ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

24.4.16

JOAQUIM MANUEL DE MACEDO E "A MORENINHA" (COM FOTOS DE PAQUETÁ)

Artigo A MORENINHA, por ESCRAGNOLLE DORIA, publicado na REVISTA DA SEMANA de 9 de junho de 1928, acessada na HEMEROTECA DIGITAL. Fotos de Paquetá do editor do blog.

Chegada em Paquetá

Louras e morenas não se podem fazer amizades. Representam tipos de beleza opostos e gênios insociáveis. Umas e outras, na sua espécie de formosura, no seu gênero de perdição, se julgam supranumeradas [=privilegiadas] no amor.

Louras e morenas são de louvaminhas [=lisonjas] e, para atendê-las no mister, não faltam homens, e ainda menos poetas.

Chalé Rosa, "Casa da Moreninha", 1812

Por eles têm sido louras e morenas decantadas, a par da lua, nem loura nem morena, sempre branca nas diversas e sempiternas fases, revezada em crescente, em redondeza, em fio, em nova.

Não figuram somente poetas nos partidos que tornam altos os méritos de louras e morenas. Neles também se alistam os romancistas quando dão tipos a heroínas.

Praia das Gaivotas

O tipo moreno é o mais frequente na mulher brasileira, que o torna, não raro, admirável e abismal.

A morena encontrou um romancista que não se contentou em descrevê-la, deu-lhe ao nome as honras de título de romance.

Tal romancista foi Joaquim Manoel de Macedo. Adornou o romance de estreia com o título de “A Moreninha”, diminutivo faceiro e caricioso nosso, quase dengue, em louvor da morena, pondo-a entre risos de criança e lágrimas de mulher. Quando diz esta simples palavra brasileira: a moreninha! Quando...

Bicicletas e a barca ao fundo

Macedo escreveu muito, foi um infatigável, guiando talento por diversas sendas de trabalho. Mas a cabo de vida longa, de afanar [=trabalhar ativamente], era para os da sua geração o Macedinho de “A Moreninha”.

Gravou nome na literatura e no teatro e na pedagogia nacional, leu no Colégio de Pedro II, orou na Câmara dos Deputados, não quis ser ministro, quase foi senador do Império pela província natal. Tudo isso não o impedia de ser para muitos, sempre, o Macedinho de “A Moreninha”.

Relógio da Mesbla e a barca ao fundo

Natural de Itaboraí, reclamando-se [=reivindicando-se] do berço, até na face dos livros, Macedo veio estudar medicina no Rio de Janeiro, de Faculdade médica então no antigo Colégio dos Jesuítas no Castelo.

Seguiu curso de estudos com devida regularidade, doutorando em 1844, às voltas com matérias do sexto ano e a elaboração de tese inaugural.

Sustentou-a a 11 de dezembro de 1844, defendendo curiosa dissertação: “Considerações sobre a nostalgia”.

Escola Municipal Pedro Bruno num casarão neoclássico que abrigou a terceira e última sede da Fazenda de São Roque

No trabalho do acadêmico já apontava o literato, de afirmação no mesmo ano de 1844, vigésimo segundo da Independência e do Império, consoante a fórmula oficial dos decretos da época.

A despedir-se da Faculdade de Medicina, posta no sítio onde os jesuítas tinham doutrinado, insignes sabedores de sempre, Macedo ainda estudante mandou sair de prelos primeiro romance, para muitos pedra angular do romance pátrio.

Banho de mar. As principais praias da ilha, como dos Coqueiros, da Moreninha e José Bonifácio (foto), já não estão mais poluídas, como lemos no boletim do INEA.

De tipografia carioca, com mais de duzentas páginas, estampas e a música de uma balada cantada pela heroína do romance, veio a público “A Moreninha” anunciando o escritor estreante que uma corporação docente ia em breve sagrar doutor.

O êxito do livro foi grande no Rio de Janeiro. Lia-o em breve e ainda não deixou de lê-lo o Brasil, apesar da renovação das escolas literárias, algumas das quais presto aparecem e desaparecem. Como os homens, as obras resistentes ao tempo são vítrices [=vencedoras]. Chi dura vince [o que dura vence] — adverte o provérbio italiano.

Casa onde morou José Bonifácio de 1831 a 1838, hoje residência particular

De segunda edição em 1845, de terceira em 1849, de quarta em 1860, de quinta, em Paris, em 1872, através de editado no Porto em 1845, “A Moreninha” continua a ser editada, propagando até hoje o que alguém chamou “a infantil e virginal feição do nosso romance”.

