e os elevados preços dos produtos.

Esses fatos, somados aos privilégios concedidos aos jesuítas, conduziriam à eclosão da revolta. Teve como líder Manoel Beckman, senhor de engenho, que contou na sua façanha de rebelado destemido com o auxílio do irmão Thomas, encarregado de escrever os cordéis e distribuir entre as gentes indignadas. 

Ante essa forma de opressão imposta pelo monopólio da Companhia, surge a figura do revolucionário Manoel Beckman, o Bequimão, português radicado no Brasil. Seu desempenho de rebelado contra a forma tirânica de atuar pela Coroa Portuguesa e que culminou na morte pela forca faz com que alguns estudiosos o considerem mártir da Independência do Brasil muito antes de Tiradentes.

A revolta foi debelada com a chegada de tropas a São Luís sob o comando do tenente-general Gomes Freire de Andrade. Foi expedida ordem de prisão contra Manuel Beckman, que fugira, oferecendo-se por sua captura o cargo de Capitão das Ordenanças. Para obtê-lo, Lázaro de Melo, afilhado e protegido do líder revolucionário, traiu o padrinho e o entregou preso às autoridades portuguesas.  Apontados como líderes da revolta, Manuel Beckman e Jorge Sampaio de Carvalho receberam sentença de morte pela forca. Os demais envolvidos foram condenados à prisão perpétua.

Esse o quadro histórico que motivou a poeta Stella Leonardos escrever o Romanceiro do Bequimão, não fazendo como de costume, no seu discurso lírico e épico, poesia da história, “mas contando sonhos sem conta”, inventando com uma lírica que encanta e uma épica que tudo apresenta esse tempo de cobiça e intriga. Com mergulhos da alma dentro do que aconteceu e diálogos oportunos com pessoas e fatos, através de linguagem cadenciada na rima herdada de suas raízes ibéricas, faz com que rudes brasis convirjam e brilhem nos intertextos que esplendem no ritmo de baladas e acalantos, permeados com elementos africanos, indígenas e populares.

 

Lá dos antigos sobrados

De azulejos feito a mão

Uma saudade em pedaços

Me conta do Maranhão

(página 15).

 

Sabe-se que a Lira é vista como a poesia do eu, da confissão ou da emoção. A palavra revela-se associada à música, à melodia que escorre de seu ritmo. Na poesia épica, o poeta apresenta os fatos singulares de um povo, narra os feitos de um herói através de acontecimentos extraordinários. A poesia lírica nas raízes mostra-se associada aos cancioneiros, reunião de canções, transmitida por via oral com seus temas populares. O romanceiro é atividade poética luso-espanhola, de natureza épica e lírica, anônima, foi transmitida por via oral durante a Idade Média, configurada nos romances, compilada em volume integral ou antológico.

Tanto no cancioneiro como no romanceiro, o que se nota na poética de Stella Leonardos é uma paixão de escrever com uma vontade preocupada com a conscientização de nossas raízes, com vistas a um alcance de nossa possível e complexa identidade cultural.  A natureza multiforme cultural e rigor disciplinar com bases no método que lhe é peculiar, fincado nas raízes ibéricas, encontram-se juntos em Stella Leonardos formando uma apetência consciente incomum, soltando uma voz inconfundível como forma de atitude existencial, que faz a autora possuidora de planos poéticos envolventes para a sustentação de sua prodigiosa inventividade literária.  E assim, com uma postura até certo ponto nativista, com assuntos colhidos na história e nas tradições populares, ativados na memória do coração, Stella Leonardos vem escrevendo uma monumental obra cancioneira e romanceira. Um extenso mapeamento lírico que se distribui por um conjunto de volumes tendo como marca a atenção máxima de nossa rica e multiforme formação cultural, a se alimentar de um portentoso filão brasílico.

Poeta que inventa e reinventa assuntos entranhados em nossa história, forma seu discurso literário enorme constituído muitas vezes de aproveitamento de outros discursos, os quais passam a ser reconstituídos por um eu poético criativo, no qual usa a linguagem arcaica, que nele se renova com graça e beleza. Retoma os elementos ancestrais trazidos de outras fontes para o texto presente, que se apresenta assim enriquecido por uma sensibilidade apurada, com manejo profícuo dos recursos da língua, achados no nascedouro longínquo.

Romanceiro do Bequimão é a confirmação das considerações de que Stella Leonardos tem uma obra épica e lírica das mais expressivas na poesia brasileira. Dos meios torpes e obscuros, das baladas e acalantos, ela sabe tecer com fina sensibilidade as vozes seresteiras das duas filhas do Bequimão, fazendo-as ressurgir do fundo da memória com alegria e tristeza, tecer o pasmo neste homem, que não se submete aos lacaios da Companhia.

 

Em oratória ignorante?

Mas por instinto, tribuno,

 

Das janelas do senado

Convertidas em tribuna

 

Falava ao povo constante

E o povo aplaudia, uno

 

Manuel do verbo alumbrado.

Bequimão único e íntegro

(pág. 94)

 

Do que está escrito e do que não está escrito, do que não se conta, mas que se acredita, de um povo tolerante, desse cavaleiro que Deus deu voz alta, repelido de uns, esquivados de outros, depois de sentenciado, sabe-se nesse romanceiro quando se deu o momento em que foi sentida a grandeza eterna no exemplo raro. Solidário e justo quando os corpos penderam.

 

Tocando de novo a terra,

Foi tão-só que a luz se fez,

E fez sentir algo novo.

(pág. 151)

 

LEONARDOS, Stella. Memorial da Casa da Torre, Gráfica Santa Marta, João Pessoa, Paraíba, 2010.

---------------------------- Romanceiro do Bequimão, Edições SIOGE, São Luís, 1979.

 

*Cyro de Mattos é autor de mais de 65 livros pessoais, de diversos gêneros. Premiado no Brasil, Portugal, Itália, México e Cuba. Editado e publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Cuba e Dinamarca. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.