ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

29.6.18

COPA DO MUNDO 1950, de CYRO DE MATTOS

Maracanã em cerca de 1967, foto de Marcel Gautherot obtida no site do Instituto Moreira Salles

Já vão longe aqueles idos. Tento tirar da memória alguns momentos daquele mundo que rolava com a infância na bola. Da fumaça do tempo procuro encontrar o menino que jogava pelada nos campinhos improvisados dos terrenos baldios, espalhados pela cidade pequena, com alguns bairros e poucas ruas calçadas. Às vezes o campinho era improvisado em algum fundo de quintal ou pastagem de uma roça perto do centro da cidade. O jogo era disputado debaixo de chuva ou sol escaldante.

Havia o Campinho do Fole no outro lado do rio. Ali eram jogadas aos domingos, pela manhã, as partidas mais importantes. O time de garotos da rua de cima contra o da rua de baixo. No vaivém do jogo não faltavam empurrões, bate-bocas, xingamentos e algumas brigas intensas. Terminando o jogo, o banho na correnteza de águas límpidas serenava os ânimos. Uma amizade feita de relações naturais logo se refazia com mergulhos e saltos a partir de barrancos íngremes.

O pai levava-me para ver os jogos dos times amadores da cidade no Campo da Desportiva. No início cercado com folhas de zinco, depois murado, o Campo da Desportiva era uma festa aos domingos. As folhas de zinco que cobriam a arquibancada zuniam forte quando as rajadas de vento penetravam entre suas frestas. Dava arrepios, parecia que algumas folhas de zinco na cobertura da arquibancada podiam se soltar a qualquer momento e causar danos entre os torcedores.

Lá, naquele campo de grama maltratada, o menino viu lances para não esquecer. Os dribles do meia-esquerda Macaquinho faziam os torcedores sorrir, a bola ficava grudada no seu pé, ninguém conseguia tomar dele. Delicado era um maestro, como sabia tocar a bola com sutileza para o companheiro. Carrapeta tinha uma visão de jogo que só o craque possui. Distribuía o jogo com a cabeça erguida, lançava a bola para o atacante fazer o gol, sem maior esforço. Mais adiante, na época da seleção amadora de ouro, conheci o centroavante Zé Reis, um artilheiro que se o marcador desse bobeira sabia marcar sua presença. Não era jogador técnico, mas longe de ser cabeça de bagre. Cumpria bem a sua missão de fazer gol. Jogou no Fluminense local, na seleção de Itabuna e no Leônico de Salvador, onde foi artilheiro do campeonato por várias temporadas.

E a pior derrota? Em 1950, Brasil contra Uruguai, final do campeonato mundial no Rio. O Brasil jogava pelo empate. Um gol fazia balançar o estádio com 200 mil pessoas. Foi de Friaça no início do segundo tempo, lenços acenavam para os valentes atletas uruguaios. “É campeão! É campeão!” Todos os brasileiros cantavam o grito de glória numa só corrente de vasto amor. Veio o gol de empate dos uruguaios, Schiafino o autor da proeza. Um calafrio penetrava ossos e nervos do Maracanã com a lotação máxima. O inexorável iria acontecer aos 34 minutos. O ponteiro Gighia chutava a bola e a grama. Ninguém acreditava no que se estava vendo, a bola entrando entre a trave e o goleiro Barbosa. Lenços já não acenavam. Aquela coisa que só infundia medo, estupidamente sem tamanho, percorria todo o estádio. Dominava o ar de milhões de brasileiro. Ninguém podia reverter o capricho dos deuses. Contava o locutor que, encerrado o jogo, a procissão de mortos saía do Maracanã, o país em chuteiras, que pensava e amava pelos pés naquele dia, em caos desencantava-se.

Na cidade pequena, eu via as ruas desertas, bares fechados, a praça em silêncio. O padre não rezou a missa das oito à noite. Daí para frente o canto amargo da memória iria lamber as chagas daquele menino que ficou frustrado no cais da vida, esquecido de si, preso ao nada.

