O episódio a seguir, narrado pela viajante francesa Adèle Toussaint-Samson, que morou pouco mais de uma década no Rio de Janeiro em meados do século XIX, em seu livro Une Parisienne au Brésil, pode perfeitamente ter inspirado Machado de Assis a escrever seu conto O Esqueleto de 1875. Confiram o relato da Adèle.
A primeira vez que fui convidada no Rio para um dos bailes
de São João, lembra-me que, dançando, lancei os olhos para o artista que se
achava ao piano e fiquei impressionada pela estranha palidez de seu rosto. Tão
extraordinária era que não pude resistir ao desejo de perguntar se esse moço,
que poderia ter trinta e cinco anos, sofria de alguma enfermidade grave.
Responderam-me que ficara assim desde o dia em que matara a mulher.
Imagine o efeito que sobre mim produziu tal resposta! Quis
logo conhecer os detalhes dessa trágica aventura, e eis o que me contaram:
O senhor M..., um de nossos compatriotas, chegara três meses
antes com sua mulher, moça e lindíssima, contratada como cantora nos teatros do
Rio. Aos pés da encantadora artista choviam, todas as noites, os buquês e as
cartas, e entre os mais apaixonados fez-se logo notar um jovem doutor da cidade,
que tinha feito seus estudos na França, e cujo espírito havia assumido o
tom zombeteiro e cético próprio dos parisienses. A moça correspondeu logo
à paixão que inspirava e tornou-se amante do doutor. Começando o marido a
desconfiar de alguma coisa, fez várias cenas de ciúme para a mulher.
Entretanto, não tinha ainda certeza.
Um dia, ao vê-la pronta para sair, mais adornada que de
costume, teve a intuição de que ela ia a um encontro amoroso e, colocando-se à
sua frente:
– Não sairás! disse-lhe.
– Hei de sair!
replicou ela, dirigindo-se para a porta. Então, o marido, puxando do peito uma
pistola que mantinha lá escondida, desfechou aqueles dois tiros à queima-roupa
contra sua jovem esposa, que se estendeu sem vida a seus pés; feito o que, foi
entregar-se à prisão. Depois de ser julgado, foi absolvido pela lei, e ficou no
país, onde a cada passo encontrava o homem que o desonrara. Teve a triste
coragem de matar a mulher, mas não teve a de matar o homem.
Manchado por este crime, trazendo daí em diante, como eterno
estigma, essa palidez cadavérica, continuava, entretanto, a vir às noites tocar
polcas e quadrilhas para a juventude brasileira dançar, pois seu crime o
pusera, até certo ponto, em moda.
Esta narração gelou-me; meus olhos não podiam se desviar desse
homem, a quem geralmente lastimavam, enquanto eu não achava para ele, ao
observá-lo, senão esta palavra: “Covarde!” O baile perdeu logo para mim, pouco
a pouco, toda sua alegre fisionomia: a nota lúgubre dominava nele. Julguei-me
sob o domínio de um conto de Hoffmann; parecia que um vampiro dirigia a dança.
Pensei muitas vezes nessa jovem e bela criatura, morta sem piedade na flor da
idade, e quis saber se o amante teria, ao menos, conservado sua lembrança.
Responderam-me que, quando a moça morreu, mostrara grande dor, e fizera mesmo
resgatar secretamente os restos mortais de sua amante. Isso me enterneceu.
Alguns anos depois consegui completar as informações sobre a
aventura. Ei-las:
Soube que o amante, doutor em medicina, como ficou dito,
fizera preparar e articular o esqueleto de sua antiga amante e, algumas vezes,
depois de beber, chegara a dizer a alguns de seus mais íntimos amigos:
“Querem saber em que se transforma, depois da morte, uma
mulher jovem e bonita, loura, branca e rosada? Vou mostrar-lhes!”
O doutor abria então um armário e, indicando com o dedo,
sorridente, um horrível esqueleto de dentes brancos, que havia sido a formosa
criatura cuja beleza ainda é proverbial no Brasil e que fora assassinada por
causa dele:
“Eis aí!” dizia.