Nos últimos tempos virou moda celebrar a "negritude" do escritor-mor brasileiro. Assim, o crítico literário norte-americano Harold Bloom considera-o "the supreme black literary artist to date". Até membros da Academia Brasileira de Letras, com denso estofo cultural, escrevem asneiras como "Machado era mestiço, filho de um pardo forro e de mãe negra" (Arnaldo Niskier na Revista Brasileira de abril-maio-junho de 2008, pág. 13) e " [...] filho de Francisco José, um operário mulato pintor de paredes, e de Maria Leopoldina, uma lavadeira negra e neta de escravos" (Murilo Melo Filho, idem, pág. 26). Assim, a fim de esclarecer esta questão, reproduzo aqui o verbete "MULATO" do DICIONÁRIO DE MACHADO DE ASSIS de UBIRATAN MACHADO (cuja segunda edição foi lançada recentemente pela Imprensa Oficial paulista), QUE ABORDA A QUESTÃO COM OBJETIVIDADE, HONESTIDADE E EQUILÍBRIO. Em seguida reproduzo um trecho de um artigo do historiador Nireu Cavalcanti sobre a ascendência de Machado de Assis. Finalmente, para aqueles que acusam Machado de ter sido insensível à causa da Abolição, algumas provas de que ele foi contra a escravidão.
Imagens de Machado obtidas na Biblioteca Nacional Digital (exceto a última, do catálogo da exposição Machado Vive). Aos machadianos recomendo a aquisição do dicionário do Ubiratan, não é barato mas vale o investimento.
Machado de Assis em desenho de M.J. Garnier |
Machado de Assis em gravura de 1880 |
Machado de Assis e Joaquim Nabuco em foto de Augusto Malta de 1906 |
Machado de Assis (esquerda) e grupo em foto de Augusto Malta de 1906 |
1) Verbete "MULATO" do DICIONÁRIO DE MACHADO DE ASSIS de UBIRATAN MACHADO:
Há muita especulação a respeito de como Machado encarava o fato de ser mulato. Alguns estudiosos insinuam que ele se ressentia de sua cor, numa sociedade dominada por brancos. Simples hipótese. Nenhuma prova, nenhum registro contemporâneo. Há depoimentos, contraditórios, prestados após a sua morte, por pessoas que com ele conviveram. Em certa ocasião, teria dito a Condessa de São Mamede que a mulatice era para ele “um simples acidente”. Francisca de Basto Cordeiro, sua vizinha e amiga por longos anos, garante que “jamais conseguiu dominar o complexo de inferioridade que lhe amargurou a existência a ponto de evitar em todas as suas obras a palavra ‘mulato’ e, se acaso a ouvia em conversas entartarugava-se todo, franziu o sobrolho como se nela houvesse uma indireta com o fito de magoá-lo e, por mais interessante que fosse a conversa, dava o assunto por encerrado”. Esse depoimento deve ser encarado com extrema cautela, pois a depoente encontrava-se em idade avançada e, em vários trechos, conta um fato para logo adiante afirmar o contrário. A obra machadiana também o desmente. Assim, em “A parasita azul”, conto da mocidade, quando se é mais sensível à crítica alheia, empregou a palavra, sem revelar qualquer ressentimento, mas com simpatia: “Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante, que olhava para ele com curiosidade”. Há trechos semelhantes em outras obras.
Isso não significa que não tenha sentido na pele a discriminação racial. Teve de enfrentar o problema pelo menos em uma ocasião, durante o seu noivado, quando encontrou oposição de alguns parentes de Carolina, por ser mulato. Socialmente, impôs-se sem demonstrar qualquer ressentimento racial, e nunca evitou, também, como os mulatos arrivistas, entre brancos, a amizade com pessoas de sua cor, como provam os inúmeros negros e mulatos de suas relações: Paula Brito, Teixeira e Souza, Ferreira de Menezes, Francisco Otaviano. No entanto, havia receio de feri-lo, chamando-o de mulato. Um homem da inteligência de Joaquim Nabuco, abordando a psicologia do amigo, considerou que jamais “teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese” (carta a José Veríssimo, datada de Washington, 25 de novembro de 1908). Evidente que sim, pois indicaria uma clara discriminação ou desejo de ferir. De qualquer maneira, se teve ressentimentos raciais, soube com eles conviver e dificilmente o problema assumiria nele, como em Lima Barreto, um aspecto trágico.