Ainda tentei reagir àquela frustração sem igual com os amigos de minha rua. Soube na semana que, em cada domingo, o Cine Itabuna iria projetar na tela as partidas do Brasil no Campeonato Mundial de Futebol. Meus olhos ávidos não perderiam um lance em cada partida da nossa seleção. Hipnotizados acompanhariam cada jogada, cada drible, cada chute contra a meta adversária. Vibraria com a garotada em cada gol que o Brasil marcasse. Contra a Suécia e a Espanha tinha sido demais. Duas estrondosas goleadas. Era melhor não assistir a final contra o Uruguai. O que era uma trama cruel, orquestrada pelos deuses do futebol na final, não devia ser assistido. Seria para todos nós, pequenos torcedores, lotando o Cine Itabuna, muito doloroso a repetição do drama. Nenhum dos meninos ia conseguir resistir ao trauma tão profundo, vendo dessa vez com os olhos a festa dos jogadores uruguaios no Maracanã e a tristeza de nossos craques, chorando, sem saber explicar o que tinha havido de errado naquela derrota trágica.

Valia a pena driblar as sombras de um pesadelo que se alojava em meu pequeno coração. Afugentar aquela coisa que só infundia tristeza, aderia à pele, ardia tanto no coração. Empurrava-me com os outros meninos para os campos do abismo. O plano que armei com os meninos da Rua do Quartel Velho era simples. Não assistiríamos mesmo, na tela do Cine Itabuna, a derrota do Brasil na final contra o Uruguai. Em algazarra sairíamos pela rua gritando “É campeão! O Brasil é campeão!”, batendo com pau nas latas vazias.

Eu liderava o desfile com algazarra feita pelos queridos amigos, ia na frente da turma, segurava o cartaz com o letreiro grande:

BRASIL CAMPEÃO MUNDIAL DE FUTEBOL 1950.

28.6.18

TRAUMAS DO FUTEBOL BRASILEIRO, de CYRO DE MATTOS


O futebol brasileiro gosta de escrever sua história no extremo. Várias vezes desceu uma ladeira horrível , fomos parar no fundo do poço. A primeira catástrofe do futebol brasileiro aconteceu na Copa do Mundo de 1950, no Maracanã. Já vão longe aqueles idos. O Brasil jogava pelo empate. Um gol fazia balançar o estádio com duzentas mil pessoas. Foi de Friaça no início do segundo tempo, lenços acenavam para os valentes atletas uruguaios. Veio o gol de empate dos uruguaios, Schiafino o autor da proeza. Um calafrio penetrava ossos e nervos do Maracanã com a lotação máxima. O inexorável iria acontecer aos trinta e quatro minutos. O ponteiro Gighia chutava a bola e a grama. Ninguém acreditava no que se estava vendo, a bola entrando entre a trave e o goleiro Barbosa. Lenços já não acenavam. Aquela coisa que só infundia medo, estupidamente sem tamanho, percorria todo o estádio. Ninguém podia reverter o capricho dos deuses. Contava o locutor que, encerrado o jogo, a procissão de mortos saía do Maracanã, e o país, que pensava e amava pelos pés, principalmente naquele dia, em caos desencantava-se.

Outras derrotas amargas em campeonatos mundiais iriam acontecer e com elas ferimentos que teimam em não cicatrizar. Anotem a eliminação do Brasil pela primeira vez na fase de grupos, Copa da Inglaterra. Perdera para Portugal por três a zero e para a Hungria por três a um. Só conseguiu vencer a desconhecida Bulgária por dois a zero. Voltamos cabisbaixos para casa. Na Copa de 1982, na Espanha, a lendária seleção, que jamais sucumbiu à derrota contra a Itália, provou que o futebol não é apenas jogar bonito e ofensivo, mas resultado. O Brasil, de Telê, Zico, Sócrates, Junior e Falcão, era a vítima na Tragédia de Sarriá. Eliminado pela seleção italiana, a aguerrida azurra, de Zoff e Paolo Rossi, por três a dois. Em 24 de junho de 1990, outra derrota traumática. Com uma seleção superior, com duas bolas na trave do adversário e um massacre desferido no tempo regulamentar, o Brasil foi eliminado pela Argentina por um a zero. O lance do gol: aos 35 minutos do final, Maradona passou por três brasileiros e serviu Claudio Caniggia, que ficou cara a cara com Taffarel. O atacante teve calma para driblar o goleiro brasileiro e tocar a bola para o fundo das redes. Na Copa de 86, Zico e Sócrates perderam pênaltis, e o Brasil foi eliminado pela França de Platini.