Sobre ele, na “Minerva Brasiliense”, pronunciou-se Dutra e Mello, em longa análise. Adiantou no correr dela que na época o romance nacional começava a despontar sem haver ainda sido manejado por ninguém, que o soubesse o crítico, o romance histórico ou filosófico.

Pedra dos Namorados

Reconheceu Dutra e Mello, no autor de “A Moreninha”, estilo fino, irônico e singelo, com ordem, luz, graça e ligação, além de outros predicados do escritor novel [=jovem].

A análise de Dutra e Mello figura em edições de “A Moreninha”,  mostrando o apreço do autor pelo crítico. Sabia este reparar sem insultar, exprimir sem deprimir. A crítica é gênero literário que requer apurada educação. Um crítico desprimoroso é labrego [=literalmente camponês, mas usado no sentido pejorativo de ignorante, grosseiro] esgueirado na sociedade, cujas origens é às vezes prudente não perscrutar.

Pedras

Macedo autoprefaciou “A Moreninha”. Antepôs ao romance “Duas Palavras” explicando quanto o livro devia existência a dias de desenfado e folga no pátrio Itaboraí, em férias de quintanista.

Longe do bulício [=agitação] do Rio de Janeiro, já de bulício, afastado da então Corte, quase em ócio, assentou o estudante arquitetar um romance.

Escreveu-o, publicou-o, anunciando que conforme o acolhimento da crítica iria criando e educando melhor “os irmãozinhos da Moreninha”, mais tarde com efeito apresentados a patrícios sob a forma de livros.

Triciclo

“Recebe filha com gratidão — aconselhava o autor à heroína — a crítica do homem instruído; não chores se com a unha marcarem o lugar em que tiveres mais notável.”

Escrevendo “A Moreninha” esquecia o doutorando Macedo os livros de medicina, entre eles os de Velpeau, que “só ele faz por sua conta e risco mais citações em cada página do que todos os meirinhos juntos fizeram, fazem e hão de fazer pelo mundo.”

Ilha de Brocoió

Macedo ideou “A Moreninha” em Itaboraí. Aí nascera no dia de S. João, em casa de uma rua do nome do santo. Filho de farmacêutico, boticário dizia-se então, o futuro médico estudara primeiras letras e depois latim, o latim tão assimilável mas tão indigesto para os estudantes de hoje, na vila natal.

Ao que parece, “A Moreninha” brotou de duas fontes eternas: a mocidade e o amor.

Tinha Macedo vinte anos quando compôs o romance. Vinte anos! Idade em que o amor é caminho antes atinado que sabido!

Charrete

Amava, segundo informam, não sem lágrimas, e o chorar é consequência do amar. Desejava casar-se com a amada, mas só realizou o intento anos depois, por oposições e contratempos.

O consórcio foi auspicioso, pois até a morte, não há muito, em Niterói, a esposa de Macedo afirmava a Ernesto Senna, denunciando orgulho por ter sido a inspiradora de “A Moreninha”: “Oh! Ele me queria muito, sinceramente. Raras vezes saía à rua sem ser em minha companhia. Fui feliz, muito feliz.” E algumas lágrimas lentas sagraram a saudade longa.

Igreja de São Roque

A cônjuge de Macedo tinha razão de chorá-lo. Fora-lhe constante e desinteressado. Com efeito, em 1884, o surpreendera em Itaboraí um convite para ministro de Estrangeiros do gabinete Furtado.

Declinou da honra e deu razão da recusa. Era pobre, não podia portanto sustentar a posição... Não comparemos, as reticências já compararam.

Homenagem do Grupo Seresteiro de Paquetá à música "NORMALISTA"

A ação de “A Moreninha” passa-se na ilha de Paquetá, onde em 1844 se ia de batelão. Grande parte do romance vive numa casa paquetaense, no centro da ilha, onde a par dos coqueiros se avistavam belos arvoredos vergando de frutas ou em flores promissoras deles.

Naquela casa, real ou imaginária, porque os episódios mais célebres dos romances são não raro justaposições de saudades, assinalou o autor uma gruta. Era cavada na base de rochedo sobranceiro ao mar, dava-lhe acesso abertura alta e longa. No fundo, numa baciazita de pedra, gota a gota, de cristal e frescura, caía água destilada do alto do rochedo.

Serra do Mar vista da Praia do Catimbau. Dizem que o pôr-do-sol lá é lindo. A conferir.

Fora ele traspassado pelas lágrimas de uma índia, Ahy, ao amar sem correspondência. Aquele que a desprezava, o índio Avitin, vinha descansar na gruta. Adormecia, de volta da caça, e as lágrimas de Ahy, do cimo do rochedo, o banhavam. Caiu-lhe uma delas no coração, abrasando-o de amor partilhado.

