Antes de completar 15 anos de idade, em 1943, vim morar no
Rio de Janeiro. Conseguira matrícula no Colégio Pedro II, para cursar o
científico, invenção do então ministro Gustavo Capanema. Minha tia Minerva, com
boas relações na Igreja Metodista do Catete, conseguiu com uma de suas amigas
uma vaga para mim, no apartamento em que a amiga residia, no centro da cidade.
Foi assim que fui morar na Rua São Pedro, atrás da Igreja da Candelária, no
segundo pavimento de um velho prédio que tinha no andar de baixo uma espécie de
centro espírita, ou de macumba, que à noite me assustava com gritos e choros.
A rua mais próxima era a Miguel Couto, antiga dos Ourives, e
sendo tempo de guerra por ela passavam grupos de marinheiros norte-americanos,
naturalmente de folga no serviço, com seus uniformes característicos. Mas o que
me causava mais curiosidade era uma igreja que dava para a rua Miguel Couto,
que soube logo chamar-se, resumidamente, de Igreja de São Pedro. Estilo barroco,
arredondada, semelhante a algumas igrejas de Ouro Preto.
Estudante no Pedro II à noite, desejava trabalhar. O Jornal
do Brasil daquela época tinha a primeira página tomada por pequenos
anúncios, com exceção da coluna da esquerda, que resumia as notícias das outras
páginas. Consegui, por anuncio no JB, um lugar de auxiliar numa firma de
papelaria, com seu comércio no térreo e escritório no primeiro andar. Eu me
adaptara bem ao trabalho, fizera camaradagem com funcionários, mais
categorizados, mostrava mesmo a eles alguns sonetos que já escrevia. Era um
emprego de que muito gostava.
De repente, uma lei desapropriou todos os prédios do local,
visando à abertura de uma nova grande avenida, e todo o comércio foi obrigado a
fechar as portas. Perdi assim minha morada e meu emprego. Era o segundo
bota-abaixo, o primeiro havia sido para a abertura da Avenida Central
(renomeada Avenida Rio Branco, com a morte do grande brasileiro), pelo
engenheiro Francisco Pereira Passos.
Agora, era o prefeito Henrique Dodsworth que comandava a
destruição, com a promessa de uma avenida bem ampla. Todos os prédios entre as
ruas São Pedro e General Argolo [na verdade, General Câmara] (antiga do Sabão),
iam sumir para dar lugar à avenida cujo nome ainda não fora decidido.
Vi, com tristeza, a demolição da igreja de São Pedro dos
Clérigos, e de duas outras igrejas. Vi serem postas abaixo, sem demora, todas
as casas entre as duas ruas. A nova avenida também demoliria prédios
importantes e ia apropriar-se de uma faixa do Campo de Santana.
Na demolição de uma das igrejas descobriu-se antigo
cemitério, que foi revolvido, e jovens do Pedro II levavam crânios para exibir
no colégio. Um espetáculo macabro, que se repetia por vários dias.
A Praça Onze, tradicional reduto de sambistas, carnavalescos
e músicos, seria encampada pela grande avenida. No carnaval de 1944 o povo
cantava: “Vão acabar com a Praça Onze, Não vai haver mais Escola de Samba, não
vai!... Portela, Salgueiro, Estação Primeira, guardai os vossos pandeiros,
guardai, Porque a Escola de Samba não sai.”
Naquela ocasião, valeu-me novamente minha tia, ao
arranjar-me uma vaga na pensão de outra senhora da mesma igreja, dona
Francisca, que os hóspedes chamavam de Dona Chiquinha. Ali conheci quatro
estudantes que se tornaram meus amigos por toda a vida. Mas a maldição da nova
avenida iria de novo atingir-me. Antes da demolição da igreja de São Pedro,
surgiu a ideia de transportá-la para outro local, sobre trilhos, com a parte
inferior congelada, como ocorrera na Europa com um prédio. E o local escolhido
e desapropriado para receber a igreja situava-se na rua Miguel Couto, 52,
exatamente o local da pensão onde eu passara a morar. Eu e os quatro estudantes
nos mudamos para a Rua da Alfândega, 321, quase perto da Igreja de São Jorge,
na pensão de Dona Belmira. Nesse tempo, nos andares dos prédios antigos da rua
da Alfândega moravam famíliaç e as lojas, sempre fechadas, serviam apenas de
depósito de mercadorias.
