ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

20.12.15

NATAL NOS VELHOS TEMPOS

Igrejinha de Copacabana pelo artista plástico Camões

Como teria sido o Natal brasileiro antes de sua "europeização" e da adoção da árvore de Natal e do Papai Noel? A julgar pelo conto do Machado de Assis, Missa do Galo ("Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite."), por Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro de Joaquim Manuel de Macedo (autor de A Moreninha) e pela crônica Como se Ouve a Missa do Galo de João do Rio, publicada em 1906, a grande atração da véspera do Natal era a missa do galo. As pessoas acorriam à missa em massa como hoje vão à queima de fogos do Réveillon. Mas a missa em si, mero pretexto para brincadeiras, paqueras, bebedeiras. Pelo menos é o que se depreende da crônica saborosa do João.

 
Igrejinha de Copacabana em cartão postal de 1910

COMO SE OUVE A MISSA DO GALO (trechos), de JOÃO DO RIO

Eu estava exatamente defronte da igreja de Santana, dispondo de um automóvel possante. Era a mais que alegre hora da meia-noite que alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra. Aquele trecho da cidade tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto de anormalidade. (...)

Grupos de rapazes berravam graças, bondes paravam despejando gente, vendedores ambulantes apregoavam doces e comestíveis; todos os rostos abriam-se em fraterna alegria, e naquela sarabanda humana, naquele vozear estonteante, uma nota predominava – a do namoro. Os rapazes estavam ali para namorar, para aproveitar a ocasião. (...)

Copacabana devia ser divertido. Tomei de novo o automóvel e disse ao chauffeur:

– Para Copacabana.

Naquele delicioso percurso da Avenida Beira-Mar, toda ensopada de luz elétrica, outros automóveis de toldo arriado, outros carros, outras conduções corriam na mesma direção. Homens espapaçados nas almofadas davam vivas, mulheres de grandes chapéus estralejavam risos, era uma estrepitosa e inédita corrida para Cítera [ilha do Egeu famoso pelo templo a Afrodite]

(...) Cerca de três mil pessoas – pessoas de todas as classes, desde a mais alta e a mais rica à mais pobre e à mais baixa, enchia aquele trecho, subia promontório acima [em direção à igrejinha de Copacabana]. E o aspecto era edificante. Grupos de rapazes apostavam em altos berros subir à igreja pela rocha; mulheres em desvario galgavam a correr por outro lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se confundiam num amálgama formidável, todos os temperamentos, todas as taras, todos os excessos, todas as perversões se entrelaçavam. (...)

De todos os lados partiam cantos de galo. Os cocoricós clássicos vinham finos, grossos, roufenhos, em falsete: – Cocoricó! Cocoricô!

– Já ouviste cantar o galo?
– Pois hoje não é a missa dele?
Cocoricó! pega ele pra capar!
– Pega!

A igrejinha [de Copacabana] estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada lateral haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o templo...

(Do livro A alma encantadora das ruas, de João do Rio, organizado por Raúl Antelo e publicado pela Companhia das Letras)



Igrejinha de Copacabana em antiga foto de Marc Ferrez

UM PASSEIO PELA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (trecho), de JOAQUIM MANUEL DE MACEDO

As festas do Natal estendiam-se, como ainda hoje, do dia 25 de dezembro do ano que acabava até 6 de janeiro do novo que começava. Nelas, porém, predominavam os dias de Natal, de Ano Bom e de Reis. 

O dia de Natal era notável pela missa chamada do galo, pelas ceias alegres que a precediam e que tão famosas eram, e pelos presépios que se abriam ao público, e a que concorriam chusmas de visitadores. 

No fim do século passado, os presépios mais estimados do Rio de Janeiro eram três. O da ladeira de S. António, que os religiosos franciscanos apresentavam anualmente. O do convento da Ajuda [onde hoje fica a Cinelândia], mais pequeno que o precedente talvez, porém mais curioso e atrativo, porque ao mesmo tempo em que se viam as figuras do presépio, se ouviam cantos religiosos e análogos ao assunto, entoados pelas freiras. E incontestavelmente superior a ambos, o presépio do Livramento, na casa que fica ao lado direito da capela de N. S. do Livramento. 

Estes presépios conservavam-se abertos e patentes ao público em todas as noites, desde a do Natal até à de Reis.

