ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

23.8.12

CENTENÁRIO DE NELSON RODRIGUES


RIO VERSUS SAMPA

Passei, no princípio da semana, dois dias em São Paulo. Com duas horas, e não mais, percebi que há, realmente, um fatal abismo entre o carioca e o paulista. Foi no almoço que percebi toda a verdade. Imaginem que entrei no, talvez, melhor restaurante da cidade. Todas as mesas ocupadas, gente até no lustre. Comi o meu bom filé. Depois, escolhi a sobremesa: melão. Enquanto o garçom ia e vinha, levantei-me e fui lá dentro. Quando volto, olho e não vejo ninguém, a não ser os garçons e as moscas vadias.

Imaginei-me vítima de uma alucinação. Quando o garçom chegou com o melão, perguntei-lhe, irritado: 
"Cadê o pessoal que estava aqui? Isso não estava cheio?” O garçom pôs o prato na mesa:   Perfeitamente.” E eu: “Não tem mais ninguém, por quê?” Antes de responder, indagou: “O senhor é do Rio?” Era do Rio. Deu a explicação sucinta e lapidar: "Aqui, trabalha-se.”

O que, evidentemente, não se dá no Rio. No Rio, três amigos que se juntam num restaurante só saem quatro horas depois. No mínimo, no mínimo. Ah, os nossos papos não acabam nunca. Mentimos muito, porque não há longa conversa sem um belo repertório de mentiras. E porque trabalha, o paulista é triste, sim, é taciturno. E o nosso horizonte é luminoso e profundo, ao passo que São Paulo não tem horizonte, simplesmente não tem horizonte. Ou por outra: o horizonte paulista está a cinco metros do sujeito e é uma parede. Durante as 48 horas de São Paulo, eu sentia a insuportável falta de alguma coisa. De alguma coisa que eu não sabia o que era. Seria da gravata, ou dos sapatos, ou da bengala? Esta eu não uso e a gravata e os sapatos estavam nos lugares próprios.

E, súbito, descubro: o que me faltava era a paisagem. Tenho um amigo carioca, radicado em S. Paulo, que, de vez em quando, apanha o carro e vem para o Rio, numa velocidade uniforme de 180 quilômetros. Um psicanalista já o advertiu: “Rapaz, você está querendo morrer.” Simplesmente, ele vem ao Rio olhar o poente do Leblon. A falta que eu sentia, mais do que uma paisagem qualquer, era do poente do Leblon. São Paulo não tem poente (trecho da crônica “Uma Paisagem sem Paulistas”).


São Paulo não tem poente

HORROR ÀS VIAGENS

Explicando o meu horror às viagens, disse eu certa vez à estagiária de calcanhar sujo: "A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil.” Era uma verdade que eu oferecia em forma de piada. Todo mundo achou graça, inclusive o Adolfo Bloch, que achou engraçadíssima.

Mas eu não mentia, nem exagerava. E nem preciso ir ao Méier, que é tão longe. Aqui mesmo, no centro da cidade, recebi um convite, à queima-roupa, para visitar os Estados Unidos. O Governo americano pagava tudo. Em plena Esplanada do Castelo, comecei a ter saudades do Brasil. Para a minha desventura, era um convite de insuportável obstinação. Em pânico, mas disfarçando o pânico, disse eu: “Vou pensar.”

Durante seis meses o convite me perseguiu da maneira mais obsessiva e implacável. Já não atendia mais telefone, nem abria mais envelopes. Finalmente, derrotei o convite pelo cansaço físico. Mas como me custa convencer os outros de que sou um homem da minha rua, do meu bairro, da minha cidade. E vamos e venhamos: viajar por que e a troco de quê? (trecho da crônica “O Jovem Sábio”)

A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil 

TALENTO PRECOCE

Se me perguntarem quando comecei a ser Nélson Rodrigues, eu direi:  exatamente aos sete anos de idade. Eu fazia o terceiro ano primário na Escola Prudente de Morais. Vamos ver se me lembro de alguns nomes. A diretora era D. Honorina. Se não me engano, a professora do 5
o ano chamava-se Odete, D. Odete. Tenho certeza: era Odete, sim. E a minha professor, D. Amália.

