ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

30.6.13

O CHALAÇA E O PALACETE LAGUNA

TEXTO DE ANDRÉ LUIS MANSUR REPRODUZIDO DO LIVRO FRAGMENTOS DO RIO ANTIGO COM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR.
FOTOS DO EDITOR DO BLOG.


O livro Fragmentos do Rio Antigo pode ser comprado nas livrarias Folha Seca, Leonardo da Vinci e Galaxya, todas no Centro do Rio, ou encomendado à Livraria Edital.

Sem dúvida um dos personagens mais intrigantes do início do império brasileiro foi Francisco Gomes da Silva. Mas não foi pelo seu nome de batismo que ele entraria para a História do Brasil e sim por seu apelido, que significa, entre outras coisas, “gracejo de mau gosto, insolente, pilhéria, troça e zombaria”.
         Pois o Chalaça, português que veio para o Brasil junto com a Corte de D. João VI, era isso mesmo, um homem de muitos gracejos, piadas grosseiras, brincadeiras e farras, principalmente as farras, com as quais fazia companhia a D. Pedro I, o primeiro imperador brasileiro, que adorava a noite, a bebida, a música e as mulheres, enfim, um autêntico boêmio.
        

Mas o Chalaça não foi apenas um brincalhão. Foi um grande articulador político, pena que no terreno dos conchavos e das intrigas, principalmente junto à famosa amante de Pedro I, Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, intrigas estas que culminaram no afastamento do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva do governo e atingiriam a própria imperatriz Leopoldina, isolada cada vez mais no seu palácio. O Chalaça ganharia sempre cargos de importância na Corte, obtendo títulos honoríficos e grande fortuna, e morreria em Lisboa em 1852 depois de ter escrito três livros e sempre estando perto do poder.
           

A casa onde o Chalaça morou, na atual rua General Canabarro, no Maracanã, bairro da zona norte do Rio, é hoje o Espaço Cultural Laguna, mesmo nome do palacete e homenagem à Retirada da Laguna, importante acontecimento da guerra do Paraguai. A casa, que ficava bem perto do Palácio da Quinta da Boa Vista, residência de d. Pedro I, tem 17 aposentos e está numa área de 3.600 metros quadrados. A residência abriga um túnel que, segundo reza a lenda, seria o local de fuga do imperador para seus encontros amorosos. Nem é preciso dizer que o palácio era o local preferido do Chalaça para suas intrigas de poder. Mais tarde, ali seriam realizadas reuniões importantes do Clube da Maioridade, que lutou e conseguiu antecipar a subida ao poder de Pedro II em 1840, com apenas 14 anos.


Após a proclamação da República, em 1889, o Exército ocupou a antiga casa do Chalaça, que abrigou ali várias organizações militares, até mesmo por causa do amplo espaço não só da casa como do terreno. Em 1944, foi restaurado pelo ministro da Guerra de Getúlio Vargas e futuro presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, passando a ser a residência oficial dos ministros do Exército, sendo o próprio Dutra o seu primeiro morador. Hoje o local [Rua General Canabarro 731 - Maracanã] abriga uma biblioteca e está sempre sendo utilizado para eventos culturais [aberto ao público de segunda a quinta das 10h ao meio-dia e das 13h30m às 16h30m, e às sextas, das 10h ao meio-dia].

20.6.13

NAS HORAS MORTAS


Durante um período Maurício Limeira ia todos os dias à Biblioteca Nacional onde leu todos os exemplares em microfilme do Correio da Manhã entre 1920 e 1930. O resultado dessa pesquisa, que incluiu também leituras de Costallat, João do Rio, Ribeiro Couto, Lima Barreto e outros, bem como pesquisas na Internet, está no seu  fascinante livro Nas Horas Mortas: A Vida Noturna no Centro do Rio de Janeiro, do qual lerá alguns trechos a seguir:



Bolinas

Se, ao surgir, os cinematógrafos eram mal vistos pelas questões de higiene e segurança, com o passar do tempo o público se acostumaria a ver o cinema como o espaço de exercício do lúdico, onde se ia vivenciar a experiência de estímulo aos sentidos e à imaginação. Atividade aparentemente inofensiva, mas que incluía encontros amorosos, seduções e a ação daqueles que no escuro aproveitavam-se do contato mais íntimo com desconhecidas, os chamados bolinas. Em texto de 1925, um cronista que assinava apenas como “Luiz” narrava com detalhes a atividade, contando a aventura de um senador cuja maior diversão era entrar nos cinemas, logo que fechava o Senado, para abusar das moças na flor da idade. O texto descreve essa última vítima como uma jovem de dezesseis anos, casta, de olhos amendoados, “grossos pernões”, e acompanhada da mãe. Como numa narrativa de suspense, acompanha o senador sentar ao lado da jovem e, apagadas as luzes, deslizar a perna “como a perna de um polvo em procura do pésinho da pequena”, que, embora reaja a princípio colocando de permeio “a sua sombrinha protectora”, acaba cedendo às investidas, sem que a mãe se dê conta.

            Em outra crônica, verifica-se que alguns donos de cinemas não só estavam a par mas incentivavam a atividade dos bolinas em anúncios que prometiam “a sala mais escura do Rio. Tres toques (prolongados) de campainha, ao fim de cada fita”. Como reflexo da sociedade a que pertencia, o cinema mostrava que, também ele, por trás de fachadas iluminadas e coloridas, guardava num recanto escuro os gestos não permitidos à luz do dia.


A Lapa

            A região que inicia a uma quadra da Praça Floriano e faz fronteira com o bairro da Glória, estendendo-se até o centro velho do Rio que é a Praça Tiradentes, esta região que hoje é concorrido ponto turístico dos amantes da boêmia e coroada com os Arcos por onde trafegam os últimos bondes, já demonstrava na década de 1920 a vocação para a noite. Por suas ruas a movimentação intensa começava às dez horas, nos diversos cafés, restaurantes, clubes e nas casas aonde se ia em busca de ofertas femininas de prazer sexual. A essa hora, as conduções partiam cheias, carregando para suas casas o público saído dos teatros e cinemas, e deixando para trás a parcela da população para quem a noite apenas começava.

            Ribeiro Couto fala numa “alma viciosa da Lapa”. Observa fascinado os cafés regurgitantes de freguesia conversadora, os “vadios costumeiros” examinando as mulheres, os solitários nas janelas dos hotéis, os vultos, o riso, os chamados “longos, cariciosos”, as portas abertas com luzes vermelhas no interior. O movimento nas ruas, a circulação humana que buscava um tipo qualquer de satisfação, durava apenas até por volta de uma hora, quando os botequins fechavam e a praça ladeada pelos Arcos e pela Avenida Mem de Sá esvaziava-se. A noite prosseguia ofegante no interior de clubes como o Congresso dos Tententes, o dos Excêntricos e o Moderno, todos na Avenida Mem de Sá; o dos Zuavos, na Rua Maranguape, e o dos Aliados, no Beco do Mosqueira. Lugares considerados focos de distúrbios, frequentados por assassinos profissionais, gatunos, cafetões e vendedores de drogas: “malandros” em geral, prontos a tungarem (furtarem) às escâncaras os ingênuos e novatos, ou a sacarem do revólver diante da menor ameaça.

  

“A viúva”, “a donzela”, “as primas”, “a enteada”: histórias de bordel

            Figura obrigatória da noite carioca, Benjamin Costallat não poderia deixar de escrever sobre os bordéis do Centro. Escreveu. Numa de suas crônicas, descreve a visita a uma casa na Rua do Riachuelo, na Lapa, de aspecto “quase burguês, perfeitamente honesto”, identificada como uma das mais célebres casas de rendez-vous do Rio de Janeiro, “a casa da Judite”. Administrado por uma mulher amável e “gorda, maciça, redonda, fisionomia de lua” – a tal Judite –, o lugar era considerado o modelo perfeito deste tipo de estabelecimento, com sala de jantar e quartos independentes, mas com comunicações internas, para casos de fugas, e uma saída para um pequeno terreno que fazia a ligação com outra casa, na Rua do Resende. Eram assim, duas entradas, duas saídas, “dous números diferentes em duas ruas diferentes para uma casa daquela ordem”.
           