Machado detestava a autopiedade. Inclusive a autopiedade racial. Procurou ajustar-se e se embranquecer através da ascensão social, o que irritou alguns contemporâneos. O professor Hemetério José dos Santos, em seu famoso artigo publicado após a morte de Machado, diz que ele foi um trânsfuga e um traidor de sua raça. Essa opinião teve, e ainda tem, seguidores. Os que consideram que superou os conflitos íntimos decorrentes da mestiçagem lembram a carta que Gonçalves Crespo lhe enviou, datada de 1871, na qual o poeta das Miniaturas escreve que já o conhecia de nome havia algum tempo: “De nome e por uma secreta simpatia que se me levou quando disseram que era... de cor como eu. Será?”. O fato de conservar a carta seria uma prova de superação do problema. A atenuação simbólica da mestiçagem de Machado, e até o seu desaparecimento, por uma espécie de mágica social, encontra um advogado em Joaquim Nabuco, que, na carta acima mencionada, diz considerá-lo “um grego da melhor época”, “um branco, e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica”. Esse processo de embranquecimento culminou com a sua certidão de óbito, onde consta que o falecido era de cor branca. Uma fantasia semelhante à tese de uma corrente atual de que o escritor era negro e determinada foto sua teria sido forjada, como vemos adiante. Machado não era negro. Nem branco. Mas mulato, mestiço, resultado da intensa miscigenação racial brasileira, como demonstra sua ascendência. O pai, Francisco José de Assis, era “pardo forro” (isto é, mulato livre), como consta de sua certidão de batismo, realizado em 11 de outubro de 1806. A mãe, Maria Leopoldina, nasceu na Ilha de São Miguel, nos Açores. Branca pura. O filho do casal era, pois, mestiço.
Os testemunhos da época são abundantes e unânimes ao falar de sua mulatice. Nenhum deles lhe atribui a cor branca ou negra. Um dos depoimentos mais importantes é o de um seu inimigo e detrator implacável, o verrineiro Apulco de Castro. Como Machado, era pardo, mais bem mais escuro. Jornalista venal, atacou o colega por diversas vezes. Pois bem, esse sujeito hostil, ao retratar o escritor de forma satírica na série “Retratos a Carvão”, no jornal de escândalos O Corsário, informa com muita clareza a cor de sua pele: “Espiègle [travesso], macambúzio, preocupado, um Hamlet em brochura... porém moreno. Um talento modesto. Dorme no Clube Beethoven”. Moreno, isto é, uma forma brasileira de dizer mulato. Não poderia haver esclarecimento mais imparcial sobre a cor de Machado, exatamente por vir de um inimigo violento, sem qualquer escrúpulo, e pardo. Entre os vários outros testemunhos, podemos lembrar o de Olavo Bilac, que conviveu com Machado por mais de vinte anos e ao retratá-lo nos informa ser ele um homem de altura regular, de 68 anos, mais ou menos. Moreno”. Há inúmeros outros depoimentos de contemporâneos, de José Veríssimo (“mulato, foi de fato um grego da melhor época”), de Joaquim Nabuco, de Francisca de Basto Cordeiro, do negro Hemetério José dos Santos. Apesar de tudo, a citada corrente proclama que uma das fotos mais divulgadas de Machado, tirada na década de 1890, teria sido forjada, embranquecendo a tez negra do escritor. A tal foto utilizou filme fotográfico, inventado poucos anos antes, cuja baixa sensibilidade exigia exposição demorada à luz. O que explica pessoas e paisagens saírem mais claras (e, quando mais claras, mais indistintas, sem contraste, lavadas, como se diz), mas sem chegar à mágica de mudar a cor de ninguém. Não é o caso da foto em questão, perfeita, de alta qualidade, sem sombra de manipulação. As várias outras fotos de Machado, sozinho ou em grupo, são o melhor desmentido a tal tese. Nos retratos coletivos, o criador de Capitu aparece ao lado de várias personalidades, sendo sua pele levemente mais escura do que a dos brancos que o cercam. É o que se pode comprovar nas fotos com Joaquim Nabuco (foto acima), Pereira Passos etc., numa reunião da Panelinha em que se encontra entre João Ribeiro e Lúcio de Mendonça, e em outra fixada em 1906, no almoço oferecido ao presidente da Venezuela Uribes y Uribes (foto acima). Será que os fotógrafos, durante mais de meio século (a primeira foto conhecida de Machado é de 1864), conspirando entre si e apesar de não haver tecnologia disponível para tal, fizeram o milagre de embranquecer a figura de Machado, sem tocar nos demais do grupo? Como explicar tal fenômeno?