Eu me vejo na aula. Como sempre digo, era pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. [...] Aos seis, sete, oito, nove anos, eu me apaixonava por todas as professoras. Mas não é isso que queria contar. Queria contar que, um dia, houve um concurso de composição na minha classe.

Geralmente, tínhamos de escrever sobre estampas de vaca ou de galinha com pintinhos. Naquele dia, porém, D. Amália avisou: “Vocês vão fazer uma história. Imaginem uma história.” Cada qual fez a sua. O julgamento durou dois dias. Veio o resultado, com dois premiados: eu e outro menino. O meu rival descrevia o passeio de um rajá no seu elefante favorito.

E eu? Bem. Na minha história, uma mulher traía o marido. A composição começava assim: “A madrugada raiava sanguínea e fresca.” Era um plágio cínico e deslavado. Eu fora ao soneto célebre e o saqueara. A imagem era de Raimundo Correia e a história minha. No fim, o marido descobria tudo e esfaqueava a mulher. O prêmio ao rajá e o respectivo elefante era uma concessão ao convencional. No meu caso, foi com certo escrúpulo e pânico que a professora dera o prêmio à carnificina.

Direi, a bem da verdade, que a minha historinha causou um horror deliciado. Outras professoras vinham, na porta, espiar o feliz autor. Eu era, para todos os efeitos, um pequeno monstro. Sim, foi esse meu primeiro escândalo (trecho da crônica “Este Mundo Sem Nenhum Amor”).

a minha historinha causou um horror deliciado

"CINISMO" DOS INTELECTUAIS

Tenho observado, ao longo de minha vida, que o intelectual está sempre a um milímetro do cinismo. Do cinismo e, eu acrescentaria, do ridículo. Deus ou o Diabo deu-lhes uma cota exagerada de ridículo. Vocês se lembram da invasão da Tcheco-Eslováquia. Saíram dois manifestos de intelectuais brasileiros. (Por que dois, se ambos diziam a mesma coisa? Não sei.) Contra ou favor? Contra a invasão, condenando a invasão. Ao mesmo tempo, porém, que atacava o socialismo totalitário, imperialista e assassino, concluía a Inteligência: “O Socialismo é Liberdade!”. E ainda lhe acrescentava um ponto de exclamação.

Vocês entendem? Cinco países socialistas estupravam um sexto país socialista. Este era o fato concreto, o fato sólido, o fato inarredável que os dois manifestos reconheciam, proclamavam e abominavam. E, apesar da evidência mais espantosa, os intelectuais afirmavam: “Isso que vocês estão vendo, e que nós estamos condenando, é a Liberdade!”.

E nenhum socialista deixará de repetir, com obtusa e bovina teimosia: “Socialismo é liberdade!”. Bem. Se o problema é de palavras, também se poderá dizer que a Burguesia é mais, ou seja: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Mas o que importa, nos dois manifestos, é que um e outro se fingem de cegos para o Pacto Germano-Soviético, para o stalinismo, para os expurgos de Lênin, primeiro, e de Stalin, depois, para os assassinatos físicos ou espirituais, para as anexações, para a desumanização de povos inteiros (trecho da crônica “Os que Propõem um Banho de Sangue”).



“O Socialismo é Liberdade!”: Foto tirada no Memorial às Vítimas do Muro de Berlim. Uma observação: enquanto qualquer deslize de Israel é recebido com uma saraivada de críticas e protestos, as atrocidades perpetradas pela ditadura síria são recebidas com o mais cínico dos silêncios por nossos intelectuais. Nelson Rodrigues estava certo!

INSISTÊNCIA NA TORPEZA

Nem todos se lembram de que não há um autor, em toda a história dramática brasileira, que tenha sido tão censurado quanto eu. Sofri sete interdições. Há meses, proibiram no Norte minha peça Toda Nudez Será Castigada. E não foi só o meu teatro. Também escrevi um romance, O Casamento, que o então Ministro da Justiça interditou em todo o território nacional. E quando me interditavam, que faziam, digamos, o Dr. Alceu? Perguntarão vocês: “Nada?” Se não tivesse feito nada eu diria: “Obrigado, irmão.”


