Ascendino Leite, Jorge Amado, Nertan Macedo, Salim Atalla, Stella Leonardos, Edna Savaget em noite de autógrafos em 31 de outubro de 1960 no Clube Monte Líbano. Foto da revista O Cruzeiro. |
Autora muito premiada, com destaque para nove láureas concedidas pela Academia Brasileira de Letras, Stella Leonardos (Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1923 - Rio de Janeiro, 11 de junho de 2019) publicou mais de uma centena de livros, entre romances, poemas, literatura infantil e dramaturgia. Formada em Letras Neolatinas, tradutora do inglês, francês, italiano, espanhol, catalão e provençal, sua estreia aconteceu com Passos na areia, em 1941. Os críticos costumam situar a vasta obra poética de Stella Leonardos na terceira geração do Modernismo, relacionando nessa condição os livros Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência (1974) e Romanceiro da Abolição (1986).
Nome dos mais festejados pela
crítica, Stella Leonardos entregou por muito tempo sua vocação
poética ao projeto de recriação de um Brasil bem brasileiro. Da sua alma
cancioneira e romanceira salta um Brasil de sentimentos românticos,
epicidades, ideais, relatos e saberes populares. Brasil iluminado de
estados líricos, formado por elementos míticos, que irrompe do lugar onde
nasce a história feita de passagens marcantes, ações, tantas razões e casos.
O épico apresenta, o lírico
lembra, o dramático articula mundos interiores dos seres humanos conflitantes na criação da vida. No palco da
duração crítica e contínua dos acontecimentos expande-se a poesia de
Stella Leonardos. Conota essa maneira íntima do lírico, calcada em permanente
mergulho na memória, feita de emotividade, cena histórica e pesquisa. Gentis
seus versos, em Memorial da Casa da Torre (2010) recordam
vivências nas arcadas, aludem a finíssimos lavores nos salões e aposentos.
Abrem-se nos portões com senhores de terras na época de conquista e
domínio. Tocam no berço territorial da Pátria, no músculo dos negros, no
primitivismo resistente dos indígenas. Restauram o homem através de intenções,
ímpetos, sonhos e idealismo. Retiram-no do passado para ser lembrado no
desassombro dos sertões vencidos, entoados na música rústica das boiadas.
Poesia é emoção condensada em
linguagem mítica, rica, tensa e ambígua. Reflexão em suas formas
geométricas calcadas na imagem, sob o pretexto da escrita para revelar uma
ideia. Em Stella Leonardos mostra um discurso significante pontuado pelo
som, no ritmo que ela imprime em sua maneira particular de sustentar a
ideologia. Sua palavra cantante escorre musicalmente com interferência de
vozes, tornadas dinâmicas, apropriadas nas lembranças e cenas descritas.
O registro que é feito do
fato bom ou triste é mais endereçado aos ouvidos do que aos olhos. Sua
dicção musical enceta versos que dialogam com a história, ecoam procedentes de
alguém que permaneceu no tempo. Em seus cancioneiros e romanceiros tão
brasileiros, Stella Leonardos canta e conta. Revive o Brasil com maestria de
poeta que encanta, consciente de que no rememorar tudo é ilusão, sonhar
é sabê-lo, como falou Fernando Pessoa.
Assinalada a terra por armas
e brasões de uma gente remota, que aqui chegou por mares nunca dantes
navegados, o governo português teve que enfrentar situações
desfavoráveis para fazer a colonização. Um desses obstáculos consistia na
imensidão da terra descoberta, com a sua mata de sono milenar, jamais
incomodada. Foi necessário dividir a terra rica em capitanias, glebas de muitas
léguas, e doá-las àqueles que tivessem condições de fixar o homem no solo.
Por quase três séculos, a
Casa da Torre distendeu suas cordas e acordes de inúmeros serviços prestados ao
Brasil, começando pelas guerras aos piratas, aos holandeses e da Independência.
Dali partiram os primeiros desbravadores do Norte brasiliense, as
intrépidas bandeiras, as principais entradas dos sertanistas do Nordeste.
Em Memorial da Casa
da Torre, um dos episódios mais significativos da história do
Brasil Colônia, oriundo da influência da prole mameluca de Garcia D’Ávila, que
levou domínio e ambição às regiões desconhecidas, Stella Leonardos, com idade
avançada, demonstra que ainda domina bem o verso e faz uma poesia
cativante, bebendo na tradição da poesia de todos os tempos. Usa o
arcaísmo e o neologismo para narrar os acontecimentos da pátria nascendo a
passo de marcha. Na decorrência de versos que se alteiam com vozes em coro, de
viva gesta, acende sinais luminosos da labareda que haveria de contribuir
como ideal de heroísmo, cultura e civilização.