Depois que ganhamos da França por cinco a dois na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, só fizemos perder em mundiais. O dia 12 de julho de 1998 deixou uma triste lembrança para o torcedor brasileiro na disputa da Copa do Mundo, na França. O time brasileiro enfrentou um duro jogo contra a Holanda, nas semifinais. Após o empate por 1 a 1, o jogo foi para as penalidades, vencidas pelo Brasil por 4 a 2. Na final, o Brasil entrou em campo para sagrar-se hexacampeão mundial. Com um futebol apático, sonolento, foi derrotado pelos franceses por 3 a 0, com gols de Zidane (2) e Petit. Antes do jogo, Ronaldo, principal estrela do time brasileiro, sofreu uma convulsão em um episódio que abalou todo o time e que gera polêmica até os dias de hoje.
           
         Pensávamos que o volume da tragédia, com o Brasil derrotado numa final de Copa do Mundo, em sua casa, fosse ser expulso do estádio na Copa de 2014, a ser realizada pela segunda vez nessa “pátria em chuteiras”, como dizia Nelson Rodrigues.
           
          O pior dos traumas estava para acontecer. Sem Neymar, o craque do time, fora retirado de campo contundido, pela falta abominável cometida pelo defensor da Colômbia, na partida anterior, os ares da tragédia começavam a ser anunciados pelos ventos do azar. Ele estava fora da final contra a Alemanha. Apesar dessa baixa enorme, havia alguma confiança de que a batalha final seria vencida pela Seleção do Brasil. Meu Deus, o que foi que aconteceu naquele dia vergonhoso? Perdemos em casa outra Copa do Mundo, dessa vez pelo humilhante placar de sete a um. Em poucos minutos já perdíamos por três a zero, sofremos três gols de repente, um atrás do outro.

Perguntaram a Gerson, o meia-esquerda genial da Seleção de 70, no México, para muitos a melhor de todas em mundiais, como se explicava outra catástrofe do futebol em nossa casa. Não se explica o que é inexplicável, respondeu. Sabem quando vai acontecer outra derrota vergonhosa dessas? A seguir completou, nunca.

Como disse no início que o futebol brasileiro gosta de escrever sua história no extremo, penso que vamos ser hexacampeões de futebol na Copa do Mundo de Moscou.

Até mais verde que te quero verde.

* Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Tem livro publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e Dinamarca. Conquistou o Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, com o livro “Cancioneiro do Cacau”, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, com “Os Brabos”, contos, Associação Paulista de Críticos de Arte com “O Menino Camelô”, infantil, e o Prêmio Nacional Pen Clube do Brasil com o romance “Os Ventos Gemedores”.

15.6.18

O FUTEBOL NOSSO DE CADA CRONISTA, de CYRO DE MATTOS



Disputado por dois times, o futebol tem como objetivo fazer entrar a bola no gol defendido pelo adversário. Como arte nascida do pé na bola descreve linhas e curvas incríveis no decorrer da partida. Nos dois tempos com intervalo, ora faz parte do jogo a ginga e o toque sutil, ora o passe preciso e o tiro certeiro. As cenas que causam espanto aos que estão no estádio resultam do empenho e suor gasto no esforço de cada lance. A bola rola macia no tapete verde ou salta na grama maltratada do campo de várzea. Uma das proezas do futebol consiste em impulsionar o coração para as zonas em que uma gente apaixonada transpira pulsações alegres e dramáticas.

               Provoca uma febre que lateja em sua brasa verdejante e se expande por toda a extensão dos meses no ano. Como gosta de criar apreensões, ritmos frenéticos quando se trata de uma Copa do Mundo, até mesmo se for uma disputa de dimensão nacional, estadual ou municipal. Tremores, clamores, rancores. Vaias da galera formada de todas as gradações sociais.

Surpreende quando irrompe das gargantas no grito de gol, pura curtição da felicidade. Tamanha é uma flor nesse grito ferindo e atordoando que ela se torna mais bela quanto mais sonora. O grito de gol irrompido com tanta força tremula nas bandeiras com o escudo do clube ou a cara do ídolo. Ele é carregado até as nuvens com gritos e ovações. De repente, lá do alto, derrama uma água que molha de amor o mundo fero e solitário aqui embaixo. Esse mesmo mundo que nós os humanos teimamos em forjar com lances de tristeza, rasteiras e carrinhos impiedosos, todos os dias, no duro embate dos dias. Assim levado pelas nuvens, lá vai o futebol em seu percurso de paixão do qual faz descer uma chuva que alaga de emoção a vida, cheia de explicações duvidosas, mas feita também de poesia, inexplicável, tão dela.