Mas fez, e fez o seguinte: colocou-se, com toda a sua ira e toda a sua veemência, ao lado da Polícia e contra meu texto. Em entrevista a O Globo declarou que a Polícia tinha todo o direito, toda a razão etc. etc. Anos antes o mestre também fora a favor da guerra da Itália contra a Abissínia, a favor de Mussolini e contra a Abissínia, a favor do fascismo, sim, a favor do fascismo.
 
Não tive ninguém por mim. Os intelectuais ou não se manifestavam ou me achavam também um caso de polícia. As esquerdas não exalaram um suspiro. Nem o Centro, nem a Direita. Só um Bandeira, um Gilberto Freyre, uma Raquel, um Prudente, um Pompeu, um Santa Rosa e pouquíssimos mais ousaram protestar. O Schmidt lamentava a minha insistência na torpeza. As senhoras, me diziam: “Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo.” E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são como todo mundo: e daí a repulsa que provocavam. Todo mundo não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções. (trecho da crônica “Os que Propõem um Banho de Sangue”).


Nelson Rodrigues nasceu em 23 de agosto de 1912. Trechos de crônicas extraídas do livro O Reacionário: Memórias e confissões (Editora Record, 1977). A foto superior é do túmulo de Nelson Rodrigues no Cemitério São João Batista. Fotos do editor do blog. Postagem originalmente publicada em 2005 e agora "upgradeada" para comemorar o centenário do Nelson.

15.8.12

DICA DE LIVRO: DICIONÁRIO DA HINTERLÂNDIA CARIOCA de Nei Lopes

TEXTOS EXTRAÍDOS DO DICIONÁRIO DA HINTERLÂNDIA CARIOCA, COM FOTOS DO EDITOR DO BLOG (que adorou e recomenda esse delicioso e informativo dicionário sobre o "outro lado do Rio" do grande compositor, cantor e escritor Nei Lopes)




HINTERLÂNDIA, segundo os dicionários, é toda região que fica distante de uma área urbana ou um centro metropolitano. A palavra vem do alemão hinterland e pode ser traduzida pelo nosso popular interior. Pensando em uma cidade moderna, a hinterlândia seria o interior em relação ao seu núcleo principal, dentro dos limites da sua área de influência administrativa — distrito ou município.


Considerado um dos mais representativos escritores brasileiros da crítica social urbana, [Lima Barreto] retratou em seus romances, contos e crônicas a sociedade da época, denunciando o racismo e as injustiças sociais e captando com ironia e amargura, mas sempre magistralmente, a vida carioca. (Trecho do verbete  LIMA BARRETO do Dicionário da Hinterlândia Carioca)

Na nomenclatura antiga, o atual Município do Rio de Janeiro era dividido em três Zonas: a Urbana, que incluía o atual Centro da cidade, a Zona SuI e a região da Tijuca e arredores; a Suburbana, que incluía os bairros reunidos na chamada Zona Norte; e a Rural, depois denominada Zona Oeste, abrangendo toda a metade ocidental do município.


O nome [Inhaúma], que foi dado também a outros lugares e acidentes geográficos em diversos estados brasileiros, é de origem indígena, provindo, segundo Teodoro Sampaio do tupi nhae-um, barro de olaria (de fazer panelas de barro), característica física observada no solo da região. (Verbete INHAÚMA)


Nei Lopes reuniu sob o termo hinterlândia as antigas Zonas Suburbana e Rural, incluindo uma parte do Centro da cidade, que tem antigas e estreitas conexões com a Zona Norte, e excluindo os bairros de Barra de Guaratiba, Barra da Tijuca, Grumari e Recreio dos Bandeirantes, pertencentes à Zona Oeste, mas que, na leitura do autor, têm características diferenciadas em relação aos demais bairros da região.


No ambiente focalizado neste Dicionário, "soltar pipa" é divertimento largamente apreciado por crianças e adultos, que o praticam em ambientes, abertos, inclusive em lajes de construções inacabadas, como nas FAVELAS. (Verbete PIPA)

Fica-se com uma região que abrange 66% da área total do município. Que inclui 63% dos bairros da cidade, nos quais vivem 72,5% da sua população, com uma densidade populacional média de 4.837,27 habitantes por km2, contra 6.270,29 dos restantes 24% da área do município.


