TEXTO EXTRAÍDO DA OBRA O RIO DE JANEIRO DE ANTANHO: IMPRESSÕES DE VIAJANTES ESTRANGEIROS DE AFONSO DE E. TAUNAY. ILUSTRAÇÕES EXTRAÍDAS DA EDIÇÃO ORIGINAL DE RELATION DU VOYAGE DE MR. DE GENNES AU DETROIT DE MAGELLAN (RELATO DA VIAGEM DO SR. DE GENNES AO ESTREITO DE MAGALHÃES) DE FRANÇOIS FROGER
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Folha de rosto da edição original da obra de Froger de 1698 |
Poucas épocas na História ocorrem em que franceses e ingleses tenham batalhado como no reinado de Luiz XIV, isto é fato de todos sabido. Na história da luta multissecular das duas grandes nações, há mais de um século reconciliadas e mais tarde unidas pela comunhão dos esforços tremendos e provações da Grande Guerra, uma das fases de mais ativa hostilidade, foi certamente a dos últimos anos seiscentistas, sob Guilherme III, de Orange, o inimigo acérrimo do Rei Sol.
Derrotada a frota francesa pela anglo-holandesa, no encontro da Hogue, onde o ilustre Tourville perdeu a batalha, mas não a justa fama de grande cabo de guerra, batidas as esquadras de França, rendidas numerosas praças coloniais, ansiavam os marujos de Luiz XIV por uma desforra dos adversários seculares e irredutíveis.
Entre estes, um lugar tenente de Vivonne, educado na escola dos heróis que eram Duquesne, Duguay Trouin e Jean Bart: o comandante De Gennes.
Aventuroso e valente, engenheiro naval de real mérito, autor de diversos inventos, era muito estimado do próprio Rei: “Inventara, diz o padre Labat, citado no Dictionnaire Universel du XIXme siècle, várias máquinas muito belas, muito curiosas e muito úteis, canhões e obuseiros de novo sistema, flechas destinadas a rasgar o velame dos navios, relógios sem molas e contrapeso, um pavão que andava e digeria (o que vi), uma bola achatada nos dois polos que subia por si só sobre um plano quase perpendicular e descia suavemente e sem cair, e uma infinidade de outras cousas, que o rei examinou com prazer”.
Ocorreu a De Gennes em 1693, já então capitão de fragata, a ideia de fundar uma Companha de Comércio para a colonização francesa no Estreito de Magalhães. Pedindo subsídios régios teve o mais favorável deferimento. Deu-lhe Luiz XIV seis navios de alto bordo, tripulados por 784 homens, com os quais, em 1695, zarpou de La Rochelle.
Percorrendo a costa africana ocidental, aproveitou o navegante a ocasião para expugnar [conquistar] os estabelecimentos britânicos da Gâmbia (Fort James); Daí zarpando em direção ao Brasil, aportou em S. Vicente do Cabo Verde, onde desembarcou os numerosíssimos doentes de febres e escorbuto. Comprou em Santo Antão provisões em abundância. A quatro de outubro de 1695 rumava para o Rio de Janeiro, em cuja barra apareceu a 30 de Novembro.