Nos textos de alguns de nossos craques das letras, aqui vestindo as cores de um timaço das letras, vemos como o futebol seduz com suas artimanhas, feitiços e sustos esplêndidos. O quanto é amoroso e imprevisível. Cria situações inusitadas, tornando as coisas relativas, escreve Luís Fernando Veríssimo. Maltrata com a mesma mão que afaga. Renuncia às necessidades materiais do cotidiano. Fica radiante de beleza no lado onde se alojou a vitória, faça sol ou chuva. No lado dos pesares, a turma deixa o estádio inconformada, não querendo acreditar no que viu e sentiu. Nessa romaria de frustrações lá vai o futebol em silêncio, mastigando as amarguras da derrota.

Nesse jogo que tantas vezes imita a vida, cheia de calor e pressentimentos, é que o futebol imprime em todos nós suas marcas de encantamento, entre o alegre e o triste. Assim o vemos agora, de crônica em crônica. Com Armando Nogueira, por exemplo, um pouco da história de nosso futebol sai dos bastidores para que se conheça o heroísmo de Vavá, o Leão da Copa de 58, nos gramados da Suécia. Em Carlos Drummond de Andrade, de repente o ódio faz-se alegria, o futebol afugenta mazelas, não quer saber da morte. O coração do poeta está feliz no México e com o dele o de milhões de brasileiros, que sente do lado de cá como é bom chover papéis picados pelas ruas e explodir fogos de artifício loucos no céu quando se ganha uma copa do mundo. Melhor ainda se o feito é creditado a uma seleção inigualável de craques, comandados por Pelé, o “sempre rei republicano”.

O futebol chega a ter sabor de obra-prima quando é descrito por Fernando Sabino em Iniciada a Peleja. Se impõe nesse momento de reunião importante dos executivos para tratar de assunto sério. Fala mais alto em cada lance vibrante, chegando ao ouvido do torcedor atento e nervoso, através de um pequeno rádio de pilha. Já Carlos Heitor Cony mostra como o futebol é muito perigoso. Tem dessas coisas que ultrapassam o óbvio ululante de qualquer criatura sensata quando se trata de salvar a pele. Abala uma nação inteira que quer ver o diabo em sua frente do que o bandeirinha brasileiro que marcou um impedimento dos mais graves e tirou o título de campeão sul-americano dos nossos “hermanos”, em território argentino, favorecendo os arquirrivais uruguaios, no último minuto.

Na trama que prende do princípio ao fim, aqui está, nestas referências de alguns cronistas bons de bola, nossa maior paixão popular. Esses craques das letras brasileiras mostram, em breves passagens, como o futebol é tão íntimo da vida. Se possui seus imprevistos sob os instantes do sol ou da chuva, depende do carinho para sobreviver naquele espaço verde que encanta. Com frequência está a dizer que vencer torna a vida leve. Quando se perde, meu Deus, como machuca.

De qualquer maneira, com sorte ou azar, seu refrão diz que vale como paixão e diversão.

Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista, ensaísta, romancista, organizador de antologia, autor de livros para crianças e jovens. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Tem livro publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e Dinamarca

8.6.18

JOCKEY CLUB BRASILEIRO


Conquanto meu avô fosse criador de cavalos de corrida na Alemanha – até o Hitler decretar que cavalos "judeus" não podiam competir, como narro no meu Passaporte para o Paraíso – em minha já longa vida eu nunca tinha ido a uma corrida de cavalos. Fui pela primeira vez agora, início de junho. O que pouca gente sabe é que antes do Jockey Club existiam no Rio três hipódromos: Derby Club, no local onde se ergueu o Maracanã, Turfe Club uma pouco mais acima, na altura do Morro da Mangueira, e o Hipódromo Nacional entre a Rua Mariz e Barros e Haddock Lobo. Uma placa do antigo Derby foi preservada no atual Jockey como mostra uma das fotos. 