            Mais do que com o comércio sexual em si, surpreende-se o autor com as fantasias de seus frequentadores, que Judite e suas meninas não se furtam em satisfazer, mantendo o funcionamento daquilo que ele chama de “engrenagem de vícios e de vergonhas”. A um coronel, Judite apresenta duas jovens como sendo primas, moças tímidas de família que saíram para o cinema e que, portanto, precisam voltar cedo para casa. O coronel, olhos brilhando de ansiedade, vai de imediato ao encontro das duas. A outros, informa que conseguiu uma recém-casada – à qual não falta a aliança –, uma viúva, uma donzela. Ribeiro Couto também destaca em crônica essa capacidade das donas de bordéis em atender a cada perversão de seus fregueses, recebendo, os mais abastados, notificações por telefone das novidades no bordel:

“Olhe... tenho agora um tipo que é exatamente o seu gosto: pequena, magra, vibrante... Veio pela primeira vez aqui ontem... Ainda ninguém provou...”
  

Maconha, ópio e amendoim

Praticamente não se falava em maconha. Durante o período abordado o Correio da Manhã não lhe faz qualquer referência, embora esta erva tenha chegado por aqui já no século XVI, trazida pelos escravos e tolerada até 1830, quando pela primeira vez a Câmara Municipal do Rio de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga. De acordo com a nova lei, punia-se com multa de vinte mil réis aquele que fosse encontrado vendendo o produto, e com três dias de prisão o que estivesse consumindo o produto vendido. A explicação para o fato de os usuários receberem pena bem mais rigorosa do que os traficantes é social: quem vendia a maconha eram os brancos de classe média, enquanto quem a comprava eram os negros e escravos.

Vem do idioma quimbundo o termo usado para designar a Cannabis sativa, que por aqui também chamou-se fumo-de-angola ou diamba. Seu uso era restrito aos terreiros de candomblé e a algumas regiões do interior, consumida por agricultores após o trabalho nas plantações. Era considerada pejorativamente como “coisa de negro”, “chulé”, “pé-de-chinelo” ou “sandália-de-couro-velha”, e só na década de 1960, durante o movimento hippie, viria a conquistar consumidores junto à classe média.

Fotos de grafites do editor do blog.

12.6.13

TRÂNSITO DE PAULISTA, de GILBERTO SCOFIELD JR.

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO DE 12/6/2013


RIO — E apesar de todo o Centro de Operações Rio (COR) da prefeitura, com aquele monte de telinhas mostrando o trânsito em tempo real, mil funcionários, mil GPS, mil câmeras, a CET-Rio de plantão, nada adiantou e a volta para casa na terça-feira foi um inferno. Sem um plano de contingência e cheia de obras, a cidade parou. Quem tinha aplicativo de trânsito no celular ainda pôde contar com avisos e, de antemão, evitar regiões de confluência congestionadas, como a Avenida Brasil. Quem não tinha, lascou-se.

Ok, ok, terça-feira foi um dia atípico. Mas num dia típico, o trânsito no Rio é muito pior que o de São Paulo por pura ignorância. Ninguém na cidade — motoristas de carro, de ônibus, de táxi, pedestres, ciclistas ou motociclistas — parece fazer o menor esforço para cumprir as leis de trânsito. Carros e ônibus fecham os cruzamentos (e ainda buzinam para os motoristas que se recusam a fazê-lo), pedestres atravessam em qualquer lugar e sem nenhuma atenção (já vi gente atravessando rua mandando mensagem no celular), bicicletas circulam nas calçadas e não param nos sinais (eu já quase fui atropelado duas vezes), motociclistas flertam com a morte em sua leviandade, estacionamento de carros em calçadas é praticamente norma, ônibus ultrapassando carros no limite da velocidade máxima no Aterro do Flamengo é coisa ordinária, motoristas de táxi histéricos, motoristas de carros que aceleram em cima dos pedestres, motoristas de ônibus que desconhecem o que é uma seta, veículos parados horas sobre ciclovias no calçadão.

