ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

9.5.19

SÃO PAULO, O RESUMO DO MUNDO, de JANE DARCKÊ AVELAR

Paulistana de Perdizes, Jane Darckê Avelar optou por morar no Rio por amor a esta cidade-irmã. Texto escrito especialmente para este blog.

"uma cidade imensa e assustadora"

O ano? Começo do século XX... Foi aí que tudo começou. Nossa semente, que veio nos corpos dos que um dia iriam se encontrar e se unir, sementes da terra e do além-mar, dormia tranquila à luz dos lampiões da Av. São João. Uma coruja fortuita olhava por entre as chaminés das fábricas, antevendo lojas se abrindo e o guinchar dos bondes, previa o sol, que não demoraria a dissipar o nevoeiro das frias madrugadas. Se ela tivesse uma bola de cristal, veria através dela, o futuro: uma cidade imensa e assustadora, onde tudo seria possível e ao mesmo tempo lhe pareceria impossível haver um lugar assim. Mas era só uma coruja. Uuuu... Uuuu... bateu asas, voou.



Jazigo no Cemitério da Consolação: "Pousou num cemitério"

Pousou num cemitério, onde a vida parecia ainda mais obscura e misteriosa. Sim, vida. Ali repousavam os corpos do que prepararam o caminho para as futuras gerações, dos que sonharam, ousaram, realizaram, se tornaram quase imortais, e por isso viviam ainda, nos patrimônios construídos, nos bustos de bronze aqui e ali, na memória da geração anterior. Uuu... Uuu... Voou de novo...


E pousou no alto do sobrado. Ah, o sobrado... suas telhas tão acolhedoras, quanto a própria cidade parecia ser aos humanos que já se agitavam, se preparavam para mais um dia... dormir não era para os humanos de São Paulo. Dormir era um luxo supremo, que servia apenas para descansar o corpo, porque a alma, ah a alma, voava ainda mais alto que a coruja.

Ouviu o rodar de uma carroça de leite e viu os pássaros acordando lentamente, e um pardal lhe avisou que o sol não tardaria. E se recolheu. 

Estátua do Pequeno Jornaleiro na Rua Sete de Setembro, Rio de Janeiro

Então o pardal passou voando perto do garoto de calças curtas que andava apressado, para pegar os primeiros jornais e levá-los até a Estação da Luz, para vendê-los. Anunciaria as manchetes do jornal do dia, como quem anuncia a evolução dos tempos. O menino jornaleiro e o pardal olhavam as muitas pessoas que passavam apressadas, sem notarem que a flor se abriu, as frutas estão quase maduras na árvore da praça, e... Oh! Um bonde atropelou um transeunte! Que desastre! Esta cidade está caótica! 

Mas mal sabiam que muitos mais estavam morrendo nas trincheiras do Vale do Paraíba, em nome de São Paulo, em nome da Constituição.


O menino jornaleiro, de repente, se viu diante do prelo de um jornal que levava o nome da cidade e do estado, não mais de calças curtas, mas de avental, manuseando os jornais, vendo o avanço de Hitler sobre a Europa, e pagando uma fortuna por um pão para levar para sua casa, na Bela Vista. Tudo controlado por racionamento, um futuro tão incerto. Tempos sombrios... Se ele voltasse a ser um menino, pensava, certamente teria medo da cidade, tão moderna, se enchendo de arranha-céus medonhos e temíveis, pessoas que nem dão mais um bom dia ao que passa ao seu lado, que não têm tempo a perder com sentimentalismos e trivialidades. Então ele se refugiava no circo, nos cinemas, nos campos de futebol. E eis que já quase se aposentando, rodando seus últimos jornais da manhã, lia a estranha notícia da mudança da capital do país. Será que São Paulo continuará a crescer? – pensou. Será que meus filhos e netos verão dias de progresso, como nos filmes americanos e seu way of life, ou saberão o que são as chagas vermelhas que a foice e o martelo provocam? Seremos homogeneizados pelo capitalismo, ou massacrados pelo comunismo? E São Paulo foi tomado pelos militares, que chegavam em caminhões, muitos mais do que seria de se imaginar. 

Bombas estavam sendo lançadas nas ruas, cavalaria, prisões, professores perseguidos, estudantes desaparecidos, trabalhadores em greve, São Paulo parecia estar se acabando. Sim, era o fim da cidade em que nasceu.