(Do capítulo "A Capela e o Recolhimento de N. S. do Parto")

Nota: A igrejinha, citada na crônica de João do Rio, situava-se onde hoje se ergue o Forte de Copacabana. Uma dica para cariocas e visitantes: o forte, que abriga o Museu Histórico do Exército, está aberto à visitação. De lá você desfruta vistas magníficas das praias de Copacabana, Arpoador e Ipanema. Saiba mais sobre o forte clicando em FORTE DE COPACABANA no GUIA DO RIO no cabeçalho deste blog. 

19.12.15

INAUGURAÇÃO DO MUSEU DO AMANHÃ

TEXTO DE RAFAEL TEIXEIRA PUBLICADO ORIGINALMENTE NA VEJA-RIO DE 12/12/205 E FOTOS (TIRADAS NA VÉSPERA DA INAUGURAÇÃO, COM O MUSEU AINDA VAZIO) DE SANDRA SANTOS


Em Atlas, seu último livro publicado em vida, o argentino Jorge Luis Borges escreveu, a respeito de um dos maiores desertos do mundo: “Ao pé das pirâmides, tomei um punhado de areia, caminhei alguns passos, despejei-o um pouco à frente e disse para mim mesmo: eu modifiquei o Saara”. O trecho, simbolicamente, adorna uma parede do Museu do Amanhã, o mais novo centro cultural da cidade, construído em uma área de 34 000 metros quadrados na Zona Portuária, defronte à renovada Praça Mauá e às margens da Baía de Guanabara. Com linhas arrojadas projetadas pelo estrelado arquiteto espanhol Santiago Calatrava, o espaço abre finalmente suas portas ao público no próximo sábado (19), após cinco anos de obras que consumiram 215 milhões de reais. Dentro do edifício estão reunidas atrações de alta tecnologia que convidam o visitante a refletir sobre a construção do futuro com base no impacto das ações humanas no planeta. “Queremos que as pessoas sejam inspiradas por aquela ideia do Borges”, diz o físico e doutor em cosmologia Luiz Alberto Oliveira, curador do museu, referindo-se ao conceito evocado no texto do escritor, de que profundas transformações coletivas começam com pequenos gestos individuais.
O coração do museu é uma exposição de longa duração instalada no 2º piso, em uma galeria com 300 metros de comprimento. Cinco perguntas fundamentais, que acompanham a humanidade desde os seus primórdios, norteiam a visita: de onde viemos, quem somos, onde estamos, para onde vamos e como queremos ir? (Leia mais na Veja-Rio clicando aqui.)

12.12.15

HANGAR DO ZEPPELIN EM SANTA CRUZ


Dá-se o nome de zeppelin a um charuto de seda, com arcabouço de alumínio e alma de hidrogênio... (Ideias no Ar, Berilo Neves, em O Malho, 21/5/1936)

1936 de Petrarca Maranhão (revista O Malho, 19/3/1936)

Panorama: um avião no céu reboa
O ruído estrepitante dos motores...
No porto, embaixo, o apito dos vapores
Numa rima sincrônica ressoa...

À distância, na altura, lento, voa,
Irradiando centelhas multicores
Que se esbatem do sol nos esplendores,
Um Zeppelin que barra a dentro aproa!...

Perto, o silvo violento, — estranho berro —
De um trem na elétrica estação de ferro
Ecoa... Tudo em torno é vida e excesso...

... E a cidade no brouhaha da rua,
Nos klaxons de automóveis, tumultua,
No simbolismo mesmo, do "Progresso"!...

Zeppelin saindo do Hangar em painel assinado por Creuza de 1999

O Hangar do Zeppelin foi construído entre 1934 e 1936. Suas estruturas vieram da Alemanha e a mão-de-obra foi brasileira, supervisionada por técnicos alemães. Em seu interior podia ser acomodado um Zeppelin. O Hangar mede 274m de comprimento, 58m de altura e 58m de largura. É o único ainda existente, já que os outros dois construídos na Alemanha foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial. Dois Zeppelins faziam a linha da América do Sul, por serem os melhores e os maiores: Graff Zepellin e o Hindenburg. Partiam de Frankfurt, na Alemanha, atracavam em Pernambuco e desciam em Santa Cruz (Rio), onde eram recolhidos dentro do Hangar para a manutenção, o reabastecimento e o embarque de passageiros. Com o incêndio do Hindenburg em 1937, nos Estados Unidos, o projeto dos Zeppelins foi cancelado. O Hangar serviu de base para o 1o Grupo de Aviação de Caça da Força Aérea Brasileira, que atuou na Segunda Guerra Mundial. A escolha de Santa Cruz para sediar o Hangar se deveu às condições climáticas, direção dos ventos, velocidade e possibilidade de locomoção através de outros meios de transporte, ligando o bairro à Cidade. O hangar recebeu o nome de Aeroporto Bartolomeu de Gusmão, onde hoje está localizada a Base Aérea de Santa Cruz, o maior complexo aerotático da América Latina. (Dados obtidos no totem de informações em frente ao Hangar) 