Psicólogos já se debruçaram sobre o fenômeno do estresse no trânsito e seu poder de reduzir as pessoas a um estado animalesco, mas duvido que alguém consiga explicar o trânsito carioca. Fechar cruzamento não é só ilegal. É burrice. Assim como estacionar em calçadas. Quem gostaria de ver seu filho andando pela rua porque não tem espaço nas calçadas?

As razões dessa maluquice são variadas. Vão da falta de educação pura e simples, passam por anos de descaso no planejamento urbano, por um modelo de crescimento baseado no consumo (de carros subsidiados, inclusive), por uma prefeitura que decidiu abrir guerra contra os motoristas sem ter um transporte público eficiente, pela falta de estacionamentos regulares (quem ainda aguenta flanelinha, gente?), por uma engenharia de trânsito pouquíssimo sofisticada e por fim, por uma fiscalização deficiente.

Há anos que a prefeitura aposta nos agentes de trânsito, os tais “verdinhos”. São uns 800, terceirizados, que não têm poder de multa. São facilitadores. Ora, todo mundo sabe que mudança de hábito em massas se faz com campanhas educativas e fiscalização. Não tem mistério. É assim tanto na China quanto nos EUA. Aqui não temos nem uma coisa nem outra, apesar de a Guarda Municipal, em tese, atuar no trânsito. Em São Paulo, os funcionários da CET, conhecidos como “marronzinhos” (por que essa infantilização da autoridade?), ficam em cruzamentos e ruas a pé, de bicicleta ou de motocicleta com uma espécie de máquina de Cielo na mão. Aquilo emite a multa na hora mesmo. São implacáveis. No Rio, bem, no Rio se os Guardas multassem com empenho a gente não veria tanta infração por aí, não é mesmo? Lembrando que estacionar em calçada custa uns R$ 130 e remoção do veículo. Some-se a isso a clara falta de fiscalização de ônibus e de táxis e o circo está armado.

Assim como no caso dos serviços, há a falta de gentileza. Dia desses, estava num táxi na Rua Almirante Tamandaré, no Flamengo (onde as pessoas estacionam dos dois lados da rua, deixando apenas um fiapo de espaço no meio), quando o táxi da frente parou para o desembarque de uma passageira idosa. Muito idosa. Ou seja, um desembarque lento. Pois o motorista do meu táxi esmurrava enlouquecidamente a buzina, como se ele nunca tivesse passado por isso. Como se o motorista da frente — e a senhora — não merecessem respeito e consideração.

O trânsito do Rio é trágico. Somos todos responsáveis por isso.

1.6.13

SANTA CRUZ: UMA PAIXÃO



Ver Santa Cruz num mapa maior


FOTOS DO EDITOR DO BLOG
TEXTOS (exceto legendas das fotos) EXTRAÍDOS DO LIVRO SANTA CRUZ: UMA PAIXÃO, DE NIREU CAVALCANTI (COLEÇÃO CANTOS DO RIO).


Antigo palacete do Senador Júlio Cesário de Melo na Praça Dom Romualdo em Santa Cruz (veja a localização desta e de outras atrações no mapa acima). Construção da primeira metade do século XIX, serviu de cenário para a novela O Bem Amado.

Antigo palacete do Senador Júlio Cesário de Melo na Praça Dom Romualdo em Santa Cruz (veja a localização desta e de outras atrações no mapa acima). Construção da primeira metade do século XIX, serviu de cenário para a novela O Bem Amado.

