► Trechos do Romance XXXI do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles:
Por aqui passava um homem
— e como o povo se ria! —
que não passava de Alferes
de cavalaria!
“Faremos a mesma coisa
que fez a América Inglesa!”
E bradava: “Há de ser nossa
tanta riqueza!”
Por aqui passava um homem
— e como o povo se ria! —
“Liberdade ainda que tarde”
nos prometia.
E cavalgava o machinho.
E a marcha era tão segura
que uns diziam: “Que coragem!”
E outros: “Que loucura!”
Mas ninguém mais se está rindo
pois talvez ainda aconteça
que ele por aqui não volte,
ou que volte sem cabeça...
► Trecho do ótimo livro Praça Tiradentes de Roberta Oliveira:
Não foi exatamente na Praça Tiradentes e muito menos em Minas Gerais, como muitos pensam, que Tiradentes morreu. Tendo nas mãos um mapa da Biblioteca Nacional [ver abaixo], datado de 1785-1760, o historiador Milton Teixeira mostra o local exato da execução. Marcado pela palavra “forca”, este ficaria a algumas centenas de metros da atual Praça Tiradentes, mais precisamente no que hoje é a esquina da Avenida Passos com Rua Buenos Aires. Através do mapa e de alguns relatos históricos, também é possível reconstituir as últimas passagens da vida de Tiradentes. Milton conta que o alferes teria sido preso em 10 de maio de 1789, numa casa na Rua dos Latoeiros (atual Rua Gonçalves Dias), onde teria se escondido depois de passar um tempo na Igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens (na atual rua da Alfândega). Tiradentes foi levado então para a Ilha das Cobras, onde passou a ocupar a cela número 3 do cubículo 5. Lá, foi submetido a vários interrogatórios, sempre negando a sua ligação com a Conjuração Mineira. Forçado pelas circunstâncias — todos os seus colegas o apontaram como líder do movimento — acabou assumindo o envolvimento. [...] Em sua sentença, a rainha Maria I foi taxativa: dos dez envolvidos, nove seriam presos e um seria condenado à morte. “Claro que sobrou para Tiradentes, que, além de ser o mais pobre entre os dez, ainda era dentista, profissão que parece nunca ter sido vista com bons olhos pelos portugueses”, brinca Milton. [...]
Detalhe do mapa de 1760 que mostra o local onde ficava a polé ou forca (seta). A Sé Nova à esquerda da seta não chegou a ser construída e no seu lugar está o atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Um pouco embaixo à esquerda dele, a Igreja de São Francisco de Paula e mais abaixo a de Nossa Senhora do Rosário, que ainda existem. A Rua do Alecrim (que era um prolongamento da Rua Nova do Hospíco) hoje é a Buenos Aires. O mapa inteiro pode ser visto aqui. |
Não foi na Ilha das Cobras que Tiradentes passou sua última noite, e sim na Cadeia, edifício que ficava onde hoje está o Palácio Tiradentes; não por acaso, ali foi posta uma estátua do inconfidente. Vestido com uma camisa de onze varas e, segundo a lenda, depois de ter beijado as mãos e os pés do seu carrasco, Tiradentes deixou a cadeia na manhã de 21 de abril de 1792. Ele teria, então, seguido pela Rua da Cadeia (atual Rua da Assembléia), chegado ao Largo da Carioca, continuado pela Rua do Piolho (atual Rua da Carioca) até o campo da Lampadosa, assistido à missa na igreja que, na época, dava nome ao local e, finalmente, enforcado na esquina da Avenida Passos com Rua Buenos Aires. “Tiradentes nunca teve barba, bigode e cabelão, como costuma ser retratado em quadros e, no momento da execução, estava careca. Mas como a República chegou ao Brasil com um caráter agnóstico, o principal objetivo foi substituir a imagem dos santos pela das figuras pátrias. A de Tiradentes era a que mais se parecia com a de Cristo, porque, enquanto este veio para nos salvar, aquele teria vindo para nos libertar”, diz Milton, lembrando que, depois da execução, o corpo foi esquartejado na Casa do Trem (atual Museu Histórico Nacional) e cada pedaço enviado para lugares onde ele tivesse pregado suas idéias libertárias.
