QUAIS SÃO AS ORIGENS DA TATUAGEM NO BRASIL, ESPECIFICAMENTE NO RIO DE JANEIRO? OS DOIS TEXTOS ABAIXO, DE LUÍS EDMUNDO E JOÃO DO RIO, AJUDAM A DESVENDAR AS ORIGENS DESSE ANTIGO HÁBITO OUTRORA RESTRITO A ESCRAVOS, MARINHEIROS E MERETRIZES, MAS QUE MODERNAMENTE SE GENERALIZOU.
TRECHO DO CAP. 7 DA OBRA CLÁSSICA DE LUÍS EDMUNDO O RIO DE JANEIRO DO MEU TEMPO:
Bem em meio à Ladeira do Castelo mora Florêncio da Palma, conhecido tatuador da Marinha, discípulo do Madruga, figura mais que conhecida na cidade, mestre na arte de tatuar e que, nas horas de sueto, dedilha o violão, criando canções que o povo, depois, gostosamente, decora e canta.
Florêncio, autor e cantor em voga, mais parece uma personagem arrancada às revistas regionais de João Foca, com a sua grenha a escorrer óleo de oriza, o seu bigode falhado e a sua pera-mosca, à Floriano. É tatuador de marinheiros, com especialidade em marcas onde entrem símbolos da arte de navegar. Pela época, é grande moda a tatuagem entre a nossa Maruja, entre soldados do Exército ou da Força Policial.
Foram os negros da África, aqui trazidos pelos portugueses, que introduziram essas fantasiosas marcas que se fazem na epiderme. Quando não vinham tatuados, esses negros aqui se tatuavam, obedecendo a velhas tradições regionais. Debret ensina-nos, por exemplo, que o monjolo tatuava-se, fazendo incisões verticais nas faces; o mina, fazendo uma continuidade de pontos salientes, provocados por tumefações que as agulhas de ferro produziam no rosto; o moçambique trazia, quase sempre, um sulco, uma espécie de crescente na testa, e assim por diante. Essas formas clássicas, entanto, degeneraram com o tempo, sendo, mais tarde, transformadas em símbolos, contando a vida amorosa dos tatuados, a profissão por eles exercida, etc.
Os nossos índios pintavam-se. Algumas vezes lanhavam o rosto, braços e pernas, mas não se tatuavam.
Pratica-se a tatuagem por incisão, por picadas ou por queimaduras subepidérmicas. Completa-se o trabalho com a ajuda de três agulhas que se embebem em anil, em tinta de escrever, em graxa, pólvora ou fuligem. Antes da aplicação das agulhas, traça-se o desenho que se deseja obter sobre a pele: um coração atravessado por uma seta, uma rosa, um navio, uma estrela, umas iniciais que se confundem ou entrelaçam, um nome, uma frase...
Como bom tatuador, Florêncio da Palma tem o corpo coberto de sinais, e, como o seu grande mestre Madruga, também mostra, no peito, a imagem do Redentor. Além disso, espalhados pelas costas, braços, ventre, coxas, mãos e pés, sinais de Salomão, âncoras, datas, nomes de mulheres e ainda marcas misteriosas e indecifráveis. São, por sua vez, de um pitoresco exótico ou disparatado todas essas tatuagens. Sabe-se de um marinheiro, por exemplo, cabo em Villegaignon, que possui, pelo dorso, espalhada, em estético realce, toda uma esquadra, feita a bicos de agulha, nada menos que sete navios nacionais: o Riachuelo, o Aquidabã, inclusive todos os vasos de guerra em que ele serviu embarcado, desde que assentou praça na Marinha. Outros há que mandam tatuar o corpo com emblemas pátrios: escudos da Monarquia, armas da República, quando não se marcam com nomes de heróis da pátria. João do Rio diz-nos ter visto, entre tatuagens interessantes, a do braço de um soldado de polícia onde se escrevia esta legenda patriótica: — Viva o Marechal de Ferro!
Os valentes da Saúde, da Gamboa e do Saco do Alferes tatuam-se bem como as meretrizes de ínfima classe, estas mandando marcar, pelos braços, pelas coxas ou pelo peito, o nome dos seus amados. Convém revelar, ainda, que os negros, outrora introdutores da tatuagem entre nós, já bem pouco se tatuam pela época.
Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor – com que se confunde a tinta empregada.
Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d’água doce. Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:
– Eh! Eh! Pedro II não era o dono?
E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.
Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros eikones primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth, vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Ihaveh.
A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio – os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.
Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.
– Quer marcar? perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.
Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.
– Que quer V.S.? O pequeno estava a arreliar. Marca, moço, marca! E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.
Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações. Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação miriônima da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:
Venha quanto antes d. Elisa
Enquanto o Chico Passos não atiça
Fogo na cidade...
Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações – um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.
Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras – a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.
Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão,o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.
Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.
Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra – a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada – tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.