Ruínas do antigo Matadouro Imperial de Santa Cruz (atrás do palacete acima), cuja sede foi inaugurada em 1881 pelo Imperador Dom Pedro II.

Nave do Conhecimento Tim Lopes, construída na Rua Álvaro Alberto onde havia dois prédios abandonados, em ruínas, e uma cracolândia. A Nave consolida um conjunto de atividades e programas desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia. Inaugurada em junho de 2012.

Palácio Real, capítulo do livro Santa Cruz: Uma paixão de Nireu Cavalcanti

Todo monarca português deveria ter, no mínimo, três imóveis diferentes: um palácio requintado na Cidade-Corte, no caso, Lisboa; um palácio de campo, em quinta (chácara) próxima à Corte e um palácio rural, em grande fazenda, para exercício das nobres atividades agropastoris da equitação e da caça silvestre.

Ao chegar e se instalar na cidade do Rio, a Corte recebeu como palácio urbano o antigo Paço dos Vice-reis — na atual Praça Quinze, prédio onde funciona o centro cultural denominado Paço Imperial —, após reforma apressada de pintura e forração de paredes com tecidos. Obras igualmente ligeiras foram realizadas nos prédios do Convento do Carmo e na Casa da Câmara e Cadeia, para anexá-los ao prédio principal. Portanto, o palácio real, que passou a abrigar o governo monárquico português, ocasionou a expulsão de suas sedes do vice-rei, seus funcionários e lacaios; dos vereadores; dos presos e seu carcereiro e dos frades carmelitas.

O palácio de campo, o príncipe regente D. João ganhou-o de presente do rico negociante Elias Antonio Lopes. Esse senhor era dono de uma chácara localizada em São Cristóvão (parte de uma das propriedades confiscadas aos jesuítas) e a casa sede estava em final de construção, quando D. João foi visitá-la. O príncipe regente ficou admirado com a grandiosidade do imóvel e, ao que dizem, fez comentários elogiosos, o que levou o proprietário a presenteá-lo. Com status de palácio nobre, foi batizado de Palácio Real da Boa Vista

Por fim, o palácio rural da monarquia foi instalado na Real Fazenda de Santa Cruz! Pronto para ser ocupado, tinha muitos quartos — antigas celas dos jesuítas — salão, cozinha e igreja. Na verdade, seus aposentos não eram dignos de um monarca europeu: necessitavam de grandes reformas, decoração requintada e muitas ampliações. Em agosto de 1808, o príncipe regente D. João já despachou do seu Paço de Santa Cruz. Porém, durante os 13 anos em que governou o Brasil, não fez as obras necessárias para adequar melhor o palácio às funções de residência rural da monarquia.

D. Pedro I, entretanto, encomendou ao seu arquiteto particular, o francês Pierre Joseph Pezerat, autor da reforma do palacete da marquesa de Santos, o levantamento das construções existentes no conjunto do palácio e um projeto de reforma do mesmo. [...] Do ponto de vista de quem olha o palácio de frente, ele ainda não possuía o trecho da fachada à direita da igreja, construído posteriormente, no governo do imperador Pedro II. Debret e Thomas Ender registraram, em belas perspectivas, esse conjunto de edificações desenhado em planta baixa por Pezerat.

Muitas obras de urbanização e a edificação de novos imóveis em apoio às funções palacianas foram realizadas. O largo em frente ao palácio foi urbanizado e foi melhorada a Real Estrada de Santa Cruz. Novos logradouros foram abertos e neles aforados terrenos para construção de casas térreas e sobrados, alguns requintados, para abrigar atividades comerciais e os nobres e ricaços sequiosos de desfrutar a convivência com o poder real.

Casarão de 1896 com bela fachada adornada com mísulas "sustentando" a cornija, platibanda vazada e coroada por compoteiras laterais e um frontão de inspiração barroca, na rua Felipe Cardoso, esquina com Dr. Continentino.