► Texto extraído do livro TIRADENTES CARIOCA de André Luís Mansur e Ronaldo Morais:
Tiradentes é um dos personagens mais polêmicos da História do Brasil, graças, principalmente, à sua transformação em mártir da então recém-criada república brasileira, em 1889. Os novos líderes do país precisavam de um símbolo dos novos tempos, algo ou alguém que marcasse a ruptura com o passado monárquico, ainda descendente da dinastia portuguesa dos Bragança. Tiradentes surge como este símbolo, ideal não apenas por ter lutado pela liberdade, nos moldes da República dos Estados Unidos da América do Norte, mas também por ter sido condenado à morte por D. Maria I, bisavó de Dom Pedro II, o imperador que os republicanos haviam acabado de destronar.
Tiradentes é um dos personagens mais polêmicos da História do Brasil, graças, principalmente, à sua transformação em mártir da então recém-criada república brasileira, em 1889. Os novos líderes do país precisavam de um símbolo dos novos tempos, algo ou alguém que marcasse a ruptura com o passado monárquico, ainda descendente da dinastia portuguesa dos Bragança. Tiradentes surge como este símbolo, ideal não apenas por ter lutado pela liberdade, nos moldes da República dos Estados Unidos da América do Norte, mas também por ter sido condenado à morte por D. Maria I, bisavó de Dom Pedro II, o imperador que os republicanos haviam acabado de destronar.
O resto, todo mundo conhece, ou já ouviu falar. Embora não exista nenhuma descrição de seu rosto, deram-lhe cabelos e barbas longas, o que seria impossível por Tiradentes ser militar, mas aí já estava explícita a vontade de compará-lo a Jesus Cristo (embora também não haja nenhuma descrição de seu rosto), com direito a martírio, execução pública e até a um Judas. “O processo foi facilitado por não ter a história registrado nenhum retrato seu. Restaram apenas algumas indicações nos autos. A idealização de seu rosto passou a ser feita não só pelos artistas positivistas, mas também pelos caricaturistas das revistas ilustradas da época” ” (Revista de História da Biblioteca Nacional, artigo “Mito Universal”, de José Murilo de Carvalho)
► Texto publicado na REVISTA ILLUSTRADA de abril de 1892, ano do centenário da morte do inconfidente:
O centenário de Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira, representa para o moderno Brasil republicano a maior data da sua história.
Vindo das camadas inferiores, o mero alferes de milícia bem cedo ainda concebeu o plano grandioso de libertar a nossa cara pátria de um governo medíocre e indecoroso. E, impelido pela beleza desta conquista, que lhe atestava verdadeira intuição da política americana, deixou-se levar ao patíbulo, porque tinha certeza que a sua inquisição era mais do que um passo para a vitória do seu Ideal. E de fato. Como as plantas necessitam de orvalho para o seu desenvolvimento, a Ideia necessita de sangue para o seu triunfo. É o alimento, é a seiva que produz e produziu as árvores frondosas, à sombra das quais as caravanas descansam.
O Brasil, hoje República, celebra o centenário do desaparecimento do seu primeiro mártir. Tocante lição de história pátria e oxalá que tão nobre, tão extraordinário exemplo de altruísmo, posso inspirar melhor aqueles que nos governam, para a felicidade deste país, que ele tanto amou.
Cumpre, pois, aos nossos homens, respeitar pela lei, pela história e pela pátria, a figura simbólica, misto de amor e de liberdade, de quem para nós é mais do que um princípio – é uma força propulsora.
