Desde 2005, o melhor blog sobre o Rio de Janeiro, seus encantos, história, literatura, arquitetura e arte. A partir de 2019, mostrando também São Paulo, para onde o editor do blog se mudou.
ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)
VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
“São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)
O Rio é cheio de surpresas e de cantinhos que quase ninguém conhece. Um deles é a Vila Benjamin Constant. Aposto que você nem imagina onde fica! No início do século XX existiu uma Villa Benjamin Constant na rua de mesmo nome no bairro da Glória, mas não é dela que estou falando. A vila a que me refiro fica atrás do Instituto Benjamin Constant, na encosta do Morro da Babilônia, na Urca. Se você olhar no Google Maps, a vila está lá, mas anônima. Quem passa pela entrada da vila na Rua Dr. Xavier Sigaud não imagina que ela existe. Passei mil vezes lá sem nunca entrar e só entrei um belo dia porque sou enxerido e tenho mania de explorar tudo que é canto (menos, é claro, aqueles dominados pelo tráfico). Originalmente foi criada para abrigar funcionários e alunos do Instituto numa época em que os transportes eram precários e tudo era muito longe (década de 1940 segundo algumas fontes). A rigor, quando um ocupante se aposentava ou falecia, o imóvel deveria ser desocupado, já que o terreno pertencia à União – depois passou para a Prefeitura, que tenta regularizar a posse das casas – mas na prática os “herdeiros” dos moradores originais foram ficando, num fenômeno parecido ao das casas do Horto. Em 1998 a vila foi beneficiada pelo Programa Bairrinho da Prefeitura (O Globo, 7/5/98). Há quem considere a vila uma “favela”. O Jornal do Brasil, em matéria de 6/9/1999, chama-a de “Favela VIP” da Urca (“A Urca, quem diria, já tem a sua favela”), mas na verdade não tem as características de favela que são a construção de casas irregulares, sem projeto nem arruamento, em terreno invadido. A vila tem arruamento. As ruas até têm nomes – de flores! A vila não resultou de invasão. E as casas são bonitinhas, não são de tijolos aparentes. É bem verdade que tem umas vielas, mas Veneza também tem! Vamos às fotos para que você tire sua própria conclusão.
Instituto Benjamin Constant visto do alto da vila
Rua Bouganville da Urca
A rua principal da vila
Varanda & fiação
O gato
Descendo
Janela na Rua das Orquídeas da Urca
Escadinha
Viela
Contraste arquitetônico: as casas da vila e o prédio atrás
O bairro de Cosmos, situado na Zona Oeste, entre Campo Grande e Santa Cruz, originou-se de um loteamento, Vila Igaratá, da Companhia Immobiliaria Kosmos, que começou a ser anunciado nos jornais em 1928, depois de inaugurada a estação ferroviária de mesmo nome em terreno cedido pela Companhia.
Anúncio de O Globo de 16/6/1928 de vários loteamentos da Companhia Imobiliária Kosmos, entre eles a Vila Igaratá, que deu origem ao bairro de Cosmos
Pelo que o editor deste blog pôde observar em suas andanças, o bairro é um microcosmo da cidade do Rio de Janeiro, com todo o espectro de construções, desde casas modernas de classe média, com bons carros estacionados, até áreas favelizadas (imagem do Street View abaixo), e todo o resto: comércio de bairro (para o comércio mais sofisticado suponho que o morador vá a Campo Grande, ao lado), as igrejinhas católicas, os templos evangélicos, etc. Para uma cidade quente como o Rio, achei a arborização incipiente (a Companhia, ao fazer o arruamento, bem que poderia ter plantado árvores; as que vi são “jovens” ou, quando mais frondosas, estão nos terrenos particulares), e encontrei as “mazelas” próprias dos bairros menos assistidos pelo poder público: calçadas irregulares, carros obstruindo calçadas, algum lixo ao ar livre aguardando remoção. O bairro parece pacato, tranquilo, sente-se uma atmosfera comunitária, bem aparente no domingo, quando a igreja e a praça lotam, as pessoas circulam, enchem os bares, ou ficam nas janelas ou na frente das casas.