Batalhão Vilagran Cabrita na Praça Ruão (300 metros ao norte da estação de trem), antiga sede (ampliada e modificada) e igreja da fazenda dos jesuítas.

Batalhão Vilagran Cabrita: antigo portal da igreja, único traço barroco que restou do conjunto original.

Maquete (no Centro Cultural de Santa Cruz) da antiga sede e igreja da Fazenda dos Jesuítas que depois deu lugar ao Batalhão Vilagran Cabrita.


Matriz Nossa Senhora da Conceição (perto da Praça Dom Romualdo) em dia de chuva intensa.

Igreja de Nossa Senhora da Glória na Praça Santa Cruz num belo dia de sol.

Casas antigas (Rua Senador Câmara).

Lembranças pessoais (1971-2003), capítulo do livro Santa Cruz: Uma Paixão de Nireu Cavalcanti

[...]
Imbuído desse novo espírito, fui in loco reconhecer e apreciar os monumentos históricos de Santa Cruz.

O núcleo principal da fazenda jesuítica, depois, sucessivamente, da Coroa portuguesa e da brasileira, situado em platô no alto de uma suave colina, estava profundamente modificado. Do antigo largo do Paço, hoje praça Ruão, só ficou o traçado, a forma retangular e suas dimensões. No tocante às edificações, resta apenas o conjunto — muito alterado na volumetria e estética — da igreja e do palácio. Dos traços barrocos originais do prédio onde hoje se situa o Batalhão Vilagran Cabrita, só restou o portal da igreja [ver foto acima]. Apesar das transformações, esse prédio principal, com três pavimentos, apresenta volumetria proporcional e guarda certa monumentalidade e traços neoclássicos de boa arquitetura. O largo ou praça e agradável e imponente e merece ser vivenciado por quem for a Santa Cruz.

Possui o bairro outro conjunto de edificações do século XIX, de grande expressividade arquitetônica — que visitei em 1971 e revi recentemente — onde funcionou o antigo Matadouro, inaugurado solenemente às 9 horas da manha de 30 de dezembro de 1881, com a presença do imperador D. Pedro II, dos vereadores, de membros do ministério e de grande multidão, tendo recebido a benção do padre Dâmano do Rego Barros. Localiza-se em ampla quadra entre as ruas das Palmeiras Imperiais, do Matadouro, do Ferreira e o largo do Bodegão. Formava um conjunto arquitetônico significativo, como se pode constatar pelas belas ruínas do bloco principal, do qual restou parte da fachada com sua interessante seqüência de vãos de portas e janelas dotados de vergas circulares [ver foto acima]. As edificações de apoio permaneceram, delas destacando-se o majestoso sobrado onde funcionava a administração do Matadouro, depois ocupado pela Escola Santa Isabel. Se em minha primeira visita a esse belo conjunto senti um misto de emoção estética e tristeza por constatar o abandono em que se encontrava, trinta anos depois encontrei-o revitalizado e abrigando a sede do Cetep Santa Cruz (Centro de Educação Tecnológica e Profissionalizante), ligado à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, inaugurado em 26 de setembro de 1998. Nesse Centro funcionam uma escola técnica, uma de ensino industrial, Centro de Informática, um centro referencial de informações, a escola 24 horas de apoio ao estudante, creche e amplo complexo esportivo. Frequentam o Cetep, cerca de 10 mil alunos.

O prédio da antiga Escola Santa Isabel passou por ampla reforma, que o fez renascer e realçou-lhe a beleza neoclássica. Hoje, abriga o Centro Cultural de Santa Cruz [ver foto do Palácio Santa Isabel acima], com varias atividades e funções. Foi tombado pelo município em 7 de maio de 1981 e nele funciona o Ecomuseu e o NOPH, associação cultural guardiã de documentos manuscritos, de publicações e de peças ligadas à história da antiga fazenda dos jesuítas. Acham-se ali expostos uma arca e um sacrário em madeira entalhada, pertencentes à antiga capela do período setecentista.

