ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

20.2.06

A RAINHA DA HORA

MARIZA DE ALMEIDA REBOUÇAS


O clássico da literatura de temática carnavalesca no Brasil é A morte da porta-estandarte, de Aníbal Machado, de 1965. O melhor texto literário sobre Carnaval surgido desde então, na minha opinião, foi A rainha da hora, da escritora Mariza de Almeida Rebouças. Confiram e digam se concordam:

Mesmo achando um certo abuso de confiança, remexi a gaveta do doutor, abri o envelope e li o resultado do exame: neoplasia. O medo chegou me esfriando primeiro o peito, foi-se espalhando por onde pôde, quando chegou lá na alma, pronto, estava instalado. Quis correr, não pude sair do lugar, nem havia pra onde, pois onde eu fosse ia meu seio comigo, e o lembrete da morte entranhado num cantinho dele. Tinha tanta certeza de que a mamografia não ia dar em nada, mal completei vinte anos, nunca fiquei doente na vida. Só essa convicção me fez abrir o envelope no fim do expediente, numa sexta-feira, véspera de carnaval. Como é que eu ia saber, afinal nunca vi um caso assim aqui no consultório do doutor Bechtinger, mastologista. Sou secretária dele. Já presenciei muitos dramas de mulheres com diagnósticos de malignidade na mama, o desespero delas, a angústia da mutilação arrebentando em lágrimas. Mas eu? Vinte anos? Li de novo, era verdade. Liguei os fatos, o telefonema do doutor com um outro especialista, me mandou pegar um café, pretexto, lógico, para eu não ouvir. Mas quando voltei, escutei um restos da conversa "segundo exame, é, confirmado... é o procedimento...total, você também acha, total, sei, Marcos". Entendi por que o doutor passou a tarde preocupado, recebendo pessoalmente o rapaz do laboratório, quando normalmente eu é que atendo. Queria me poupar nesses dias de carnaval, não é tempo de pesares. Ele sabia que eu ia desfilar pela primeira vez na Mangueira, falei nisso o ano inteiro, como estava ansiosa pra vestir a fantasia bordada de paetês, colocar o esplendor de plumas e, linda e maravilhosa, samba no pé, deslumbrar a multidão.

Sonho secreto de menina, pequena ovelha negra no rebanho da família pra lá de careta.

Para realizar meu sonho, depois de concluir o segundo grau, fui trabalhar. Não tive condições de fazer faculdade, somos pobres. Quem estuda em escola pública é assim mesmo, a gente não tem o preparo desses cursos caros e bons, daí não consegue passar no vestibular das universidades do governo. As pagas, como pagar? Me restava arrumar emprego. Boa aparência, boa redação, mexia com computador, agradei ao doutor Bechtinger, me contratou. Desde que recebi meu primeiro salário, dava quase tudo pra mamãe, guardava um dinheirinho pra fantasia do carnaval. Meus pais e o Zeca, meu namorado, se soubessem, iam ficar desgostosos, seria o fim do mundo. Acho difícil acreditar que alegria é pecado, mas lá em casa é assim, o jeito é calar e tocar a vida.

Agora, apertando aquele papel nas mãos, meu sonho perdia o brilho na sentença em preto-e branco.

O carocinho que senti no seio esquerdo tomando banho e pedi ao doutor para examinar era maligno e, como bem ouvi, significava arrancar meu seio fora. Sei lá por que, não conseguia chorar. Também não pude voltar pra casa. Como dizer uma coisa dessas a minha mãe? Fiquei dando voltas em Copacabana, as ruas cheias de camelôs vendendo máscaras, perucas metálicas coloridas, enfeites baratos. Então, peguei meu celular pré-pago, liguei pra casa, inventei que precisava dormir na casa da tia Neide, problemas no consultório, ia ficar tarde, que era pra avisar o Zeca.

Fui pra quadra da Mangueira e sambei como uma condenada.

Depois, Toninho, o encarregado do guarda-roupa, me entregando a fantasia, perguntou pela milésima vez:

– E aí, neném, vai mostrar esses peitinhos lindos na passarela, ou tá com medo do teu boiola?

Meu boiola era o Zeca, meus peitinhos lindos o Toninho conhecia de vista. Malandro, achava um jeito de espiar a prova das fantasias, dava palpites, me tocava disfarçado, eu fingia que não via, achava bom, me arrepiava toda. O Zeca, a gente se amava, mas ele era muito sistemático, me respeitava e guardava para o dia do casamento, coitados de nós dois. Enfim, de madrugada, quando o ensaio acabou, o pessoal saindo animado, sobrou o silêncio. Então a consciência da doença voltou a me assombrar. Perdi o fôlego, a angústia transparecendo no andar arrastado, sem rumo. Toninho percebeu:

– A barra pesou, neném?