É da tradição da poesia
ibérica vazar o amor e a saudade como figurantes que convergem para o lirismo e
o épico. O registro de vultos e fatos heroicos são recorrências manejadas por
rapsodos com inspiração no populário e saberes anônimos. No caso de Stella
Leonardos, o relato poético se municia de pesquisa e de saberes locais
do populário. Atenta, a poeta não se descuida de rimar memória e
fatos que melhor repercutam ao fazer modelar do nosso cancioneiro e
romanceiro. Seus livros aí estão espalhados para que sejam lidos como
resultado da aproximação mágica de uma alma sensitiva à nossa memória,
arrebatada de sentimentos românticos, valendo-se do histórico por
quem ama a beleza e o valor exercido pela estima da Pátria.
No poema “In Memoriam”,
introdutório ao assunto deste Memorial da Casa da Torre, Stella
Leonardos abre seu verso terno para o que vai contar e cantar, com leveza deixa
ser conduzida pela inspiração que lhe é particular:
No barro desses tijolos
Por mãos índias acalcado
Quanta voz índia não dorme?
Na alvenaria da pedra
Por mãos afras carregada
Quanta voz negra não pesa?
Na torre desse Castelo
Por brancos rostos vigiada
Quanta saudade não se ergue?
A autora desses versos torna
suficiente a imagem que interpela e, ao mesmo tempo, contempla a passagem do
tempo guardada na memória. Apoiada na sensação do que se refaz
triste, sob um ritmo que atrai, nos embala e envolve até o final
da cantiga. Como estratégia usual de seus cancioneiros e romanceiros, ela sabe
tirar efeito na linguagem quando emprega o neologismo através dos vocábulos que
inventa: saudadeado, largoandante, longivozes, multivária,
plurilínguas, existenciar, surpresada, passilargo, fugileve, impulsada,
noviterra, ensonho, sonoite, novihorizontes, azulando.
A Casa da Torre é a primeira
grande fortificação portuguesa do Brasil. As pegadas dos valentes que a
povoaram com desassombro inigualável dos tempos de Garcia Dávila renascem
neste memorial poético de Stella Leonardos. Da cidadela em
ruína, muralhas cobertas de musgo, gestos que resvalam por entre sombras,
das fendas e rastros do poder extinto, reencontramo-nos na poesia de
versos generosos. Das paisagens com passagens cheias de histórias
marchamos, somos levados com o mesmo brilho das gerações que fundaram nossa
nacionalidade.
O épico em forma de
cancioneiro acontece com o Romanceiro do Bequimão (1979) na lírica de
Stella Leonardos. Considerada pelos historiógrafos como nativista, embora haja
divergência, a Revolta de Beckman aconteceu no Estado do Maranhão, em 1684. Foi
um movimento que contestou o estanco, monopólio exacerbado da Companhia do
Comércio do Maranhão, que atuava como uma das
instituições fundamentais da ordem colonial, tanto quanto o escravismo e o
latifúndio. Os que acham que não se tratou de um movimento nativista argumentam
que houve apenas uma contestação de natureza econômica ao poder colonial,
motivada pelo descontentamento contra o desmando da Companhia de Comércio
do Maranhão.
Movimento nativista dentre
os primeiros em território brasileiro, embora desencadeado por razões
econômicas, foi impulsionado no seu inconformismo pelas discordâncias veementes
dos comerciantes locais, que se sentiam espoliados pelo monopólio da Companhia,
e os proprietários rurais que entendiam serem insuficientes os preços
oferecidos pelos seus produtos. Além disso os apresadores de indígenas estavam
inconformados com a aplicação das leis que proibiam a escravidão dos nativos.
Nessa conjuntura de inconformismo, a população protestava contra a
irregularidade do abastecimento dos gêneros e os elevados preços dos produtos.
Esses fatos, somados aos
privilégios concedidos aos jesuítas, conduziriam à eclosão da revolta. Teve
como líder Manoel Beckman, senhor de engenho, que contou na sua façanha de
rebelado destemido com o auxílio do irmão Thomas, encarregado de escrever os
cordéis e distribuir entre as gentes indignadas.
Ante essa forma de opressão
imposta pelo monopólio da Companhia, surge a figura do revolucionário Manoel
Beckman, o Bequimão, português radicado no Brasil. Seu desempenho de rebelado
contra a forma tirânica de atuar pela Coroa Portuguesa e que culminou na morte
pela forca faz com que alguns estudiosos o considerem mártir da Independência
do Brasil muito antes de Tiradentes.
A revolta
foi debelada com a chegada de tropas a São Luís sob o comando do
tenente-general Gomes Freire de Andrade. Foi expedida ordem de prisão
contra Manuel Beckman, que fugira, oferecendo-se por sua captura o cargo
de Capitão das Ordenanças. Para obtê-lo, Lázaro de Melo, afilhado e protegido
do líder revolucionário, traiu o padrinho e o entregou preso às autoridades portuguesas. Apontados como líderes da
revolta, Manuel Beckman e Jorge Sampaio de Carvalho receberam
sentença de morte pela forca. Os demais envolvidos foram condenados à prisão perpétua.