► A construção do mito de Tiradentes (trecho do estudo “A Prisão de Tiradentes” de Ana Celina Figueira da Silva, David Kura Minuzzo e Eliane Muratore, cuja íntegra você pode acessar aqui)
Antônio Parreiras, A Prisão de Tiradentes, 1914, óleo sobre tela, acervo do Museu Julio de Castilhos |
► A construção do mito de Tiradentes (trecho do estudo “A Prisão de Tiradentes” de Ana Celina Figueira da Silva, David Kura Minuzzo e Eliane Muratore, cuja íntegra você pode acessar aqui)
As várias representações de Tiradentes ao longo da história do Brasil não são de um homem comum de sua época, mas de um personagem idealizado. É essa idealização que encontramos, de certa forma, na pintura A Prisão de Tiradentes; e para que possamos melhor avaliar a leitura do inconfidente proposta por Parreiras na obra, é necessário antes analisar como se formou o mito do herói nacional durante o período republicano.
Tiradentes é um dos mais bem-sucedidos mitos heroicos que o Brasil criou. José Murilo de Carvalho [em A formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990] nos mostra que o sucesso da construção desse mito está na associação feita de Tiradentes à figura de Jesus Cristo e o martírio deste.
Após a proclamação da República os republicanos enfrentaram dificuldade em encontrar a figura de um herói que representasse a sua causa e tivesse a “cara da nação”. Os principais participantes do evento de 15 de novembro não correspondiam à imagem que se pretendia criar de herói da República. Deodoro da Fonseca era militar demais e sua aparência lembrava a do outro ilustre velho, o imperador; Benjamin Constant não era líder militar nem civil e Floriano Peixoto era identificado com o jacobinismo republicano, que não correspondia ao tipo de República que estava se construindo. [...]
Pode-se dizer que a violência revolucionária dos inconfidentes permaneceu latente, porém a violência real, a que realmente aconteceu, foi a dos carrascos de Tiradentes. Portanto, Tiradentes foi somente uma vítima. Também Tiradentes prestava-se ao papel de herói, pelo paradoxo de que durante o tempo que passou na cadeia, até seu enforcamento em 21 de abril de 1792, tornara-se místico. A coragem demonstrada em seus últimos momentos de vida provinha do fervor religioso, assumira a postura de mártir, a exemplo de Jesus Cristo. Essa imagem mítica de Tiradentes é inicialmente construída com a obra História da Conjuração Mineira, de Joaquim Norberto de Souza Silva, em 1873. Souza Silva era alinhado à monarquia e para minimizar o papel de Tiradentes no movimento da Inconfidência, relatara as transformações ocorridas em sua personalidade e comportamento durante o período de reclusão. [...]
Os republicanos, a princípio não aceitaram a figura de um Tiradentes místico. Porém, Carvalho nos informa que a partir do livro de Souza Silva, tanto a tradição oral, como as representações plásticas e literárias de Tiradentes e até mesmo as exaltações políticas sobre o inconfidente, passaram a utilizar cada vez mais a simbologia religiosa e a aproximá-lo da figura de Cristo. Como não existia nenhum retrato de Tiradentes, as representações iconográficas, que passaram a ser feitas dele, basearam-se na descrição mística feita por Souza Silva em sua obra. Assim, um Tiradentes semelhante a Jesus Cristo, de barba e cabelos longos é a primeira representação pictórica do inconfidente feita por Décio Villares, em 1890 [que você pode ver aqui]. Trata-se de uma litogravura, onde aparece o busto de Tiradentes com a corda ao pescoço, ornado com “a palma do martírio e os louros da vitória. Barba e cabelos longos, ar sereno, olhar no infinito, era a própria imagem de Cristo”.
Durante o final do século XVIII e início do XIX são produzidas obras de arte dedicadas a Tiradentes, ressaltando a simbologia cristã; essas obras são: Martírio de Tiradentes, de Aurélio Figueiredo, 1893 [aqui]; Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, 1893 [aqui]; A Inconfidência, de Antônio Parreiras, 1901 e a Leitura da sentença dos inconfidentes, de Eduardo de Sá, este sem data [aqui].