Outro exemplar significativo do patrimônio histórico do bairro é o hangar do Zeppelin [foto da capa do livro acima], na Base Aérea de Santa Cruz, tombado pelo município em 24 de novembro de 1992, por sua importância para a história da aviação brasileira. Trata-se de edificação de grande porte iniciada em 1934 e inaugurada dois anos depois, para abrigar os dirigíveis (Graff Zeppelin e o Hindenburg) da linha aérea entre a Alemanha e o Brasil, na rota Frankfurt-Recife-Rio de Janeiro.

Para nós, arquitetos e urbanistas, o hangar do Zeppelin tem importância para a história da arquitetura brasileira, pois foi lá que desembarcou Le Corbusier, vindo da França, a fim de divulgar os princípios da arquitetura moderna , convidado pelo ministro Gustavo Capanema, do então Ministério de Educação e Saúde. Em suas memórias, o arquiteto Lúcio Costa registra a sua ida junto a uma comissão para receber o ilustre visitante: “"Fomos todos de madrugada [12/07/1936] esperá-lo em companhia de Hugo Gouthier, então do gabinete do ministro [Gustavo Capanema], chefiado por Carlos Drummond de Andrade.”

O ponto alto dos monumentos históricos de Santa Cruz é, sem dúvida, a Ponte dos Jesuítas [ver fotos abaixo], construída no século XVIII pelos inacianos. Além de ponte, desempenhava a função de comporta reguladora do regime das águas dos rios que transbordavam no período das grandes chuvas. Na época das secas, as comportas dos arcos da ponte eram abertas e a água se esvaía, irrigando e umedecendo o solo ressecado pelo sol. É uma das mais importantes obras de engenharia hidráulica realizada no Rio de Janeiro colonial. É lamentável que em seu entorno não haja um complexo turístico com lojas, restaurantes e salas de exposição com a história das obras jesuíticas no bairro.

Santa Cruz mudou muito ao longo do período de 1971 a 2003: perdeu, sobretudo, seu ar bucólico e tranquilo. A rua Felipe Cardoso (antiga Estrada Real de Santa Cruz), principal artéria do bairro, viu-se privada da maioria dos seus antigos casarões, substituídos por prédios novos com linguagem arquitetônica moderna. [...] Um logradouro que guarda sua imagem de trinta anos atrás é a avenida Isabel, pois lá ainda se encontram velhos casarões e arborização frondosa, com alguns espécimes majestosos.

Os antigos campos agrícolas e pastoris foram ocupados por conjuntos de edifícios residenciais, favelas, galpões e edificações industriais. Sepetiba emancipou-se de Santa Cruz e suas praias foram poluídas pelos rios que nelas deságuam[...]

Sem dúvida, Santa Cruz é um Canto do Rio que merece todo apoio do poder público e de todos os cidadãos que amam a nossa Cidade Maravilhosa, para que as suas qualidades — especificidades diferenciadoras de outros bairros, como o seu rico patrimônio histórico, arquitetônico, artístico e ambiental —, sejam preservadas. Para mim, Santa Cruz continua a ser um belo Canto do Rio.


Fonte Wallace na Praça Dom Romualdo (sob uma chuva torrencial). De autoria de Charles Auguste Lebourg, foi executada pela Fundições Val d'Osne, França. Tombada pelo Município.

Marco 11 da Estrada Real de Santa Cruz na Rua Felipe Cardoso, esquina com Av. Isabel (sob chuva torrencial — observe as pessoas se abrigando na marquise da loja).

Ponte dos Jesuítas no encontro da Estrada do Guandu com a Estrada do Cortume. "Esta ponte-comporta edificada pelos jesuítas nas terras de sua fazenda de Santa Cruz tinha a função de regularizar o curso do rio Guandu. Construção: 1740-1752" (Guia da Arquitetura Colonial, Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro)

Ponte dos Jesuítas (detalhe).