2) Trecho do artigo "Machado de Assis: militante pela Abolição dos Escravos" do historiador Nireu Cavalcanti:
Como é consagrada pela historiografia, Machado de Assis era filho de Francisco José de Assis, pardo, e da açoriana [branca] Maria Leopoldina Machado de Assis e nasceu em 21 de junho de 1839. Sua mãe faleceu em 18 de janeiro de 1849, quando ele tinha dez anos de idade. Portanto, já deveria ter sido alfabetizado, considerando que seus pais residiam na chácara do Livramento, pertencente aos seus padrinhos, brigadeiro Bento Barroso Pereira e dona Maria José de Souza Silveira. Os padrinhos não providenciaram a educação de Machado de Assis?
Eram os avós paternos Francisco José de Assis, pardo forro (ex-escravo), filho da escrava Benedita Maria da Piedade, de dona Maria Thereza dos Santos. Casado com Inácia Maria Rosa, parda forra, filha natural da preta Rosa, escrava do padre José Pereira dos Santos. Alguns biógrafos da família levantam a hipótese de ser o pai de Inácia o referido padre.
Falecida a sua mãe, o pai casou-se após cinco anos de viuvez, em 17 de junho de 1854, com a parda (não era negra) Maria Ignez da Silva, que adotou o sobrenome Assis, no lugar de Silva. Foi batizada em 1o de janeiro de 1824 e nascida em 13 de dezembro de 1823. Seus pais eram pardos livres de nomes Felippe Gomes da Silva (faleceu em Niterói em 13 de janeiro de 1865) e Jesuina Joaquina de Sant’Anna.
Portanto, Machado de Assis já era um jovem de quinze anos, quando seu pai se casou com Maria Ignez de Assis.
3) Provas de que Machado não ficou passivo ante a escravidão:
Machado de Assis estreia sua nova coluna, "Bons Dias!", no jornal Gazeta de Notícias em 5 de abril de 1888, quanto a questão da abolição da escravidão se aproxima do desenlace, que foi a Lei Áurea. Embora "sem os arroubos românticos dos abolicionistas ortodoxos", Machado de Assis, em seu cargo no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, atuou discretamente em prol dos escravizados, como demonstra o artigo "Manifestação honrosa" de O Paiz de 18 de maio de 1888 (pág. 3), que dizː "No silêncio do gabinete, José Julio, Amarilio de Vasconcellos, Machado de Assis, Pinto Serqueira, Paula Barros e ainda outros, dedicavam-se durante anos a velar com solicitude na defesa dos direitos do escravo, a tirar das leis de liberdade todos os seus naturais corolários, a organizar e a tornar efetiva a emancipação gradual pela ação do Estado [...]".
Outra prova do empenho de Machado pela causa abolicionista foi o fato de ter sido um dos agraciados com a medalha comemorativa da Lei Áurea concedida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1889.
Ainda outra prova do espírito abolicionista de Machado é seu texto de 24/5/1883 para o jornal A Terra da Redenção, comemorativo da libertação dos escravos no Cearáː
As crônicas machadianas em torno da data da Lei Áurea, longe da euforia que tomou conta de tantos, conservam o espírito irônico, galhofeiro, sarcástico que caracterizava o autor, em especial em sua fase de maturidade. Machado pode em seus textos dar a impressão de distanciamento, de que não se "emocionou" com a libertação dos cativos, mas os fatos imediatamente subsequentes desmentem essa impressãoː sua participação no préstito comemorativo da assinatura da Lei Áurea e sua presença (comprovada por uma fotografia) na missa de ação de graças pela Lei Áurea no Campo de São Cristóvão lotado, em 17 de maio de 1888. (do verbete "Bons Dias!" da Wikipédia, criado por mim)
Machado de Assis aos 57 anos |
Machado de Assis aos 25 anos |
Outra do Machado, extremamente nítida, aos 25 anos, pelo fotógrafo Pacheco da Casa Imperial |