Qual Ahy, no romance, a Moreninha de Macedo vinha cantar uma balada:

Pedras

“Eu tenho quinze anos
 E sou morena e linda;
 Mas amo, e não me amam
 E tenho amor ainda.”

Carolina tem o mesmo fado de Ahy. Desposa-a por fim Augusto, o herói do romance, que apostara  escrevê-lo se durante uma quinzena ou mais houvesse amado uma só mulher.

Casa rosa

A memória de Macedo ficou em Paquetá, onde o nome da sua Moreninha ainda tem renovado eco. Bem conhecido é dos moradores e dos visitantes da ilha um rochedo aí tratado por pedra e casa da Moreninha, em lembrança do livro célebre na sua época e do autor célebre depois dela.

Ambos representam um tempo em que a leitura amena, e não raro em voz alta e em comum, deliciava a família.

O velho e o mar

No conceito de Franklin Távora, escritor brasileiro e trabalhador injustamente esquecido, “em A Moreninha o estudante, a donzela, a matrona viram a sua imagem reproduzida no puro aço desse espelho onde há luz sem cintilações estrangeiras”.

Por isso teve a obra de 1844 aclamação unânime. “O Brasil inteiro leu o livro e teve para ele a consagração que merecia tão espontânea revelação do gênio nacional”, assinalou Távora.

À Moreninha disputou popularidade “O Moço Louro”, da mesma pena de Macedo. Triunfou a primeira; e o segundo, como era homem, sorriu à vitória.


Barca que me trouxe de volta para o Rio

8.4.16

VISITA AO PALÁCIO LARANJEIRAS

Ontem tivemos a oportunidade de participar de um grupo organizado pelo historiador Nireu Cavalcanti que visitou as obras de restauração do Palácio Laranjeiras realizadas pela empresa CONCREJATO, com verbas arrecadadas de empresas através das leis de incentivo à cultura. Os trabalhos devem estar concluídos para as Olimpíadas e depois disso existem planos de abrir o Palácio à visitação nos fins de semana. O Palácio Laranjeiras foi construído de 1909 a 1914 para o jovem empresário Eduardo Guinle, com base em projeto do arquiteto Armando da Silva Telles, que já havia projetado a casa do pai de Eduardo em Botafogo — ambos os imóveis inspirados nas villas mediterrâneas, como informam Beatriz Coelho Silva e Christine Ajuz em Palácio Laranjeiras. Conquanto as fontes citem como coprojetista o francês Joseph Gire, trata-se de um "mito", já que este estava na Argentina nessa época, onde desenvolveu vários projetos arquitetônicos importantes, e só chegaria ao Rio de Janeiro em 1 de outubro de 1918, como consta da coluna "Vida Social" (subtítulo "Viajantes") à pág. 6 do jornal O Paiz daquele dia, que você pode consultar na Hemeroteca Digital. Além disso, as plantas do palácio, guardadas no Arquivo Geral da Cidade, uma das quais reproduzimos abaixo, são assinadas tão-somente pelo arquiteto Silva Telles.

O Palácio divide-se em três corpos, cada um deles destinado a uma função diferente: o corpo central abriga a parte social ou de cerimônia e, das duas alas, uma abriga a parte residencial e a outra, a parte de serviço, como lemos na página do site Patrimônio belga do Brasil dedicada ao palácio (que você pode acessar aqui; o patrimônio belga no caso é o parquet que forma o piso de cinco aposentos. O simpático Barbosa, veterano funcionário que dedicou a vida ao Palácio, contou-nos saborosas histórias sobre as autoridades moradoras do majestoso bem tombado. Lá foi assinado o famigerado AI-5, Costa e Silva morreu e teve seu corpo velado, o então chefe do SNI João Baptista de Figueiredo teve seu escritório e Geisel teve seu corpo velado.

Planta do Palácio Laranjeiras assinada por Armando da Silva Telles fornecida por Nireu Cavalcanti

À primeira vista parece um palácio francês, mas a vegetação em volta mostra que estamos em terras tropicais. Vemos aqui a fachada principal do Palácio Laranjeiras (se vocês olharem uma foto do Cassino de Monte Carlo, notarão certa semelhança)

Palácio Laranjeiras: Três corpos de construção, corpo central (atrás) abrigando a parte social e de cerimônia e as duas alas dos fundos (nesta foto, na frente), uma residencial e a outra de serviço

Palácio Laranjeiras: Fachada lateral principal, voltada para o parque

Detalhe da fachada lateral

Leão no pórtico da fachada lateral que dá para o parque

Fachada lateral que dá para os fundos do parque

Vista da varanda da fachada lateral principal

Piso de mosaico

Azulejos num dos aposentos. Fotos do editor do blog.

