"O QUE É O CARNAVAL CARIOCA MESMO COM CHUVA", crônica de MANUEL BANDEIRA publicada em A PROVÍNCIA DE 3 de março de 1929. Ilustrações da REVISTA DA SEMANA.
O mau tempo prejudicou muito os festejos do Carnaval
carioca, o carnaval popular, o das ruas — porque o dos salões, o da gente rica,
esteve mais animado do que nunca. (No Copacabana Palace venderam-se entradas
para 3 mil pessoas e setecentas
mesas bordavam nos sete salões o retângulo central reservado aos dançarinos.
Com a chuva incessante que caía a partir das quatro horas da tarde, não havia
outra coisa a fazer senão entrar num teatro ou num hotel para maxixar ou beber.
E havia às vezes lá dentro coisas curiosas de ver.
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Baile do Copacabana Palace Hotel em foto publicada na Revista da Semana de 8 de março de 1924, segundo ela "a mais brilhante nota do Carnaval deste anno, reunindo em seus vastos e luxuosos salões a grande sociedade brasileira, numa festa admirável de belleza e alegria". |
O hall e bar do
Palace, por exemplo, é um ponto que intermitentemente assume aspectos
divertidos. Ali se juntam os exemplares mais disparatados da sociedade: a
menina de olhos ingênuos, prostitutas, artistas, o chefe de polícia,
cocainômanos e canalhas, políticos. A alegria é provocada por meia dúzia de
rapazes que beberam demais e circulam de copo na mão, cantando, dançando e
dizendo à direita e à esquerda bestialidades engraçadas. Cheira-se o éter à vontade.
Há quem traga lança-perfume só para o seu lenço. E quem o está gastando nos
outros recebe de vez em quando pedidos de prise
[=dose de droga na gíria da época] no lenço estendido. Alguns rapazes
excedem-se e deitam-se num recanto do bar embriagando-se de éter indiferentes a
tudo o mais.
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Baile do Copacabana Palace Hotel. |
Outro espetáculo curioso é o do Teatro Fênix que se
especializou em bailes para homens. Ali as senhoras pagam entrada porque não é
possível distingui-las dos tipos que se fantasiam de mulher com uma perfeição
em que não entra somente a habilidade e a arte, mas o temperamento também. E
há-os de todas as cores, de todas as idades, de todos as classes, nacionais e
estrangeiros. O círculo de mirones [=espectadores] toma com eles liberdades
cruéis que vão do carinho acanalhado ao pontapé de troça. No meio disso
sujeitos maduros, de capote, guarda-chuvas e óculos de tartaruga combinando com
seriedade encontros acenando os dedos para ajustar preços. Aqui e ali, nas
frisas e camarotes, a timidez de um grupo cuidadosamente mascarado trai a
família que veio só para ver. Aquele português porém instalou-se com a sua
gente numa mesa da platéia em plena bagunça. A mulher traz ao colo um menino de
peito e amamenta-o ali mesmo. De um camarote bisnagam-lhe o seio exposto. O
português dana-se, não por causa do seio mas por causa da criança: “Olha a
criança, seu estúpido!” Passa lindo rapaz que a assistência aclama de miss Brasil. E João, que está comigo,
confessa desesperado que há nos olhos da falsa mulher qualquer coisa que ele
nunca encontrou nas mulheres de fato.
Como festa popular a segunda-feira, consagrada aos ranchos,
é o dia mais característico. Esses ranchos resultaram da evolução dos antigos
cordões, nenhum dos quais substitui na forma e organização primitivas. Eram
blocos bem mais reduzidos que os ranchos atuais. Vinha à frente do estandarte
um grupo de índios, caprichosamente fantasiados, executando umas danças de
guerra que serviam para abrir caminho entre o povo; seguiam-se ao pé do
estandarte os “velhos”, de passo grotesco, com as enormes cabeças de papelão
oscilando em longos bastões; depois duas alas de sócios vistosamente trajados,
tangendo as chulas [=canto seresteiro] no couro teso dos pandeiros; e atrás
finalmente a canalha que não teve dinheiro para a fantasia, os amigos do clube
ou simples curiosos.
O Ameno Resedá, o Flor de Abacate e outros grupos mais ricos
começaram, de uns dez anos para cá, a aumentar e complicar o cortejo. Hoje são
sociedades para julgamento de cujos préstitos o Jornal do Brasil, instituidor do Dia
dos Ranchos, reúne no júri profissionais de cenografia, dança, música, e até de
bordado — porque há um prêmio de estandarte que requer as luzes de um artista
bordador. Os outros prêmios são de harmonia e enredo, fora os títulos de campeão
e vice-campeão.
Nos ranchos há batedores a cavalo, clarins, comissões de
honra precedendo o “enredo”, atrás do qual vem uma verdadeira banda
instrumental e coros obrigados a engraçados regentes que andam de um lado para
o outro atentos à harmonia do conjunto. A iluminação do cortejo, que a
princípio era a querosene ou acetileno, é hoje feita de maneira engenhosa. O
rancho inteiro fica envolvido num cordão de fio elétrico ligado a baterias
dispostas num caminhão que fecha o préstito. De espaço a espaço saem ramais
para as varas dos candelabros de quatro ou cinco lâmpadas elétricas, carregados
a mão. Esse cordão ao mesmo tempo isola o rancho da massa popular. O efeito é
muito característico.
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Rancho carnavalesco Caprichosos da Estopa na noite de segunda-feira na Avenida Rio Branco. Revista da Semana de 25 de fevereiro de 1925. |
Para dar uma ideia do que são os “enredos” basta citar dois
deste ano. Os Caprichosos da Estopa [foto acima] apresentavam a história de Salomé “baseada
na imortal obra do grande escritor inglês Oscar Wilde”. Os Parasitas de Ramos [foto abaixo] buscaram inspiração na história do Brasil revivendo cenas de costumes do nosso
passado: os presos carregando água, a sinhá transportada na cadeirinha, o negro
apanhando no pelourinho, os anjinhos das procissões… As personagens de todas
essas cenas eram criancinhas, o que acrescia ainda mais a deliciosa ingenuidade
do cortejo.
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"Os ranchos são a nota decorativa da alegria carioca, o carnaval dos pequenos, a kermesse dos humildes." Rancho Parasitas de Ramos na Revista da Semana de 13 de fevereiro de 1932. |
É na praça Onze que esses ranchos são mais apreciados. Para
lá aflui o povinho miúdo, a mulataria que dá cor e pitoresco ao carnaval famoso
da praça. Ali há duas coisas gostosíssimas de ver: os “sambinhas” e as
“batucadas”.
Os primeiros são rodas de baianas pegadas de colares de
contas doiradas revezando-se em solos de samba. É impressionante espetáculo
quando alguma boa velha cai na roda dançando de olhos fechados, religiosamente,
como as macumbas.
As “batucadas” improvisam-se e desmancham-se logo porque a
polícia dá-lhes caça. Consistem numa dança de capoeiragem ao som do batuque.
Formado um largo quadrado ou retângulo o pessoal da rapa [=rasteira] entra a
saltar, tentando derrubar uns aos outros ou aos que fecham o quadrado. De vez
em quando um tombo de rasteira diverte os espectadores. Mas o prazer é
perigoso: toda aquela gente tem cara inquietante e é de fato a pior malandragem
da cidade. Volta e meia a brincadeira degenera em conflito e acaba em
navalhadas.
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Arlequim, ilustração de M. Constantino na Revista da Semana de 9 de fevereiro de 1929 |
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Baile à Fantasia no Tijuca Tênis Clube na Revista da Semana de 9 de fevereiro de 1929 |