Foi extremamente rápida a demolição e construção da grande
Avenida. Até pouco antes da inauguração, não estava definido o nome que teria.
Mas vigorava ainda a ditadura Vargas: o nome da avenida não poderia ser outro
senão Presidente Vargas.
Sua inauguração ocorreu em 7 de setembro de 1944, num
palanque junto à Praça da República, tendo do lado oposto o Ministério da
Guerra. O Presidente Getúlio, outras autoridades, e engenheiros responsáveis
pela construção, estavam presentes. Foi uma grande festa. Do lado de fora,
próximas do palanque, aglomeravam-se pessoas do povo, entre as quais o jovem
estudante que hoje registra estas lembranças.
Vi também a grande transformação da Avenida Rio Branco.
Prédios foram demolidos para se erguerem outros mais modernos. O belo Pálace
Hotel, de que vi caírem pedra a pedra, deu lugar a um moderno edifício com a
parede exterior fazendo um ângulo, e chamado pelo espírito galhofeiro dos
cariocas de "tem nêgo bebo aí". Tinha venezianas (dizia-se brise-soleils),
logo depois retiradas.
Também vi a demolição do Hotel Central [na verdade, Hotel Avenida,
o Hotel Central ficava na Praia do Flamengo], junto do qual havia o Bar da
Brahma, em que faziam ponto escritores e boêmios, os bondes por ali circulavam,
antes de construído o "Tabuleiro da Baiana", no Largo da Carioca. No
terreno do Hotel Central [Avenida] elevou-se o arranha-céu Avenida Central.
Tantas coisas mais eu vi. Uma das mais tristes foi a
demolição do Teatro Fênix, semelhante em formato ao Teatro Municipal, porém bem
menor, onde pouco antes eu assistira à estreia, ou quase estreia, de artistas
que alcançariam fama, como Sérgio Cardoso (falecido precocemente) e Fernanda
Montenegro (ainda hoje muito atuante) na notável interpretação de
"Hamlet". Vi ali também a atriz Bibi Ferreira estrear como diretora
teatral, apresentada por seu pai, o grande Procópio Ferreira.
Vi mais tarde a movimentação de terras do morro de Santo
Antonio para ajudar a aterrar a praia do Flamengo, então uma nesga de areia bem
próxima da amurada de pedra, ainda hoje existente, depois transformada no
grande parque atual.
Pouco antes do aterro, pude ver, visitando o poeta Manuel
Bandeira (que morava num edifício da Avenida Beira-Mar), as pedras que
escoravam a pequena muralha daquela avenida. E vi também um desenho, feito pelo
poeta, retratando a paisagem próxima que iria desaparecer para sempre — mas não
da memória dos que viveram nessa época.
WALDIR RIBEIRO DO VAL, bacharel em Direito, livre-docente
pela Escola de Comuunicação da UFRJ, professor-convidado de Literatura na
Faculdade de Letras da UFRJ, jornalista e editor de livros, poeta com vários
livros publicados, e membro do PEN Clube do Brasil e da União Brasileira de
Escritores. Biógrafo do poeta Raimundo Correia, tem a publicar a biografia do
poeta Augusto Frederico Schmidt, e também um livro de memórias e outro de
contos. Membro da Academia Carioca de Letras — cadeira 29. A inauguração de seu Museu da Literatura em Andrade Costa, ocasião em que foi tirada a foto acima, foi objeto de postagem neste blog, que você pode ler clicando aqui.