1.4.16

DESMONTE DO MORRO DO CASTELO


Fundada na Urca em 1565, com a derrota dos invasores franceses a cidade se transferiu, em 1567, para a posição elevada do Morro do Castelo, onde foi construída a Fortaleza de São Sebastião, a Igreja de São Sebastião (que viria a ser a primeira catedral da cidade), a igreja e colégio dos jesuítas e vários prédios públicos.

Na década de 1920 o desmonte do Morro do Castelo  (mostrado aqui em fotos de Augusto Malta obtidas na Biblioteca Nacional Digital) — na época visto como um progresso monumental, mas que hoje, do ponto de vista da preservação de nossa memória, se afigura um absurdo — ampliou as fronteiras do Centro, abrindo uma nova área de ocupação (a Esplanada do Castelo) e fornecendo pedras para novos aterramentos do mar.


Não foi a primeira vez em que se arrasou um morro. Na virada do século XIX para o XX, com o desmonte do Morro do Senado, onde hoje fica a Praça Cruz Vermelha, aterrou-se a orla da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, para a construção do Cais do Porto, e um trecho da orla da Glória para a abertura da Avenida Beira-Mar. Já o desmonte do Morro do Castelo permitiu aterrar o trecho do mar onde em 1936 surgiu o Aeroporto Santos Dumont e a enseada da Glória, onde em 1926 surgiu a Praça Paris.

A ideia do arrasamento do Morro da Castelo era antiga, justificada pela teoria dos miasmas, segundo a qual as doenças seriam causadas pela pestilência do ar. Dentro dessa linha de pensamento, o Morro do Castelo estaria bloqueando a circulação do ar e, por conseguinte, impedindo a dissipação dos miasmas. De fato, escreve Vivaldo Coaracy nas Memórias da cidade do Rio de Janeiro (no verbete Castelo (Morro) do Rol de Ruas: “O arrasamento do morro vinha sendo preconizado desde o começo do século XIX como necessário ao saneamento da cidade.” Os terríveis desmoronamentos em suas encostas causados pelas chuvas em 1811 reforçaram ainda mais a ideia. Em sua obra de 1862 Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, escreve Joaquim Manuel de Macedo:

O receio de novos e mais terríveis desmoronamentos, e o empenho de dar mais beleza à cidade e de libertá-la de uma colossal muralha que não a deixa ser francamente banhada pelos ventos do mar têm feito com que por vezes se haja projetado e tratado de organizar empresas destinadas a demolir o morro do Castelo.


Em suas Preleções de Gramática, publicadas na Semana Ilustrada, escreve Machado de Assis (em exemplo do uso do ablativo): “Desde que o Brasil é Brasil fala-se em desmoronar a montanha do Castelo.

Mas o arrasamento do Morro do Castelo não transcorreu sem polêmica. Em O Malho de 14 de agosto de 1920 vemos uma charge intitulada “O Castelo em Perigo”, cuja legenda diz “Contra a força do progresso, não há resistência possível, embora se juntem as ‘mãos negras’ do carrancismo (=reacionarismo)”, bem como uma matéria sobre os partidários e críticos do arrasamento, “Os Idólatras  do Castelo”.






Mas a tendência predominante era a favor do desmonte. Assim, lemos em artigo intitulado “Castelos de Cartas...” em O Malho de 11 de setembro de 1920:

A opinião pública faz tanto caso do morro do Castelo como da primeira camisa que... não vestiu. Os habitantes do Rio de Janeiro não podem deixar de aplaudir uma obra colossal que já era uma aspiração no tempo do império e já fazia parte de um grandioso plano de melhoramentos [...] é uma obra meritória para o interesse geral, nos benefícios que traz à comunidade, pela melhor ventilação da “fornalha” e pela conquista de uma área preciosa, admiravelmente localizada para o desenvolvimento comercial da cidade.



