ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

10.12.19

SÃO PAULO, crônica de CYRO DE MATTOS


(Para Samuel Penido - em memória)

O Brasil é uma nação com várias nações dentro de seu território de dimensões continentais. Encontramos em São Paulo todas essas nações brasileiras com pessoas vindas dos lugares mais distantes do País. Nessa cidade com uma superpopulação sempre crescente ouvimos, diariamente, vozes estranhas, costumes vindos de povos que possuem tradições das mais singulares.

costumes vindos de povos que possuem tradições das mais singulares


O homem do interior que pisa pela primeira vez nessa aldeia global fica como peixe fora d’água. Impressiona-se com a paisagem feita de cimento e aço, de grandes edifícios, que buscam as nuvens mais altas. No asfalto, pneus cantam, o homem passa anônimo e veloz nessa forja gigantesca que nunca descansa.

Corre no tempo que nessa cidade trabalho e dinheiro andam de mãos dadas. O homem aqui tem que ganhar dinheiro com unhas e dentes numa maratona suicida. O coração financeiro da cidade é a Avenida Paulista com o seu modo intenso de estipular o mundo.

de grandes edifícios, que buscam as nuvens mais altas

Riqueza e pobreza são vizinhas em São Paulo. Ao céu aberto e nas galerias, elas estão juntas, vivem em seu ritmo tumultuado. Soltam fumaça nas fábricas com suas inúmeras chaminés, que tornam o sol pálido, as nuvens cinzentas e o ar que tosse constante. Prenhe de detritos, o Tietê percorre a cidade na descida triste inventada por bocas de vômito. Um rio com sua mágoa desce no curso viscoso, pulmões quase sem ar nas águas escuras, como a dizer SOS São Paulo antes tarde do que nunca.

 fábricas com suas inúmeras chaminés

Falam que o ser humano em São Paulo está prisioneiro num tempo de bruma. Diluído na multidão. É um partir que não chega, um caminhar sem parar. Hospitais, escolas, igrejas, fichários, descargas de fumaça, lá se vai o fiel habitante sem bagagem e com suas armas que comovem. Nas esquinas, bares, restaurantes, danceterias, madrugadas. Nos motéis com fumos, com cio, álcool, drogas. Colmeia gigantesca, aqui o homem tem a língua presa na sua ânsia de falar com solidariedade e doçura. Esse homem sem nome na selva de pedra. No shopping center, no subsolo, na Avenida São João, no estádio, no metrô, no supermercado, na fábrica, no elevador. O homem e seus dentes de fera naquele velho aprendizado de ter uma vida com sobras. Nessa cidade onde o povo é fluxo e refluxo em torno de si mesmo, tão luta.

O homem tão do mundo, vivendo o seu medo na cidade enevoada.

dentes de fera

Você acha um lugar ao sol na praça, onde os pombos fazem uma bela aparição. Igual à Cinelândia, no Rio de Janeiro. Os pombos fazem uma bela formação, baralham em festa tormentas, suavizando o animal insano, o desarmado pedestre, o audaz andarilho diário em seu estado de graça.


  • Cyro de Mattos é autor de mais de 50 livros, de diversos gêneros. Também editado no exterior, Do Pen Clube do Brasil e Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Fotos tiradas em São Paulo pelo editor do blog.

o animal insano

1.12.19

LIQUIDAÇÃO PARA ENTREGA DO PRÉDIO, crônica de OSVALDO MOLES

PUBLICADA ORIGINALMENTE NO DIÁRIO DA NOITE PAULISTANO DE 23 DE AGOSTO DE 1949


Enquanto os grandes cronistas literários da imprensa carioca têm sua memória preservada e suas obras reeditadas, o grande cronista paulistano pós-Alcântara Machado, Osvaldo Moles, praticamente caiu no esquecimento – sequer nome de rua virou. Eu mesmo só vim a descobri-lo ao ler a ótima biografia do Adoniram Barbosa escrita por Celso de Campos Jr. Além de cronista exímio, Osvaldo foi um colosso do rádio, em sua época de ouro, em que desempenhava o papel – informar, divertir, distrair – mais tarde assumido pela televisão. Osvaldo escrevia de tudo, esquetes humorísticos, programas culturais, e foi graças aos seus textos que Adoniram viveu uma grande fase como “ator” radiofônico antes de se celebrizar por seus sambas paulistanos "em linguajar popular" nos anos 1950. 

Alberto Helena Jr., em seu prefácio à biografia de Adoniran Barbosa escrita por Celso de Campos Jr., assim descreve Osvaldo Moles: “ [...] um homem da renascença moderna, com traços de enciclopedista – pioneiro da publicidade eletrônica, radialista, poeta, roteirista de cinema e cronista maior da cidade, legítimo herdeiro de Mário de Andrade, Alcântara Machado e Juó Bananere.

Aqui está uma crônica do Osvaldo publicada originalmente no Diário de Noite paulistano de 23/8/1949.

Olhar vitrinas pachorrentamente, domingueiramente, é bem um interesse, um divertimento de senhoras pobres que esperam a visita da cegonha, a única visita que pobre recebe com bolacha de água e sal. Mas, como dizíamos, espiar vitrinas, sonhar diante dos preços reduzidos pela época, é o tipo do cinema de gente sem dinheiro. Várias coisas constituem o cinema de pobre: – o bonde que passa cheio de pernas, o desenlace do trabalho nas fábricas e as vitrinas da cidade, aos domingos à noitinha.

A Rua Direita, por exemplo, já entendeu que a gente que vai lá aos domingos não é essa gente que as agências de publicidade chamam de “classe B” e de poder aquisitivo médio. Portanto, os comerciantes da Rua Direita fecham cedo suas vitrinas aos domingos, dando margem a mais um ditado das populações que invadem a rua nas noites de domingo:

– Nego num oia vitrina. Mastiga a escuridão.

Mas as da Rua Barão de Itapetininga estão abertas aos domingos à noite. E é para lá que correm os “marcianos”. Marciano é essa gente que quase nunca anda no centro da cidade e que só desce de Marte, o bairro distante, nos dias de exceção. É por isso que agora que o comércio anda apertado, nunca tanta gente olhou vitrina com tanta cobiça no olhar. Começaram a descer os preços, a cidade anda repleta de liquidações. E aqueles risquinhos que cortam os preços altos têm mais fascinação para as donas de casa do que toda a fantasia de Goethe.

É por isso que o velho Montesquieu acreditava na honestidade das massas. Não porque estas sejam cândidas, mas porque só o homem do povo tem o dom de acreditar e de fazer, com sua fé, um movimento que abale o mundo. Ainda se acredita nas liquidações, como ainda se acredita no jogo do bicho. E é essa crença da mulher gorda que leva o marido, a filharada, os cunhados, a família inteira ao centro da cidade, para devanear diante das vitrinas abarrotados de artigos liquidados “a qualquer custo, para reforma do prédio”.

Por sua vez, os comerciantes acham que a coisa vai mal... muito mal! Vai muito mal porque agora não é mais o tempo em que eles podiam ganhar mil por cento. Hoje em dia estão quase na miséria os comerciantes. Só conseguem arrancar um lucro de novecentos e cinquenta por cento.