Base Aérea de Santa Cruz

O Hangar

Entrada menor (nordeste)

Dentro do hangar

Dentro (detalhe)


Em 1934 o Governo brasileiro assinou um contrato com a empresa alemã Luftschiffbau Zeppelin para o estabelecimento de uma linha regular de dirigíveis entre o Brasil e a Europa, bem como a construção de um aeroporto para dirigíveis no Rio de Janeiro. A escolha do local deveu-se ao regime de ventos e ausência de nevoeiro e bruma. O hangar foi construído com a entrada principal voltada para sudoeste, de modo que o vento o percorresse longitudinalmente, evitando o desgaste da estrutura se o vento batesse de lado. O então chamado Aeroporto Bartholomeu de Gusmão foi inaugurado na manhã do dia 26 de dezembro de 1936 em cerimônia a que compareceram o embaixador alemão, políticos, o ministro da Viação e o presidente Getúlio Vargas. Ao jornal O Globo declarou o Presidente: “A minha impressão é a mais grata, por isso que é no meu governo entregue ao tráfego aéreo o maior aeroporto do mundo.” Ao arrendar o aeroporto pelo prazo de trinta anos para a Luftschiffbau Zeppelin o governo esperava ressarcir as despesas com a construção do aeroporto. Só que, com o incêndio do Hindenburg e o início da Segunda Guerra Mundial, os voos dos zepelins foram descontinuados, ficando apenas na memória de quem os via flutuando pelos céus cariocas, como o poeta Manuel Bandeira, que escreveu uma crônica intitulada "Zeppelin em Santa Teresa". O Hangar foi tombado pelo Município em 1992, e visitas devem ser agendadas com o Sargento Arruda da Comunicação Social, telefone 3078.0389.


O Zeppelin dentro do Hangar (foto do Centro de Memória)

O Hangar, o Zeppelin, a alfândega e o trem

Antigo depósito esférico de hidrogênio, agora de água, e o Hangar à direita.

Uns vinte anos atrás o depósito foi pintado como um globo terrestre com indicação da rota do Zeppelin

TRECHO DO ARTIGO "A SEMANA ZEPPELIN" NA REVISTA FON FON DE 24 DE MAIO DE 1930:



A SEGUIR, FOTOS DO ZEPPELIN SOBRE O RIO DE JANEIRO EXTRAÍDAS DA REVISTA O MALHO:








1.12.15

INAUGURAÇÃO DA CASA DO JONGO DA SERRINHA


TEXTO DE HELOIZA GOMES PUBLICADO NA VEJA-RIO DE 20/11/2015. FOTOS E VÍDEO DO EDITOR DO BLOG.

No domingo (29), a partir das 10 horas, o carioca tem um encontro marcado com suas raízes. É que nessa data será inaugurada a Casa do Jongo, que servirá de sede para o Grupo Cultural Jongo da Serrinha, criado há cinquenta anos em Madureira. A festa terá lavagem da Rua Compositor Silas de Oliveira (onde fica o estabelecimento), com líderes de diversas religiões, café da manhã, rodas musicais e apresentação da orquestra de alunos da UFRJ. Tudo, é claro, ao som do jongo.





O imóvel, doado pela prefeitura do Rio em 2013, fica no pé do Morro da Serrinha, local de resistência do gênero musical. Afinal, foi lá que, na década de 60, Mestre Darcy do Jongo (1932-2001), ao ver que a batucada e as danças corriam o risco de desaparecer, convidou algumas jongueiras, como Vovó Teresa (1864-1979) e Djanira do Jongo (1934-1995), para passar seu conhecimento às novas gerações — até então, por tradição, o jongo podia ser dançado somente por idosos. Estava então formado o grupo Jongo da Serrinha, com a missão de perpetuar o misto de dança e cantigas (chamadas de pontos) nascido na África.