No recém-lançado Rio Belle Époque: Álbum de imagens, Alexei Bueno, que já foi diretor do INEPAC, desfia (na narração dos fatos ocorridos em 1921-25) uma longa diatribe contra o bárbaro arrasamento do Morro do Castelo:


Na década de 1920, o epicentro do vandalismo nacional — que por todo esse período nunca deixou de ser exercido na capital paulista — retorna para o Rio de Janeiro. E sob o pretexto dessa exposição comemorativa do Centenário da Independência, em 1922, que finalmente se dá início ao criminoso arrasamento do morro do Castelo, propugnado por modernosos de vário calibre desde havia mais de um século. A administração Passos já arrasara anteriormente o morro do Senado, sem nenhuma importância histórica, onde hoje se situa a praça da Cruz Vermelha, assim como a década de 1950 assistirá ao arrasamento do morro de Santo Antonio, porém poupando a única construção notável nele situada, o convento de Santo Antonio, bem como preservando uma pequena falda do morro onde vinha dar, partindo de Santa Teresa, o Aqueduto da Carioca. O que é notável na destruição do morro do Castelo é o fato de ela, além de incrivelmente tardia, não se limitar a um monumento, mas a um conjunto inapreciável deles, exatamente onde nascera a cidade. Não se trata da destruição do edifício primacial de uma metrópole, como no caso do Colégio de São Paulo, mas do próprio acidente natural onde se dera a verdadeira fundação. Toda uma acrópole quinhentista portuguesa, com duas igrejas e um forte do século XVI — em outras palavras, a Sé velha do Rio de Janeiro, a igreja e o convento dos jesuítas, o “castelo”, ou fortaleza que dera nome ao morro — sem contar as majestosas ruínas da inacabada igreja Nova dos Jesuítas e muito mais coisas, veio abaixo a força de jatos d'água, sem o menor cuidado nem na salvação de algumas cantarias do maior valor, resultando numa das séries de fotografias mais impressionantes do século XX no capítulo da barbárie histórico-arquitetônica. Protagonizado, como já afirmamos, pelo então prefeito da Capital Federal e pelo presidente da República — tudo envolto em imenso gasto de dinheiro publico e suspeitas de corrupção, como sempre —, tal atentado à mais ínfima sensibilidade histórica foi apoiado com denodo por muitos periódicos e mentes “progressistas”, e duramente criticado por indivíduos de bom senso, como Lima Barreto e Monteiro Lobato.
 

Mal comparando, seria como se a municipalidade de Atenas resolvesse arrasar a Acrópole para aumentar a ventilação da cidade e criar um bairro novo. A falta de qualquer preocupação maior no salvamento do que fosse possível transpira das fotografias, em que podemos ver solidíssimos edifícios, como a igreja dos Jesuítas e o antigo convento, com seus poderosos contrafortes, inclinarem-se à beira do abismo, ainda com as bandeiras das janelas, como se fossem casas de bonecas ou brinquedos. Se até hoje o Rio de Janeiro se ressente de não ter nenhum monumento inscrito na conhecida lista de Patrimônios da Humanidade da Unesco — coisa bem diversa é a categoria quase impalpável de paisagem cultural — deve-o a esse fato lamentável, pois, sem qualquer dúvida, lá estaria o conjunto arquitetônico e urbanístico do morro do Castelo, ao lado, por exemplo — sob o aspecto do parentesco histórico, no caso a expansão colonial lusitana — daquele da ilha de Moçambique, que lá se encontra devidamente arrolada.
  
O morro, berço da cidade, foi arrasado como se de um lixo se tratasse. Nem um mínimo levantamento arquitetônico, nem um perfunctório levantamento topográfico, nada foi feito. Elementos perfeitamente passíveis de salvamento e remontagem, como o portão da fortaleza e a portada da igreja dos Jesuítas, foram deixados onde estavam, para descer morro abaixo sob a força dos jatos d'água. Os ossos de todos os fundadores do Rio de Janeiro, heroicos companheiros de Estácio de Sa, e os dos primeiros povoadores, que se encontravam todos, evidentemente, sepultados na Sé Velha ou na igreja dos Jesuítas, desceram junto com a lama, como numa retrete a que se dá descarga, num ato de desrespeito aos antepassados que nenhuma tribo de cultura paleolítica ousaria cometer.
  

Nesse ato, de uma insensibilidade histórica digna do famigerado Estado Islâmico, havia, além dos interesses financeiros inconfessáveis, uma má disfarçada implicância vingativa com o colonizador do país, como se, no ano do Centenário da Independência e de sua respectiva exposição, o arrasamento do primeiro local em que se estabeleceu esse mesmo colonizador servisse como uma espécie de ato propiciatório. Comprova-se isso pelos elogios que sempre teceu à destruição do berço da cidade Orestes Barbosa, desde a sua obra acima citada, de 1925, até a sua morte, coisa bem de acordo com o jacobinismo primário e a grande limitação cultural do notável letrista. 
Para ler um artigo de Alexsandro R. Menez sobre a destruição do Morro do Castelo clique aqui. Para ler um excelente ensaio de Alexei Bueno sobre a destruição do patrimônio histórico nas cidades brasileiras clique aqui.