Mas São Paulo é como a Fênix. Rapidamente começaram a chegar famílias do norte, buracos e mais buracos pela cidade, mais caos, mais arranha-céus, mais carros, mais gente, mais casas, mais ônibus (ué! cadê os bondes?), mais comércio, mais indústrias, mais e mais e mais. Metrô! Shopping! Refugiados! Anistia! Eleições Diretas...

"meditavam nos templos budistas"

O menino dos jornais era um senhor idoso, e as memórias se misturavam dentro dele, como a história de São Paulo se misturava intrinsecamente à memória do país, enquanto tomava um café, recostado na poltrona do terraço, olhando o céu cor de rosa, numa tarde de outono... Seus filhos e netos desfrutavam de vários países, viajavam pelo mundo sem sair do lugar... Moravam na Itália da Bela vista, iam à Espanha do Cambuci, frequentavam as missas portuguesas da Vila Maria, compravam roupas ocidentais na Israel do Bom Retiro, se deliciavam e compravam variedades no Oriente Médio do Parque Dom Pedro II, meditavam nos templos budistas no Japão da Liberdade, e tantas outras coisas de tantos outros países, dentro da cidade, que fazia o que podia, através de um esforço comunitário, para oferecer o de melhor, para todos, sem distinção. Uma cidade que “amanhecia trabalhando, que não parava de crescer, como dizia a canção”, e que, ao mesmo tempo, sabia o que é “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como dizia outra canção. 

Fechou os olhos, e o menino de calças curtas, com os jornais debaixo do braço, saiu feliz para as ruas de paralelepípedos, tomando cuidado com os bondes, gritando as manchetes do dia... 


— Vô, preciso fazer uma crônica de São Paulo, para a faculdade... você me ajuda?

— Eu nasci aqui. Eu amo São Paulo. Eu vi esta cidade crescer, e como era linda... como é linda... como me orgulho de dizer que sou paulistano...

Cristo

— Mas vô, como o senhor pode amar este caos, este barulho e esta poluição? Essa gente que nem dá bom dia, que pára com qualquer chuvinha, com qualquer acidente? O senhor não pode amar uma cidade que só tem fila e mais fila, que mói a gente de tanto estresse, que é tudo tão caro, que não tem mar! Não tem Cristo, nem Bondinho, nem Maracanã... São Paulo é o túmulo do Samba, já disse Vinicius de Moraes e ainda por cima, o Carnaval não se compara ao meu Rio querido!

— Mas eu amo... sabe, meu bem, esta cidade é um caleidoscópio. A gente olha, tá de um jeito. Olha de novo, tudo mudou. Esse é o encanto dela. E as cores, as formas, o cheiro, uma força mística e terrena... uma metamorfose sem fim... até o clima mudou!

— Me conta, vô... como era, quando o senhor era um menino...

— Eu morava no Brás. E vendia jornais. E pelos jornais, acompanhei tudo que de melhor e de pior aconteceu nesta cidade. E vivi o bastante para estar aqui, agora, te contando estas coisas... Foi assim: No começo, foi Anchieta, os Bandeirantes e a gente nem sabia o que era dinheiro. Tudo era na base da troca. Daqui partiam as expedições para o interior dos sertões intocados. A Igreja Católica mandava em tudo, sabia de tudo, registrava tudo o que podia. 

— Mas o senhor nem era nascido nessa época!

Hospedaria dos Imigrantes em 1920. Hoje abriga o Museu da Imigração. 

— Ué! Você não quer falar de São Paulo, de como nós somos e porque somos? Somos quatrocentões dos brasões enferrujados! Somos migrantes, emigrantes e imigrantes foragidos, somos endinheirados que investimos nesta Terra Nova, somos escravos libertos, somos o resumo do mundo. O Resumo do mundo...

— Vô... que bom título vou dar à minha crônica... São Paulo, o Resumo do mundo!

"mais casas"

29.4.19

SÃO PAULO (POEMA) de RIBEIRO COUTO

Publicado originalmente na edição especial da revista O Cruzeiro, de 2 de abril de 1938, dedicada a São Paulo



A neblina das manhãs de inverno
– ó São Paulo enorme, ó São Paulo de hoje, ó
São Paulo ameaçador! –
A neblina das manhãs de inverno
amortece um pouco o orgulho triunfante das
tuas chaminés.
A neblina esconde o contorno das grandes fábricas
ao longe,
perdidas na planície, entre o chato casario
proletário.
E tudo cor de barro novo, como se fosse manchado
de sangue!

Nas ruas do centro agita-se a pressa do comércio.