Olhei pra ele. No lugar do malandro, um homem que enxergava as lágrimas que eu não sabia derramar, enquanto dedilhava meus cabelos como cordas de violão. Garantiu:

– Tá comigo, tá com Deus. Vem pra minha casa.

Toninho morava na Glória, um prédio feio num lugar horrível, mas o conjugado era limpo e arrumado. Me deu um guaraná, pegou uma cerveja, me acomodou no sofá desbotado, sentou de costas numa cadeira, braços cruzados no encosto, queixo apoiado nas mãos. E ensinou:

– Tem dois jeitos de sofrer: fechando a boca ou abrindo a alma. O primeiro dói mais. Que vai ser?

Escolhi o segundo. Abri os botões da blusa, que era ali que andava a minha alma.

– É câncer, Toninho. Vão tirar meu seio fora...

Toninho empurrou a cadeira, veio vindo mansamente, se ajoelhou aos meus pés e beijou a minha alma. Uma. Depois a outra.

A Mangueira entrou na passarela levantando a multidão delirante, e, como no samba do Chico, como no meu sonho, eu pisava um chão de esmeraldas, soberba, garbosa, ovelha verde e rosa rebrilhando no rebanho do carnaval. E quando a nossa ala passou em frente à comissão julgadora, Toninho, malandro novamente, berrou no meu ouvido:

– Vai ou não vai? Aproveita a tua hora, neném!

A minha hora.

Rainha da minha hora, que fosse a melhor por toda a vida: arranquei o sutiã de paetês, soltei a alma na folia.


Do livro A rainha da hora (Razão Cultural, 2002). Ilustração: Carnaval em Madureira, óleo sobre tela de Tarsila do Amaral (1924)

16.2.06

POEMAS DE AMOR AO RIO

amado
líria porto




rio rio rio rio

quedo-me em teu leito
sem saber direito
onde vou parar
caio nos teus braços
abraços e beijos
levas-me contigo
deságuas-me ao mar

rio rio rio rio

em tua correnteza
roço-te as margens
afundo-me ao meio
mergulho-me em ti
rolo feito seixo
pelas tuas praias
estamos amarrados
atados por um fio

rio rio rio rio

finjo-me sereia
n’areia me deitas
cobres-me o corpo
o céu diz amém
sou tua a amante
assim por inteiro
és meu rio amado
rio de janeiro

rio rio rio rio

são sebastião
Nel Meirelles




as ruas
me atravessam

as esquinas
guardam meus pedaços

as largas avenidas
amaciam meus passos

o sol do arpoador
me descobre a alma

bangu, campo grande, realengo
são trilhas de longas caminhadas

tijuca, ipanema e são cristóvão
canções de todos os carnavais

e minha mangueira
plantada no alto do morro
é a alma desse rio de janeiro
que vive e revive em mim

Nel Meirelles edita o blog Fala Poética

Centro da cidade do Rio de Janeiro
Marilena Frade




Centro de alamedas, becos e cortiços,
Que se perdem num Rio antigo e moderno!
E mesmo assim continua aconchegante e belo!
Num vai-e-vem alucinante,
Praças, vilas, bares,
Suas igrejas, lindos altares! Burburinho constante!
Teatros, Carlos Gomes, João Caetano
E outras dezenas de nomes.
Importantes, heróis! Tiradentes!
Com Riachuelo, sua História,
Seus cinemas e recantos!
Central, sempre Brasil,
Lembrando a República, na praça, tão perto!
Seus bichos, árvores antigas,
Lembranças doces, decerto! Sempre nossas amigas.
Centro, bairro, centro de vida!

