AMANHECENDO
Cedo cedinho despertei. Escuro ainda, olhei para o relógio – horário de verão – cinco e meia da madrugada. Boa noite de sono, apesar das poucas horas. Bem humorado levantei, decidindo por um passeio nas ruas. A pé. Aproveitar das vantagens de morar sozinho, sem ter que dar satisfação a ninguém. Logo me veio à cabeça a violência que impera na cidade e os riscos da minha aventura. Resolvi arriscar. De saída, vi de perto os feirantes arrumando suas barracas, reconhecia alguns deles. Em seguida, peguei o caminho do mar: nas pedras encantei-me com os pescadores apostando nas futuras presas. Alegres, homenageando o oceano, a terra, os sonhos. A noite se despedia, cedendo lugar à nova jornada que, triunfante, clareava. Cachorros solitários abanando os rabos, adolescentes voltando das farras, gente (de todas idades) cuidando da forma. Sem falar nos inúmeros bêbados vagando pelas calçadas. Alguns falando sozinhos, outros cambaleando.
Navio, ao longe, dá margem às recordações do meu tempo de criança. Tempos de muita brincadeira, tempos ingênuos, tempos tristes. De brincar de pique esconde, de cabra cega, de mamãe posso ir. Cantigas de roda, primeiro beijo, malícia entrando no circuito. Como não quer nada. Êta malícia gostosa – provocando arrepios no corpo e na alma. Submarinos: imperdível cenário de nossas imaginações. Nada melhor do que as lembranças!
E a violência? Desta vez nem a percebi. Cego?
Aos poucos, pessoas nas ruas. O trabalho, a escola, a vida. Portadoras, quem sabe, de um emblema invisível chamado Esperança. Que as leva a prosseguir viagem.
"Sem a qual a vida é nada, sem a qual se quer morrer."
Amanheceu no meu caro e fiel bairro - Leme.
ANOITECENDO
Contemplando o céu – horário de verão – fascinado com o belíssimo quadro que me ofuscava os olhos. Retratá-lo? Impossível. Enquanto o sol se despedia, uma faixa de nuvem clara anunciava a noite chegando. Esplêndido único raro momento! Cenário tranquilo. Crianças brincando, amantes se encontrando, gente simples caminhando. Os idosos, satisfeitos, sorriam numa terra de ninguém. Confuso e esperançoso nosso país, imerso em tão formosa ilha, parecia esquecer-se dos inúmeros problemas. Ilha da fantasia e da realidade.
Pés macios, firmes, poderosos deslizavam numa direção. Mão única. Voltei atrás no tempo, rememorando violentas paixões, amores ternos, eternas amizades. Desejava fotografar cada segundo, perpetuando sonhos fecundos e viáveis. Os inviáveis, maioria, fica para outra vez. Barulho do mar, quase sem ondas – melodia em meus passos. Profana canção. Areias brancas a embalar-me no colo. Feito criança. Lembranças e mais lembranças embelezando minha andança. Andança promissora; olhei de novo para cima – nada se transformara. Faixa de nuvem cristalina no mesmo lugar. Alívio...
Segui até o final. Final de quê? Pouco importa. Revesti-me de coragem, decidindo voltar. Sabia de cor e salteado que na vida tudo tem um fim: triste, fugaz, porém sábio acalanto. Fotografei no coração inesquecível passeio. Noite mal começara. Ao retornar, procurei o quadro perfeito em seus encantos. Desaparecera. Céu escuro por completo, apenas uma tímida estrela ameaçando despontar.
Anoiteceu.
E com a noite as eternas ondas do Leme! Até amanhã.
Saiba mais sobre Ana Lia Vianna visitando seu blog "Prosa Hoje" em http://prosahoje.blogspot.com/