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St. Sebastien Ville Episcopale du Bresil (São Sebastião, Cidade Episcopal do Brasil), desenho da pág. 73 da obra de François Froger. A mais antiga vista panorâmica do Rio de Janeiro, feita no ancoradouro em 1695, abrange desde o Morro do Castelo até o Morro de São Bento, dando uma ideia perfeita da cidade no final do século XVII. Legenda superior esquerda: A. La maison du Gouverneur, indicando a casa do governador que existiu na atual Rua Primeiro de Março, onde hoje fica o CCBB; B. Les Benedictins, mosteiro e igreja de São Bento; C. Les Carmes, convento e igreja dos carmelitas na atual Praça XV; D. Les Jésuites, o colégio dos jesuítas no Morro do Castelo. Superior direita: E. Les Capucins, os capuchinhos franceses na ermida do Morro da Conceição, depois Palácio Episcopal, hoje Serviço Geográfico do Exército; F. La Cathederale, a Sé Velha no Morro do Castelo; G. Grues ou on debarque les Merchandises, guindastes para desembarque de mercadorias junto à Alfândega; H. Fort qui commande la rade, forte de São Tiago, na ponta do Calabouço, no local do atual Museu Histórico Nacional. Em baixo: Riviere de Ianeyro, Rio de Janeiro. |
A cinco de Janeiro seguinte partia a sua esquadra para o estreito magalhânico; sofreu nos mares do Sul tremendas tempestades. Atingindo a extremidade do continente, tiveram De Gennes e os seus comandados o critério de verificar que o estabelecimento de um presídio [fortaleza] naqueles páramos desolados seria a mais calamitosa tentativa, tanto mais quanto os recursos da frota se apresentavam escassos. Assim, pois, decidiu o conselho de guerra o regresso à França.
A 16 de maio de 1696 navegava a divisão em águas de Cabo Frio, sabendo De Gennes que as autoridades portuguesas lhe não consentiriam, provavelmente, voltar a fundear no Rio de Janeiro. Demorou-se algumas semanas naquelas paragens e afinal rumou para a Bahia, onde, a 20 de julho, foi recebido afetivamente e de onde zarpou em direção às Antilhas. A 21 de abril de 1697 entrava novamente em La Rochelle.
Dessa jornada naval existe interessante documento: o livro editado em Paris em 1698 por Michel Brunet: Rélation d'un voyage fait en 1695, 1696 et 1697 aux Côtes d'Afrique, Détroit de Magellan, Brésil, Cayenne et Iles Antilles, par une, escadre des Vaisseaux du Roy, commandée par monsieur De Gennes, fait par le Sieur Froger, Ingénieur Volontaire sur le vaisseau le “Faucon Anglais”, enrichie de grand nombre de figures dessinées sur les lieux (Relação de uma viagem feita em 1695, 1696 e 1697 às costas da África, Estreito de Magalhães, Brasil, Caiena e Ilhas Antilhas pela esquadra de embarcações do rei, comandada pelo senhor De Gennes, feita pelo Sr. Froger, engenheiro voluntário na nau “Falcão Inglês”, enriquecida de um grande número de figuras desenhadas no local).
Conhecemos a tiragem feita pelo livreiro Nicolau le Gras, em 1699. Comprara este os direitos autorais de Nicolau de Fer, cessionário do autor.
Eram de Fer e Guilherme de I'Isle, então, as autoridades máximas da cartografia francesa. “Esta obra, diz a Grande Encyclopedie, tem o seu valor sob o ponto de vista da História natural e da Hidrografia.” Ignoramos se existe terceira edição francesa; honra-se, porém, com uma tradução inglesa, impressa em 1698, por Gillyflower.
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Entree de la Rivière de Ianeyro à la Côte du Brésil (Entrada do Rio de Janeiro na costa do Brasil). O mapa mostra claramente que na época ainda se acreditava que a Baía da Guanabara fosse a embocadura de um grande rio, daí a designação Rio de Janeiro. |
Não é muito o que Froger escreve acerca do nosso país, mas não deixam de ser curiosas suas informações. Seu livro, hoje raridade bibliográfica, não é dos que se acham ao alcance de todos.
A 29 de novembro de 1695 chegava a esquadra de De Gennes à altura de Cabo Frio e a 30 à barra do Rio de Janeiro, onde pediu prático. Custaram tanto os de terra a responder que o comandante ordenou que os seus vasos ficassem bordejando, enquanto mandava um dos oficiais entender-se com as autoridades do porto. Às seis horas da tarde de primeiro de dezembro voltava o emissário contando que havia grande alvoroto na cidade.
Não se sabia, exatamente, no Rio de Janeiro, se reinava ou não guerra entre a França e Portugal; a chegada desde alguns dias do bergantim da esquadra tal pânico provocara, que tinham as famílias começado a retirar-se para o campo, carregando as melhores alfaias.