O jongo, ou caxambu, como também é conhecido, chegou ao Brasil por meio dos negros de origem bantu, trazidos como escravos para trabalhar nas fazendas do Vale da Paraíba, Minas Gerais e São Paulo. Nessa época, só tinham permissão para se manifestar nos dias dos santos católicos. Na prática, o jongo é constituído de dança de roda e de cantigas de frases curtas, entoadas por um solista, cujo refrão é respondido pelo restante do grupo. A natureza, a opressão e o cotidiano são alguns de seus temas.

Com a abolição da escravatura, os ex-cativos migraram para o Rio e, com o tempo, foram se instalando nos morros cariocas, como São Carlos, Salgueiro, Mangueira e Serrinha. A partir da década de 30, no entanto, a prática foi desaparecendo, e o único local a manter a tradição foi o Morro de Madureira. Foi graças aos jongueiros do bairro que o gênero sobreviveu e, em 2005, foi tombado como o primeiro bem imaterial do Estado do Rio de Janeiro.







27.11.15

ORIGENS DA TATUAGEM NO BRASIL

QUAIS SÃO AS ORIGENS DA TATUAGEM NO BRASIL, ESPECIFICAMENTE NO RIO DE JANEIRO? OS DOIS TEXTOS ABAIXO, DE LUÍS EDMUNDO E JOÃO DO RIO, AJUDAM A DESVENDAR AS ORIGENS DESSE ANTIGO HÁBITO OUTRORA RESTRITO A ESCRAVOS, MARINHEIROS E MERETRIZES, MAS QUE MODERNAMENTE SE GENERALIZOU.


TRECHO DO CAP. 7 DA OBRA CLÁSSICA DE LUÍS EDMUNDO O RIO DE JANEIRO DO MEU TEMPO:

Bem em meio à Ladeira do Castelo mora Florêncio da Palma, conhecido tatuador da Marinha, discípulo do Madruga, figura mais que conhecida na cidade, mestre na arte de tatuar e que, nas horas de sueto, dedilha o violão, criando canções que o povo, depois, gostosamente, decora e canta.

Florêncio, autor e cantor em voga, mais parece uma personagem arrancada às revistas regionais de João Foca, com a sua grenha a escorrer óleo de oriza, o seu bigode falhado e a sua pera-mosca, à Floriano. É tatuador de marinheiros, com especialidade em marcas onde entrem símbolos da arte de navegar. Pela época, é grande moda a tatuagem entre a nossa Maruja, entre soldados do Exército ou da Força Policial.

Foram os negros da África, aqui trazidos pelos portugueses, que introduziram essas fantasiosas marcas que se fazem na epiderme. Quando não vinham tatuados, esses negros aqui se tatuavam, obedecendo a velhas tradições regionais. Debret ensina-nos, por exemplo, que o monjolo tatuava-se, fazendo incisões verticais nas faces; o mina, fazendo uma continuidade de pontos salientes, provocados por tumefações que as agulhas de ferro produziam no rosto; o moçambique trazia, quase sempre, um sulco, uma espécie de crescente na testa, e assim por diante. Essas formas clássicas, entanto, degeneraram com o tempo, sendo, mais tarde, transformadas em símbolos, contando a vida amorosa dos tatuados, a profissão por eles exercida, etc.

Os nossos índios pintavam-se. Algumas vezes lanhavam o rosto, braços e pernas, mas não se tatuavam.

Pratica-se a tatuagem por incisão, por picadas ou por queimaduras subepidérmicas. Completa-se o trabalho com a ajuda de três agulhas que se embebem em anil, em tinta de escrever, em graxa, pólvora ou fuligem. Antes da aplicação das agulhas, traça-se o desenho que se deseja obter sobre a pele: um coração atravessado por uma seta, uma rosa, um navio, uma estrela, umas iniciais que se confundem ou entrelaçam, um nome, uma frase...

