Dentre os romances brasileiros que conheço, o que mais se aproxima da escrita de Eça de Queiroz na variedade de personagens (jovens), profusão de diálogos, riqueza descritiva é A conquista de Coelho Neto. Trata-se de um "roman-à-clef, sem precisar de chave, pois os nomes dos personagens são parecidíssimos com os nomes reais dos que os inspiraram. É a história da vida boêmia de sua geração aqui no Rio." (Alexei Bueno) Os modernistas fizeram com Coelho Neto o que os esquerdistas viriam a fazer com Wilson Simonal: detonaram-no. Injustamente. Segue-se uma descrição das ruas do Rio retirada de A conquista.
As ruas do Rio de Janeiro, como as de Paris, segundo Balzac,
têm qualidades e vícios humanos: há ruas estroinas e há ruas pacatas, ruas
ativas e ruas negligentes, ruas devassas e ruas honestas, umas cujos nomes
andam constantemente em notas policiais, outras que são citadas nas descrições
elegantes.
A rua do Senhor dos Passos é imoral e imunda, a sua
linguagem é torpe, o seu vestuário indecoroso, as suas maneiras insólitas, o seu
cheiro nauseabundo, é uma rua que se enfeita com alecrim e arruda e embebeda-se
com cachaça, tem hábitos vis de xadrez e de tasca. Por mais que se arreie
vê-se-lhe sempre a imundície e a pústula; por mais que se esfregue sente-se-lhe
sempre o fortum.
A rua Sete de Setembro é uma delambida rameira que estropia
a língua do país e escandaliza a moral; o seu colo tem placas, os seus lábios
mostram a devastação fagedênica, o seu hálito envenena. Tais ruas são como
essas flores noctilucas que só desabotoam à noite e expandem o seu aroma;
durante o dia caladas, entorpecidas modorram em flácido e derreado abandono,
bocejando.
A rua da Conceição é desconfiada, como que tem sempre o
olhar à espreita, a navalha à mão, o pé ligeiro pronto para saltar e fugir. Não
fala — murmura, cochicha, em gíria arrevezada. E maltrapilha e zambra, arrasta
andrajos e oscila.
A praia de Santo Cristo [que desapareceu com a abertura do moderno cais do porto no início do séc. XX] tem o aspecto sadio de uma varina,
criada livremente, à fresca e salitrada aragem marinha, diante da vaga, sempre
a coser os panos das velas, abrindo-as ao vento ou compondo as malhas das redes
que um repelão mais forte do peixe, no mar fundo, rompera em noite farta. A sua
linguagem é rude como o fragor da onda na rocha, o seu olhar é límpido e seguro
como o do mareante; tresanda à maresia. A sua força é a do vagalhão. Calma, tem
o encanto da água serena em noites de luar, mas quando se insurge alvoroçada,
quando se põe de pé, brandindo facas agudas e croques, remos e velhas bancadas
de canoas roídas pela onda, esquecidas junto às dunas, apodrecendo ao tempo,
tem a fúria irreprimível do mar tempestuoso.
A rua Haddock Lobo, com o seu ar repousado e feliz de velha
senhora abastada, que dormita à sombra de árvores, entre crianças gazis e
flores recendentes, digerindo, em sossego beato, sem cuidados, sem achaques, é
calma e transmite ao espírito suavíssima idéia de descanso espiritual e de
corpo, no imperturbável silêncio das suas aléias no frescor das suas finas
águas correntes.
A rua do Ouvidor [a mais importante e badalada do Rio antes da abertura da Avenida Central] é trêfega. Durante o dia toda ela é vida e atividade, faceirice e garbo; é hilare e gárrula; aqui, picante; além ponderosa; sussurra um galanteio e logo emite uma opinião sisuda, discute os figurinos e comenta os atos políticos, analisa o soneto do dia e disseca o último volume filosófico. Sabe tudo — é repórter, é lanceuse, é corretora, é crítica, é revolucionária. Espalha a notícia, impõe o gosto, eleva o câmbio, consagra o poeta, depõe os governos, decide as questões à palavra ou a murro, à tapona ou a tiro e, à noite, fatigada e sonolenta, quando as outras mais se agitam, adormece. Ouve-se apenas o rumor constante dos prelos nas oficinas dos jornais. É a rua que digere a sua formidável alimentação diária para, no dia seguinte, pela manhã, espalhar pelo país inteiro a substância que compõe a nutrição do grande corpo, cada parte para o seu destino. Para o cérebro: as idéias que são os incidentes políticos e literários e as descobertas científicas, essas ficam com a casta dos intelectuais; o sentimento para o coração, que é a mulher; essa tem o romance e a esmola, o lance dramático e a obra de misericórdia; o movimento dos portos e das gares para o ventre e para os braços do povo que devora e do comércio que abastece e o resíduo que rola, parte para os cemitérios, parte para os presídios mortos e condenados. Outros que analisem a carta completa da cidade, eu fico nesta exposição.
(Do romance A Conquista de Coelho Neto de 1899. O conselho de que "outros analisassem a carta da cidade" foi seguido à risca por Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, nas crônicas reunidas em A alma encantadora das ruas.)