No dia seguinte souberam os franceses por um oficial português que podiam ancorar ao alcance imediato dos canhões de Santa Cruz. Havia brisa forte, porém, e os navios garraram para dentro do porto. Imediatamente sobre eles atiraram as baterias de terra. Não responderam os franceses, que conseguiram fundear pouco depois. Voltou o oficial trazendo piloto e médico. Estava o governador muito hesitante se devia, ou não, deixar que a esquadra viesse ao fundeadouro. Alegava a existência de numerosos enfermos a bordo e receava o contágio.
Era ele Sebastião de Castro Caldas, personagem mais tarde muito conhecido pelo papel que lhe coube na chamada “Guerra dos Mascates”.
Afinal, avisou o ajudante de ordens que iria a Santa Cruz [a fortaleza] notificar a permissão de passagem dos vasos franceses.
Como, porém, houvessem estes aparelhado antes de sua chegada à fortaleza, ainda receberam mais de dez tiros, dos quais um por um triz não alcança o paiol de pólvora da capitania.
Assim mesmo, veio ordem para que dous dos maiores navios ficassem fora da barra; havia expressas instruções reais para que não entrassem no porto mais de três barcos de guerra estrangeiros. Assim, partiram para a Ilha Grande.
Apenas chegado, desembarcou o sr. De Gennes e foi queixar-se ao governador dos balázios recebidos. Que praxe era esta de se tratarem por tal forma as naus de uma potência amiga?
Respondeu-lhe Castro Caldas dizendo-lhe que desejara consentir na entrada franca da frota. Havia, porém, muita gente contrária a tal licença e grande fermentação popular, perigosa mesmo, para a manutenção da ordem. Em todo caso, permitia que os doentes desembarcassem na Praia Grande [Niterói] e prometia-lhes a assistência, que lhe fosse possível.
Deu-se, então, novo incidente, característico da vaidade das pragmáticas e regimentos. Perguntou o comandante francês se acaso salvasse de terra lhe responderiam tiro por tiro. Respondeu-lhe o governador que absolutamente não; daria quando muito alguns disparos, por lhe caber a homenagem. À vista de semelhante resposta, resolveu o francês não salvar. A quatro desembarcaram os escorbúticos, e a esquadra demorou-se nas águas guanabarinas até 27 de dezembro, fazendo grandes compras de mantimentos: carnes salgadas, farinha de mandioca, açúcar, arroz, milho, tapioca, etc.
Traziam da África os navios franceses grande número de negros escravos, então negociados, salvo os mais robustos, destinados a substituir os marinheiros brancos dizimados na costa da Gâmbia, pela febre amarela. Só a capitania, o “Faucon anglais”, perdera mais de cinquenta homens!
Em todos os fornecimentos, pretende Froger, foram os franceses muito prejudicados pela tratantice do governador, que proibira aos particulares comerciar com a esquadra, querendo ser o único comprador e vendedor. “Vimo-nos obrigados a lhe ceder as nossas mercadorias muito mais barato do que pelos preços da Europa”.
Dá-lhe isto o ensejo de lembrar a má fé da nação lusa, “em que, afirma, predominavam os indivíduos de raça judaica na proporção de mais de três quartos”.
Do Rio de Janeiro, “grande cidade bem construída e de excelente aspecto, estendendo-se pela praia desde o magnífico Mosteiro de São Bento até ao não menos monumental Colégio dos Jesuítas”, teve o viajante boa impressão, mas não dos fluminenses.
“Bem vestidos, gravibundos como a gente de sua nação, se mostram, ricos, amantes do tráfico, possuem numerosos escravos negros, fora várias famílias de índios que empregam nos engenhos de açúcar, mas a quem não querem escravizar, por serem filhos da terra”. (Em francês, como vemos na página 71 ao lado: “Ses habitants sont propres, & d'une gravité ordinaire à leus Nation; ils sont riches & aiment le trafic: ils ont grand nombre d'Esclaves noirs, outre plusieurs familles entieres d'Indiens qu'ils entretiennent dans leurs sucreries, & à qui ils ne veulent pas ôter la literté, comme étans naturels du Païs.”)