As instalações do Jockey Club Brasileiro, em elegante estilo Luís XVI, nos remetem a uma Europa de outras eras. O pensamento que logo me ocorreu foi como, em zona tão cobiçada pela construção imobiliária, conseguiu-se preservar tamanha área livre, e tão primorosamente cuidada.

Os insiders ficam, ao que observei, perscrutando o folheto dos páreos tentando ganhar alguma bolada nas apostas. Se conseguem ignoro. Eu como outsider ocasionalmente olhava para o tal folheto, só pra tirar uma onda, mas sem entender patavina: exata, dupla, trifeta, supertri, quadrifeta, quinexata, duelo, super betting, pick 7, pra mim era grego. E tem as descrições dos trajes dos jóqueis, cheias de abreviações, tipo: “Az-mar., mgs rosa/az-mar. em xdz. boné rosa”. Os páreos são de meia em meia hora (14:15, 14:45, etc.) e não são nada britânicos, atrasam quinze, vinte minutos. 

A corrida começa lááá no fundo, onde você mal vê, e o alto-falante que anuncia o início mal se ouve. Mas de repente você vê o tropel dos cavalos se aproximando, taran-taran-taran-taran (aquela musiquinha do Guilherme Tell, você conhece) e eles passam tão rápido, e é tão bonita aquela visão dos jóqueis  esguios, quase sem peso, flutuando sobre os cavalos, que você fica querendo mais. Na arquibancada, o pessoal fica torcendo. O dinheiro deles está em jogo!

Entre os páreos fiquei zanzando, espiando os "bastidores", fotografando. O resultado aqui está. Procurei um texto na literatura brasileira para ilustrar esta postagem. Não achei. Se alguém achar, mande. Acabei tendo de escrever estas mal traçadas linhas relatando as impressões de um outsider que nada entende da nobre arte da equitação.


















1.6.18

BECO DAS GARRAFAS EM COPACABANA


O Beco das Garrafas (que também já foi conhecido como Beco das Garrafadas) é uma espécie de vão entre dois prédios na Rua Duvivier, entre a Av. Nossa Senhora de Copacabana e a Atlântica (como você pode ver neste Street View), sem nada de especial, exceto o fato de ter sido o berço da bossa nova:



O apelido Beco das Garrafas ou das Garrafadas deveu-se ao fato de que moradores incomodados pela barulheira lá em baixo lançavam garrafas nos arruaceiros. E não se trata de lenda urbana. Na coluna Madrugada do Diário Carioca de 8/5/57 o colunista Mister Eco já fazia menção a esse fenômeno:

“O delegado Hermes Machado promete tomar providências contra determinado morador da Rua Duvivier, que atira na via pública latas, frascos de vidro, lixo etc., pondo em risco de vida (e de sujeira) os que naquela rua transitam. Por coincidência, na mesma rua está situado o famoso Beco das Garrafas, com o Ma Griffe, o Bacará e o Little Club, que esse nome ganhou pelas garrafas “y otras cositas más”, que os moradores inconformados com a barulheira dos notívagos uisquiados jogam lá de cima.”

Beco das Garrafas visto dos fundos: um beco sem nada de especial, exceto o fato de ter sido o berço da bossa nova. A grade separando as áreas dos dois prédios originalmente não existia.

Aliás, o Correio da Manhã de 6/6/57 faz uma zoação ao guarda noturno do Beco, numa época em que guardas noturnos percorriam as ruas ao menos da Zona Sul vez ou outra soando seus apitos, como eu mesmo me lembro.

Uma das coisas mais engraçadas do mundo é aquele camarada fardado de cáqui, de madrugada, na Rua Duvivier, plantado entre a algazarra que emana do “beco das garrafadas”, dando os seus apitinhos regulares para assustar as moscas. Trata-se de um guarda noturno, de plantão no local mais noturno do Rio, onde três bares, dois botequins, um inferninho e uma sorveteria garantem uma das madrugadas mais povoadas da cidade...

Bottles Bar

Em crônica (pouco conhecida hoje em dia) no Correio da Manhã de 1/8/57 intitulada Fechamento do Rio, o arquipoeta Carlos Drummond de Andrade menciona o beco:

Há em Copacabana um beco das garrafadas, em que estas, ao que me contam, constituem uma arma dos moradores de apartamentos, contra a desordem lá em baixo. Se o grupo faz demasiada zoeira, tome garrafa na cabeça. Já não se usa água fria, como em outros tempos [...]