Já nas primeiras décadas do século XX, eram famosos os pagodes da região da PIEDADE, como relatados, em 1936, por Alexandre Gonçalves Pinto no livro O choro. Ao longo da obra, o autor repertoria grandes pagodes em casa de músicos e aficcionados, como o pandeirista Luiz Caixeirinho, morador da Piedade. (Verbete PAGODE)

Na linguagem popular, toda a região aqui tratada tende a ser chamada de "subúrbio". Mas esse termo, significando a periferia de uma cidade, tem uma conotação pejorativa em nosso país. Área de moradia acessível a trabalhadores, subempregados e desempregados, historicamente mal servida em termos de serviços e opções de consumo (por ser frente de ocupação de território), o subúrbio é visto como sinônimo de pobreza e, portanto — numa ótica discriminatória —, de inferioridade, atraso (principalmente quanto às modas) e vulgaridade de hábitos. Seus costumes são encarados pelas elites desta forma, e não como o estilo de vida e o saber de outra classe ou outro segmento populacional, com outros valores, raízes e prioridades.


Para este Dicionário, o subúrbio [...] é, na atualidade, apenas um espaço que, pela dificuldade de transportes públicos e pela não conservação das vias, torna-se distante do grande centro econômico e do circuito cultural. E que, por isso, e por também não contar com infraestrutura de serviços públicos eficientes, é desprezada, como opção residencial, pelos mais abastados, e abandonada pelos que ascendem socialmente. (Verbete SUBÚRBIO)

Como é usual em dinâmicas de desigualdade social, então, esses dois terços da área e três quartos da população do município se tornam quase invisíveis, são tratados como um pequeno detalhe incômodo, uma pequena sobrevivência do atraso que pode ser ignorada e, de preferência, eliminada, conforme a cidade se torne mais moderna e cosmopolita.

No final do século XIX, chegam à região os trilhos da ESTRADA DE FERRO DOM PEDRO II, e, no início da centúria seguinte, os da Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil, também conhecida como LINHA AUXILIAR. No início da implantação, os trens a vapor, com vagões de madeira, da E.F. Dom Pedro II, ao chegarem a CASCADURA, tomavam um pequeno desvio, até a chamada "PARADA DO CUNHA", daí retornando. Em 1896, por força do progresso local, a parada foi elevada à condição de estação, recebendo o nome do "Madureira". (Verbete MADUREIRA)

É com esse preconceito que Nei Lopes se recusa a compactuar ao rejeitar o nome "subúrbio" para a área de abrangência deste Dicionário. Fiel à sua postura de luta constante pela valorização da herança dos grupos que formaram a grande massa da população do país, ele busca um termo que podemos considerar virgem de distorções ideológicas em nossa terra. E com ele delimita esse grande caldeirão onde se criam e cunham linguagens, estratégias de sobrevivência, estéticas, sabores e prazeres que se enraízam e crescem, não só nesta cidade, mas em todo o Brasil.

(Texto das orelhas do Dicionário da Hinterlândia Carioca.)


O "Mercadão" [de Madureira] fora destruído inteiramente por dois incêndios sucessivos de grandes proporções. Então, reconstruído e modernizado, foi reinaugurado com o aspecto de um SHOPPING CENTER, com instalações mais confortáveis, conservando, entretanto, as características com que granjeou fama e atratividade, mantendo, por exemplo, a grande concentração de estabelecimentos comerciais criados para atender à demanda dos fiéis da UMBANDA e do CANDOMBLÉ. (Verbete MERCADÃO DE MADUREIRA)

A palavra "botequim" [...] designa o estabelecimento comercial popular onde se servem bebidas, petiscos, tira-gostos e, às vezes, pratos de refeições simples. [...] Fonte de estudos sociológicos e afins, o botequim é, no Rio de Janeiro, notadamente na região focalizada neste livro, uma verdadeira instituição. (Verbete BOTEQUINS)
O Guia da Hinterlândia Carioca pode ser adquirido na simpática Livraria Folha Seca, situada no centro histórico do Rio (Rua do Ouvidor, 37), no site da Livraria da Travessa e em outras livrarias (pesquise no Buscapé para saber onde está mais barato).