Durante décadas as ruínas da capela de Nossa Senhora da Penha, sobre um penhasco como é próprio dos templos dedicados a essa denominação da mãe de Jesus, deram origem a uma série de lendas urbanas: de que um padre teria sido assassinado no local e a igreja, incendiada, ou que a imagem da santa foi roubada e a dificuldade de acesso ao morro teria afastado os fiéis, como conta a reportagem “Capela de Nossa Senhora da Penha na Zona Oeste passa por restauração” de Simone Candida publicada em O Globo de 16/4/2017 (para acessar clique aqui). Mas na verdade a capela foi vandalizada por um grupo de arruaceiros em 17 de fevereiro de 1972 como noticiado na imprensa da época. Por exemplo, matéria publicada no dia seguinte no Diário de Notícias intitulada “Vândalos depredam e incendeiam a capela” informava que “perversos delinquentes depredaram e incendiaram, ontem, a Capela de Nossa Senhora da Penha, situada na Estrada da Paciência, 1.149, em Cosmos. [...] A polícia da 35a DP está empenhada em prender os sacrílegos [...]”.
Diário de Notícias, 18/2/1972
Jornal do Brasil, mesma data
Qual seria a idade dessa capela? Outra lenda urbana associa a sua construção a uma imagem de Nossa Senhora da Penha encontrada em 1917 por dois trabalhadores rurais (na época a área ainda era zona rural) “ao pé de um coqueiro no alto do morro. A estátua foi levada para a casa deles, a uns 300 metros de distância, mas, inexplicavelmente, ela sumiu e voltou a aparecer junto à mesma árvore. [...] Uma capelinha improvisada acabou sendo erguida no local, para abrigar a santa.” (O Globo,matéria citada). Mas o pesquisador Isra Toledo Tov acredita que seja bem mais antiga, defendendo a tese de que ela pertencia à antiga Fazenda da Mata da Paciência, que entre os séculos XVII e XIX ocupava terras que, nos dias atuais, correspondem aos bairros de Paciência, Inhoaíba e Manguariba, além de parte de Guaratiba, como lemos nessa mesma matéria de O Globo. De fato, um mapa do Município Neutro (depois Distrito Federal, depois Estado da Guanabara, depois Município do Rio de Janeiro) da década de 1870, que pode ser acessado na Biblioteca Nacional Digital, mostra que naquela época já existia uma capela dedicada a Nossa Senhora da Penha no local.
Trecho do mapa do Município Neutro da década de 1870 mostrando que a capela já existia (seta)
Outra informação que atesta a antiguidade da capela é uma nota na revista O Malho de 20 de fevereiro de 1929 sobre a inauguração, em novembro do ano anterior, do novo altar-mor da capela, informando que lá “se venera uma antiquíssima imagem de Nossa Senhora da Penha”. Se em 1929 já era “antiquíssima”, dá para imaginar quão antiga seria a capela!
O Malho de 20/2/1929
Após permanecer em ruínas por quase meio século, enfim essa graciosa capela vem sendo dignamente restaurada, com base em fotografias antigas, graças ao esforço do padre da paróquia e do trabalho voluntário e contribuições dos moradores, já que as obras não contam com nenhum patrocínio empresarial ou apoio institucional. Os paroquianos de Cosmos estão de parabéns por essa iniciativa que mostra que, mesmo na falta de verbas, recursos, dotações, gratificações, propinas, emolumentos, quando existe vontade férrea, a fé realmente remove montanhas. Para o pessoal que vive resmungando (ou fazendo greve) sem mover uma palha para mudar a realidade, o afã do pessoal do subúrbio de Cosmo serve de edificante lição.
E agora vamos às fotografias tiradas numa bonita segunda-feira de sol invernal, após uma primeira tentativa frustrada no domingo, quando deparei com o acesso à igreja fechado.
Subindo o morrinho
A capela: lateral
Árvore e vista
Obras da escadaria
Interior da capela
Janela ogival
Pedra fundamental
Fachada da capela
Capela de Nossa Senhora da Penha
O cruzeiro
Fiação
Paróquia Santa Sofia (lateral) com afresco da Santa Ceia bem descascado
Casinhas de subúrbio: quais delas ainda remontam ao loteamento original de 1929?