Do livro Do amor (Editora Litteris)

13.2.06

DOMINGO CHUVOSO II

Domingo de sol a gente sabe o que faz aqui no Rio: vai à praia, vai passear. Mas e quando chove? Chuva não tem a cara do Rio. Existe uma palavra inglesa, serendipity — criada por Horace Walpole no século XVIII em alusão ao reino de Serendip, o Ceilão — que é a capacidade de "esbarrar" com coisas boas e inesperadas, por acaso (existe um correspondente português, "serendipidade", mas soa artificial). Eu que tenho alma de andarilho e acredito em serendipity mais do que no horóscopo, saí à rua com chuva e tudo — verdade que ela acabou dando uma boa trégua. Vejam por onde andei:

Calçadão de Copacabana

Centro Cultural Oi Futuro

Castelinho da Praia do Flamengo

Vista do Castelinho



Túnel Novo



Baile de Carnaval na Praça do Lido, em Copacabana

Desfile da Beija Flor (sem os carros alegóricos) na Avenida Atlântica, em Copacabana

Fotos de Ivo & Mi. O Centro Cultural Oi Futuro (ex-Telemar) fica na Rua Dois de Dezembro, 63 - Catete - pertinho do Largo do Machado. Ocupa o prédio da antiga Companhia Telefônica Brasileira, que também já abrigou o Museu do Telefone. O Castelinho do Flamengo, construído entre 1916-1918 para residência do proprietário da Construtora Silva Cardoso, é um exemplo típico do ecletismo em arquitetura, mesclando elementos art-nouveau, neo-renascentistas italianos, neogregos e neogóticos franceses, formando uma "colcha de retalhos". Desde 1992 abriga o Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho, uma videoteca municipal, mas só a arquitetura do prédio já vale uma visita - e é grátis. Situa-se na Praia do Flamento, 158 - esquina com a Dois de Dezembro.

8.2.06

PEDRA DO SAL




Nós - E a Pedra do Sal?

Nós mesmos - A Pedra do Sal é um lugar místico para a cultura negra e para os amantes do samba e do choro. Ela pode ser considerada como o núcleo simbólico da chamada "Pequena África" de que falamos acima. A região em torno da Pedra do Sal era repleta de zungus, casas coletivas ocupadas por negros escravos e forros. Ali se reuniam Donga, João da Baiana, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres - precisa dizer mais? Fica a 100 metros do Largo de S. Francisco da Prainha, onde tocamos, virando ali na esquina do bar do sr. Adão. Na base, há um botequim, no Largo de João da Baiana. É uma pedra, com degraus escavados, por onde se pode subir para o Morro da Conceição, que é um passeio imperdível para qualquer carioca que se preze.


Trecho de "Tudo que você queria saber sobre os Escravos da Mauá (e suas fabulosas rodas de samba mensais) e nunca teve coragem de perguntar..." Leia a auto-entrevista integral em Circuitos do Rio.


A PEDRA DO SAL é um monumento religioso do povo carioca.

Na virada do século, a Saúde, como o velho centro do Rio, enxameava de templos afro-brasileiros; ialorixás, cambonos e alufás em cada quarteirão. Os templos católicos foram tombados e preservados. Nenhum afro-brasileiro o foi.

Na PEDRA DO SAL se faziam despachos e oferendas (a Obaluaie, Xangô, Ogum, Exu, Iansã e outros Orixás), se despejavam trabalhos. Era e é, local consagrado. À sua volta, convergindo nela, ficavam diversas “roças”, hoje desaparecidas, reduzidas ou transferidas para o subúrbio e Grande Rio.


Remanescendo como espaço ritual, a PEDRA DO SAL é um dos poucos testemunhos físicos daquele passado de densa religiosidade carioca.

A PEDRA DO SAL é, em suma, mais que um bem cultural negro-brasileiro. É um monumento histórico e religioso da cidade do Rio de Janeiro.


Parte do texto do historiador Joel Rufino dos Santos que deu origem ao processo de tombamento da Pedra do Sal, ocorrido em 20/11/1984. Extraído da Wikipédia.



Desde o século XIX, a Pedra serviu como ponto de encontro de imigrantes e de desembarque de negros africanos. Foram os escravos, que garimpavam o sal da Prainha, aliás, os arquitetos da escadaria que, hoje, permeia o bairro como uma simples alameda.

Pedra fundamental da Pequena África do início do século XX; espaço sagrado; lugar de oferendas, festas e batuques; posto de observação; “local de ensaio e ponto de encontro, de pastoris, que viraram ranchos, que viraram escolas de samba”; essas e outras qualificações indicam e registram o caráter agregador da Pedra. Em torno dela a comunidade do Morro da Conceição se reúne, se envolve e se identifica.

Trecho do artigo do museólogo Mário Chagas "Memória Rupestre ou do Caminho no Meio da Pedra" publicado na Revista Museu. Leia a íntegra do artigo clicando no nome da revista.





Dia do Samba na Pedra do Sal (2009). Fotos do editor do blog..