Nada mais nefasto para os brancos do que a instituição servil, insiste o navegante.
Tanto desfibrava e amolentava os cariocas, que nem sequer eram capazes de se abaixar para apanhar um objeto de que carecessem. Muito mal o impressionaram também os costumes livres da cidade, onde os burgueses viviam licenciosamente e onde, infelizmente, acrescenta, havia eclesiásticos mal notados em tal particular, sem que, contudo, semelhante pecha lhes desabonasse a reputação.
O eterno “infra-equinocial” lançado em rosto aos colonos americanos pelos reparadores de todos os tempos, cheios de preconceitos e opiniões antedatadas... Esquecia-se mestre Froger que, havia bem pouco, relatara a lucrativa venda de africanos que a esquadra do rei cristianíssimo transportara para o Brasil, naturalmente obedecendo a ditames de ordem humanitária...
Virulentamente continuando Froger a agredir o clero do Brasil, segundo o que pretende haver visto no Rio de Janeiro, declara “que a impudicícia não é o único defeito dos frades ímpios da terra”.
“Vivem numa ignorância crassa, muito poucos se encontram que saibam o latim; é de recear que nos façam ver o incêndio de uma nova Sodoma. Há em todo o Brasil legiões de Franciscanos, Carmelitas e Beneditinos, mas todos eles pouco se incomodam com a conversão dos pobres índios, que não pedem outra cousa senão serem instruídos nas luzes do Evangelho”.
Reparador severo este rapazola de 19 anos, que se gaba de haver examinado com exatidão “o comércio dos países, os interesses particulares de cada colônia, as forças, a situação e as vantagens dos portos, os costumes e a religião dos povos, as propriedades das frutas, plantas, pássaros, peixes e animais (sic) que lhe pareceram extraordinários”, e julga ter escoimado o seu livro “dos pormenores maçadores, que geralmente atulham as relações de viagem”! Assim está certo de que o leitor terá “prazer em tomar conhecimento de novas descrições, etc., etc.”!
Em todo o vasto Brasil, avança o impetuoso generalizador, “só há oito ou dez bons Capuchinhos franceses e alguns Jesuítas que com extraordinário zelo se aplicam às santas Missões”.
Para mostrar de que força eram os religiosos no Rio de Janeiro, conta Froger o seguinte: havendo um dos oficiais da esquadra altercado com um fluminense, foi obrigado a sacar da espada para se defender. Viu-se então atacado por um magote de portugueses, e assim tratou de fugir.
“Vendo a porta dos Carmelitas aberta entrou, crendo que ali encontraria seguro asilo. Mas qual! foi o contrário, pois um destes caridosos religiosos lhe descarregou na cabeça um golpe, cujos vestígios lhe restariam para sempre. E acudiram outros, ainda, que o encheram de pauladas e o entregaram aos perseguidores.
Estes, porém, dele tiveram compaixão, ficando horrorizados com o procedimento dos frades”.
“O que digo destes falsos religiosos, ressalva o viajante francês, em nada deve ofender aqueles que cumprem o dever, pois as invectivas dirigidas aos libertinos não fazem senão aumentar o respeito devido aos que procuram o ensejo de mostrar o zelo e derramar sangue para maior glória de Jesus Cristo”.
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Balafô, instrumento dos negros; bastões; cerejas do Brasil. Pág. 46 da obra de Froger |
DUAS DICAS: Trechos do livro de Froger constam da antologia Visões do Rio de Janeiro Colonial de Jean Marcel Carvalho França. Clique no label "viajantes" abaixo para ver outras postagens sobre viajantes estrangeiros que estiveram no Rio no passado.