Como bom tatuador, Florêncio da Palma tem o corpo coberto de sinais, e, como o seu grande mestre Madruga, também mostra, no peito, a imagem do Redentor. Além disso, espalhados pelas costas, braços, ventre, coxas, mãos e pés, sinais de Salomão, âncoras, datas, nomes de mulheres e ainda marcas misteriosas e indecifráveis. São, por sua vez, de um pitoresco exótico ou disparatado todas essas tatuagens. Sabe-se de um marinheiro, por exemplo, cabo em Villegaignon, que possui, pelo dorso, espalhada, em estético realce, toda uma esquadra, feita a bicos de agulha, nada menos que sete navios nacionais: o Riachuelo, o Aquidabã, inclusive todos os vasos de guerra em que ele serviu embarcado, desde que assentou praça na Marinha. Outros há que mandam tatuar o corpo com emblemas pátrios: escudos da Monarquia, armas da República, quando não se marcam com nomes de heróis da pátria. João do Rio diz-nos ter visto, entre tatuagens interessantes, a do braço de um soldado de polícia onde se escrevia esta legenda patriótica: — Viva o Marechal de Ferro!

Os valentes da Saúde, da Gamboa e do Saco do Alferes tatuam-se bem como as meretrizes de ínfima classe, estas mandando marcar, pelos braços, pelas coxas ou pelo peito, o nome dos seus amados. Convém revelar, ainda, que os negros, outrora introdutores da tatuagem entre nós, já bem pouco se tatuam pela época.


TRECHO DO CAPÍTULO "OS TATUADORES" DA OBRA CLÁSSICA A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS DE JOÃO DO RIO: 

Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor – com que se confunde a tinta empregada.

Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d’água doce. Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:

– Eh! Eh! Pedro II não era o dono?

E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros eikones primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth, vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Ihaveh.

A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio – os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.

Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.

– Quer marcar? perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.

Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.

– Que quer V.S.? O pequeno estava a arreliar. Marca, moço, marca! E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.

Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações. Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação miriônima da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:

Venha quanto antes d. Elisa
Enquanto o Chico Passos não atiça
Fogo na cidade...

Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações – um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.

Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras – a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.

Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão,o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra – a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada – tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

20.11.15

MORRO DA BABILÔNIA

CRÔNICA DE JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS PUBLICADA EM O GLOBO DE 23/3/2015 QUANDO O MORRO DA BABILÔNIA, RETRATADO NA NOVELA BABILÔNIA, ERA O "MORRO DO MOMENTO". FOTOS DO EDITOR DO BLOG TIRADAS NO INÍCIO DE NOVEMBRO DO MESMO ANO QUANDO O MORRO ABRIGOU A FLUPP, A FESTA LITERÁRIA DAS PERIFERIAS

Babilônia Black

É Camila Pitanga na garupa da moto, um espetáculo que não vai ao ar nem depois nem antes do “Jornal Nacional”. Ela tem cruzado por aqui sem tirar qualquer onda, porque de ondulada já lhe basta a cabeleira que vai ao vento.


Vista para o mar

Camila pega a Ladeira Ary Barroso, passa pela casa do próprio, reformada recentemente com uma arquitetura contemporânea, no meio da mata. Adiante tem o Bar Point da Amizade, onde está tocando “Te ensinei certim”, da Ludmilla. Na esquina, na quadra da Fapec, Camila poderia pegar à direita. Ir para o Morro do Chapéu Mangueira, onde brilha a casa de sua madrasta, a senadora Benedita. Hoje não. Camila dobra à esquerda. Vai gravar uma cena no Morro da Babilônia.


Mirante do Morro da Babilônia

Esse é o morro do momento, o real, aquele que na ficção deu nome à novela. Em 1959 serviu de cenário para “Orfeu negro”, Oscar de filme estrangeiro para o diretor francês Marcel Camus. Depois foi documentário de Eduardo Coutinho. É um morro da Zona Sul. Tia Ciata não esteve aqui. O ídolo é Junior Negão, do beach soccer, ex-morador. Um morro que não dá samba, mas seu nome sugestivo inspira outras artes.

Mirante do Morro da Babilônia

Ele fica escondido no Leme, atrás da muralha de edifícios da Avenida Atlântica, atrás ainda dos paredões de outros tantos das ruas Gustavo Sampaio e General Ribeiro da Costa. Não adianta procurar no Google Maps. Diz que é na Urca.

Copacabana vista de uma laje no morro

Camila, sempre na garupa da moto que a Globo alugou no serviço de mototáxi da comunidade (R$ 2,50), entra na Rua Um e dá de cara, digo, dá com o rosto de divinos contornos no painel de azulejos assinado por X-Dog e Plebe. São dois artistas argentinos. Em metade do mural eles se inspiraram nos dourados do austríaco Gustav Klimt. Na outra metade, nos cacos de Selarón da escadaria da Rua Joaquim Silva. Os argentinos perceberam: na babel da Babilônia, a Escola de Viena e a Lapa têm peso igual.