Shows de bossa nova e assemelhados no Beco das Garrafas

No jornal Última Hora de 29/7/1958 (e também na revista Mundo Ilustrado de 19-25/7/59), o saudoso cronista Stanislaw Ponte Preta (Sergio Porto) escreveu uma crônica intitulada De Beco em Beco Stanislaw Enche a Página onde mencionou o famoso beco:

O Beco das Garrafadas seria um beco honesto se, metido entre os três barezinhos discretos ali instalados (“Ma Griffe”, “Baccarat” e “Little Club”), não existisse um botequim de vender cachaça, onde se reúne um pessoal menos esclarecido pouquinha coisa e que, por isso mesmo, faz arruaça, xinga nome de mãe e entre em festival de bolacha [=bofetada] com muita facilidade. E mal começa o pega, os moradores da localidade, acordados pelo eco, começam a atirar garrafas lá de cima, na esperança de uma fratura do crânio que às vezes acontece, para alegria geral.

De quais dessas janelas teriam sido lançadas garrafas?

Ricardo Amaral, em sua coluna na Última Hora de 15/1/64, faz elogios aos shows do Beco, com uma ressalva:

Uma boa bossa que está funcionando no Rio é o “beco das garrafadas”. Todos os seus barzinhos apresentam bons espetáculos de bossa nova: Nara Leão, Odete Lara com Sérgio Mendes no “Baccará” e Consuelo Leandro com o conjunto Bossa Três no “Little Club”. O primeiro é produzido por Aluízio de Oliveira e os dois últimos pela dupla terrível Mieli-Boscoli. É pena que não contem com recursos de som e luz para aperfeiçoar as apresentações.

Bossa Nova & Companhia no local da antiga boate Baccara

Na segunda metade da década de 1950 e primeira metade da de 1960, nas três boates do beco – Little Club, Bottle’s e La Griffe, depois Baccara – começaram a engatinhar grandes nomes da música brasileiras: Elis Regina, Wilson Simonal (o “Frank Sinatra do Beco das Garrafas”), Eliana Pittman, Trio Tamba, Sérgio Mendes, Nara Leão, Quarteto em Cy. No Little Club foi iniciada a grande inimizade entre Elis Regina e Ronaldo Bôscoli, que o milagre do tempo transformou em grande amor, noivado e casamento. Segundo matéria de O Globo de 6/7/92, “o Beco das Garrafas inaugurou a fase profissional da bossa nova. Na década de 60, artistas – muitos na esperança de “dar uma canja” – intelectuais, políticos e pessoas da sociedade disputavam lugar na plateia para assistir aos shows. O período áureo se estendeu até 1964.”

Vitrine da Bossa Nova & Companhia: partituras, métodos, biografias, histórias, songbooks, CDs, DVDs, LPs, bossa nova, samba, choro. Em agosto de 2018 a loja deixou de funcionar.

Com o fim da era da bossa nova, as três casas noturnas entraram em decadência e durante três décadas (70 a 90) funcionaram como inferninhos de strip tease e “putaria” (tinha até uns reservados escurinhos no fundo para transar), a Little Club passando a se chamar Don Juan e a Bottle’s, New Munich. Até que, com o advento do novo século e o declínio desse tipo de casa noturna, o beco reencontrou sua antiga vocação, sendo hoje talvez o único lugar do Rio onde o morador ou visitante pode ouvir um bom show de bossa nova. 

Placas de ruas na Bossa Nova & Companhia que funcionou de 2006 a 2018

A Baccara, na esquina com a Duvivier, metamorfoseou-se na BOSSA NOVA & CIA, uma loja de partituras, métodos, biografias, histórias, songbooks, CDs, DVDs, LPs, bossa nova, samba, choro, tendo até um museuzinho na parte do alto com curiosidades ligadas à bossa nova. A loja funcionou de 2006 a 2018. Quando passei lá em agosto de 2018, a loja estava sendo oferecida para aluguel. Uma lástima.


Placa na entrada da Bossa Nova & Companhia: "Quando ninguém falava em paz, saúde e ecologia, essa já era a plataforma da Bossa Nova. Hoje, quando esses temas estão na pauta das aspirações nacionais, a Bossa Nova voltou a ser a trilha sonora de um Brasil ideal" (Ruy Castro)