Esse o
quadro histórico que motivou a poeta Stella Leonardos escrever o Romanceiro
do Bequimão, não fazendo como de costume, no seu discurso lírico e épico,
poesia da história, “mas contando sonhos sem conta”, inventando com uma lírica
que encanta e uma épica que tudo apresenta esse tempo de cobiça e intriga. Com
mergulhos da alma dentro do que aconteceu e diálogos oportunos com pessoas e
fatos, através de linguagem cadenciada na rima herdada de suas raízes ibéricas,
faz com que rudes brasis convirjam e brilhem nos intertextos que esplendem no
ritmo de baladas e acalantos, permeados com elementos africanos, indígenas e
populares.
Lá dos antigos sobrados
De azulejos feito a mão
Uma saudade em pedaços
Me conta do Maranhão
(página 15).
Sabe-se que a Lira é vista como a poesia
do eu, da confissão ou da emoção. A palavra revela-se associada à música, à
melodia que escorre de seu ritmo. Na poesia épica, o poeta apresenta os fatos
singulares de um povo, narra os feitos de um herói através de acontecimentos
extraordinários. A poesia lírica nas raízes mostra-se associada aos
cancioneiros, reunião de canções, transmitida por via oral com seus temas
populares. O romanceiro é atividade poética luso-espanhola, de natureza épica e
lírica, anônima, foi transmitida por via oral durante a Idade Média,
configurada nos romances, compilada em volume integral ou antológico.
Tanto no cancioneiro como no romanceiro,
o que se nota na poética de Stella Leonardos é uma paixão de escrever com uma
vontade preocupada com a conscientização de nossas raízes, com vistas a um
alcance de nossa possível e complexa identidade cultural. A natureza multiforme cultural e rigor
disciplinar com bases no método que lhe é peculiar, fincado nas raízes
ibéricas, encontram-se juntos em Stella Leonardos formando uma apetência consciente
incomum, soltando uma voz inconfundível como forma de atitude existencial, que
faz a autora possuidora de planos poéticos envolventes para a sustentação de
sua prodigiosa inventividade literária.
E assim, com uma postura até certo ponto nativista, com assuntos
colhidos na história e nas tradições populares, ativados na memória do coração,
Stella Leonardos vem escrevendo uma monumental obra cancioneira e romanceira.
Um extenso mapeamento lírico que se distribui por um conjunto de volumes tendo como
marca a atenção máxima de nossa rica e multiforme formação cultural, a se
alimentar de um portentoso filão brasílico.
Poeta que inventa e reinventa assuntos
entranhados em nossa história, forma seu discurso literário enorme constituído
muitas vezes de aproveitamento de outros discursos, os quais passam a ser
reconstituídos por um eu poético criativo, no qual usa a linguagem arcaica, que
nele se renova com graça e beleza. Retoma os elementos ancestrais trazidos de
outras fontes para o texto presente, que se apresenta assim enriquecido por uma
sensibilidade apurada, com manejo profícuo dos recursos da língua, achados no
nascedouro longínquo.
Romanceiro do Bequimão é a confirmação das considerações de que Stella
Leonardos tem uma obra épica e lírica das mais expressivas na poesia
brasileira. Dos meios torpes e obscuros, das baladas e acalantos, ela sabe
tecer com fina sensibilidade as vozes seresteiras das duas filhas do Bequimão,
fazendo-as ressurgir do fundo da memória com alegria e tristeza, tecer o pasmo
neste homem, que não se submete aos lacaios da Companhia.
Em oratória ignorante?
Mas por instinto, tribuno,
Das janelas do senado
Convertidas em tribuna
Falava ao povo constante
E o povo aplaudia, uno
Manuel do verbo alumbrado.
Bequimão único e íntegro
(pág. 94)
Do que está escrito e do que não está
escrito, do que não se conta, mas que se acredita, de um povo tolerante, desse
cavaleiro que Deus deu voz alta, repelido de uns, esquivados de outros, depois
de sentenciado, sabe-se nesse romanceiro quando se deu o momento em que foi
sentida a grandeza eterna no exemplo raro. Solidário e justo quando os corpos
penderam.
Tocando de novo a terra,
Foi tão-só que a luz se fez,
E fez sentir algo novo.
(pág. 151)
LEONARDOS, Stella. Memorial da Casa da Torre, Gráfica
Santa Marta, João Pessoa, Paraíba, 2010.
---------------------------- Romanceiro do Bequimão, Edições SIOGE, São Luís, 1979.
*Cyro de Mattos é autor de mais de 65 livros pessoais, de diversos gêneros. Premiado no Brasil, Portugal, Itália, México e Cuba. Editado e publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Cuba e Dinamarca. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.