ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

4.3.13

A CIDADE SUSPENSA


Texto de J. P. Cuenca publicado originalmente no encarte "Aniversário do Rio" de O Globo de 1o de março de 2013 e reproduzido com a gentil permissão do autor.
Vídeo (acima) documentando a demolição de três casas em Copacabana e fotos (abaixo) de ruínas e prédios dilapidados no Rio do editor do blog.


A primeira lembrança que tenho da vida e do Rio é a dos meus pés de criança se equilibrando sobre uma casa demolida. Vejo pedras e tijolos entre o emaranhado de canos inúteis, alcanço uma pia branca de cabeça pra baixo — seu apoio comprido de louça desponta entre as ruínas como uma garça que estica o pescoço num lamaçal.

Quando encontro no chão o adesivo colado na janela do meu quarto, finalmente reconheço a casa onde vivi. O plástico, meu rosebud, diz em letras garrafais: "FIORUCCI".

Isso foi em 82 ou 83. A Vila Palácio ficava na Rua Silveira Martins, no Catete. Da nossa casa, a única em que meus pais viveram juntos, só lembro das ruínas. Ela foi posta abaixo para dar lugar a um prédio cinza de dois blocos e onze andares. Em alguns anos, quando já estivermos todos mortos, a Vila Palácio do Catete não fará parte da memória de ninguém. Como tantas outras, ficará presa na fotografia.


Outro endereço simbólico da minha infância, um prédio de três andares sobre o Luna Bar, também foi demolido para dar espaço a um retângulo negro de vidro no Leblon. Nessa gangorra imobiliária, até hoje tive 13 diferentes endereços no Rio. Sou um privilegiado: ao contrário dos cariocas que encontraram na sua porta as marcas do Príncipe Regente em 1808 ou da Secretaria municipal de Habitação em 2012, nunca fui expulso de forma humilhante e minha propriedade nunca foi criminosamente confiscada pelo Estado.

Caminho pelo Catete e penso na palavra pentimento, que em italiano significa arrependimento, mas que tem outra acepção em artes plásticas. Em um quadro, o pentimento é formado por esboços e versões anteriores da obra, muitas vezes detectadas em exames de raio-x. É um registro da mudança de ideia do pintor, que resolve trocar um braço de posição, apagar um personagem, ou até mudar completamente a pintura.


O nosso pentimento, que infelizmente não surge das mãos de um artista, é esse conjunto de casas, prédios, bares e cinemas fantasmas que enxergo por toda a parte. Não estou só: o poeta Manuel Bandeira escreveu em 1942 sobre sua casa demolida no Beco do Rato: "Vão demolir esta casa./ Mas meu quarto vai ficar, / Não como forma imperfeita / Neste mundo de aparências: / Vai ficar na eternidade, / Com seus livros, com seus quadros, / Intacto, suspenso no ar!" 

A experiência dessa cidade, da fundação ao seu 448º aniversário, é baseada nesse desprendimento radical ao patrimônio e na nostalgia que ele nos causa. Aqui, o tempo é sempre hoje. No Rio, a história acaba e recomeça todos os dias — muitas vezes sobre o entulho de uma casa demolida.








ANEXO: Documentário de Francisco Daudt (editado por Tita Berredo) sobre as casas demolidas no Cosme Velho.