Cores do Morro da Babilônia

À esquerda de quem continua subindo na garupa com Camila, logo depois da obra do 11º hostel do morro, surge uma igreja batista, uma das 12 da comunidade. Na fachada, a inscrição dramática, com direito a uma cruz em vermelho: “Deus quero muito mais de ti”.


Vista para o mar II

Novela dramática é o que não falta, e para isso a atriz está aqui. Ela segue pela Rua Um até a Rampa, uma praça depois do posto da UPP. Desce da moto. Na batata da perna, sobe 48 degraus até a laje do Sandro, onde grava a cena que foi ao ar no primeiro capítulo e mostra aos pés de Camila o alumbramento carioca da curva da praia de Copacabana. No movimento da câmera para a esquerda, vê-se o cenário estupefaciente do cocuruto do Pão de Açúcar até os morros de Niterói.

Arquitetura popular, sem cálculo, sem arquiteto, sem engenheiro (e um prédio ao fundo)

O morro podia estar bem melhor. Ainda é preciso à moradora do prédio verde na Rua Um colocar na porta de casa o cartaz “Seu Porco e Sua Porca, aqui não é lixeira. Estou de olho”. Já foi pior. Isso aqui inspirou poema triste. Carlos Drummond, copacabanense da Rua Rainha Elizabeth, escreveu “à noite, do morro descem vozes que criam o terror”— e para não restar dúvida sobre que morro era, de onde vinha o som do medo, o velho bardo pôs no alto dos 15 versos o título “Morro da Babilônia”.

Vista para o mar III

O bicho já pegou geral, agora Camila Pitanga é quem sobe do asfalto para se aproximar das vozes do céu carioca. O prefeito Eduardo Paes come feijoada de frutos do mar no Bar do David, um cinco estrelas na requintada categoria carioca de gastronomia de botequim. Breve, quem também subirá pela Ladeira Ary Barroso será Bruno Gagliasso. Seu personagem na novela, Murilo, um gigolô do Leme, acrescentará a personagem de Sophie Charlotte ao seu book de prostitutas. Ele é o mal em pessoa, mas ao Babilônia isso não importa. Dá-se uma chance.

Arte ambiente

Gagliasso subirá a ladeira, mas dobrará à direita, na direção do Chapéu Mangueira. Parará no primeiro portão, o da Fapec. Ali, vai lutar muay thai, não se sabe ainda com que propósitos. Penca, um ídolo da comunidade, será o mestre dos golpes. O esporte lhe deu uma chance quando garoto de fugir das drogas, e ele agora retribui. Trabalha com 400 meninos da comunidade, uma tentativa de educar a molecada para longe das tentações. Semana passada, num intervalo das aulas, sentado num banco do ônibus do sacolão, Penca descascava uma laranja. A cada menina que passava, perguntava com carinho: “E aí, princesa, vai treinar hoje?”.

Painel de azulejos assinado por X-Dog e Plebe

Esse é o Babilônia, agora no horário nobre. Moças suíças criadas com o melhor leite A do mundo saem do hostel e passam arrastando sandálias havaianas entre policiais da UPP. Eles exibem as armas engatilhadas, parecem estressados, todos prontos para revidar um ataque suicida de traficantes sanguinários, algo que desde a ocupação pacificadora, em 2009, jamais aconteceu.

Mural Babilônia, inspirado em Selarón

 A invasão ao Babilônia agora é a das equipes de filmagem. Não tratam mais com bandidos. Combinam tudo com o produtor artístico do morro, Rafael Rodrigues, amigo de Regina Casé, dono de um book com fotos de modelos da comunidade e de cenários para set. Foi assim que a linda atriz começou a subir no lombo da moto.

Corcovado entre as nuvens

Na semana passada, Sandro, o dono da laje, já recebia propostas para transformá-la num mirante. Não parecia disposto a dividir com estranhos o seu posto privilegiado sobre o paraíso — e dali esticava o olho sobre o que ia lá embaixo, controlando do alto do Babilônia o movimento da Malhadão 22, a barraca que tem na areia do Leme. Fica ao lado da barraca da personagem de Camila Pitanga, a Ponto do Macarrão 08. São concorrentes, mas tudo na paz, tudo nessa adorável confusão carioca de nunca saber onde termina a vida real e começa o capítulo da novela.