Nos bairros burgueses, no entanto, há o silêncio.
As alamedas adormecem sob o silêncio.
Os jardins adormecem sob o silêncio.

19.4.19

QUERO MORRER NO BRASIL de ANTÓNIO DE ALCÂNTARA MACHADO

TEXTO INÉDITO DURANTE A VIDA DO AUTOR, PUBLICADO NA EDIÇÃO ESPECIAL DA REVISTA O CRUZEIRO, DE 2 DE ABRIL DE 1938, DEDICADA A SÃO PAULO



António de Alcântara Machado é o escritor quintessencialmente paulistano. Mais de uma tese de mestrado foi apresentada associando-o à cidade da garoa. Por exemplo, Isabel dos Santos Silva, em sua dissertação “Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado: uma narrativa-registro da cidade de São Paulo”, caracteriza-o como “um prosador da cidade com alto grau de paulistanidade. De fato, ele ambienta a maior parte de sua narrativa na cidade e expressa de maneira confessional o seu sentimento por São Paulo.” Assim sendo, ao iniciar minha nova vida paulistana, nada mais lógico que eu me debruçar sobre sua obra de ficção (reunida no livro Novelas Paulistanas), infelizmente curta, já que sua vida foi tolhida em plena ascensão.


António de Alcântara Machado, apesar da breve existência, deixou sua marca na literatura de viagem, na crítica teatral, no movimento modernista, na Revolução Constitucionalista (como pioneiro da propaganda política pelo rádio), na própria política. Em Brás, Bexiga e Barra Funda, traz para a literatura brasileira os imigrantes e filhos de imigrantes italianos que viviam nesses bairros, dando-lhes “voz e vez”, como observa Isabel dos Santos Silva.

Em Laranja da China apresenta uma série de figuras humanas com designativos alusivos a grandes personalidades da história (“O Filósofo Platão”, “O Revoltado Robespierre”), mas que não passam de gente comum, do cotidiano (Senhor Platão Soares, Senhor Natanael Robespierre dos Anjos). Nessa obra mostra-se um mestre da técnica do “tempo retardado”, que é uma espécie de “câmera lenta” da literatura, em que o autor detém a passagem do tempo e descreve os mínimos detalhes. 

O texto a seguir, escrito na Europa em 1929, permaneceu inédito durante a vida do autor. Uma reflexão altamente filosófica sobre a “indesejada das gentes”. Intitulado “Quero Morrer no Brasil” foi oferecido pelo pai do autor para ser publicado na edição especial da revista O Cruzeiro de 2 de abril de 1938 dedicada a São Paulo.



Não quero morrer na Europa. Quero ir morrer no Brasil, na Cidade de São Paulo, numa manhã bem quente. Sobretudo quero morrer de chapéu na cabeça. Quem morre de chapéu na cabeça mostra que não tem respeito medroso pela morte. É camarada dela. O contínuo Serafim costuma dizer com muita admiração na porta do palácio presidencial: “este deve ser grosso, entra de chapéu na cabeça”. Os que, subindo as escadas, já vão tirando o chapéu, esses são pedintes, são subalternos, vão ser desiludidos ou humilhados.

Eu não. Eu, na manhã bem quente, me aprontarei, sairei de casa andando firme, desejarei bom dia aos conhecidos da rua Ana Cintra, entrarei no largo de Santa Cecília e, em frente da igreja, no meio do largo, subirei no refúgio [=pequeno passeio para pedestres, no meio de ruas ou praças movimentadas - Houaiss], encostando-me no lampião esgalhado. Nos braços do lampião verde eu serei amparado quando chegar o momento. Como já disse: subirei no refúgio. Trinta centímetros sobre o nível dos paralelepípedos. Porém, nesse instante, trinta centímetros serão uma altura vertiginosa. Eu me sentirei no alto, mas muito no alto. São Paulo então não abandonará seu filho. Com cheiro de gasolina, com fumaça de fábrica, com barulho de bondes, com barulhos de carros, carroças e automóveis, com barulho de vozes, com cheiro de gente, com latidos, cantos, pipilos e assobios, com barulho de fotógrafo [sic na publicação em O Cruzeiro, embora em reproduções posteriores conste "fonógrafo"], com barulho de rádio, campainhas, buzinadas, com cheiro de feiras, com cheiro de quitandas, todos os cheiros, e também barulhos da vida. São Paulo encherá o silêncio da morte. Porque não se deve esperar a morte deitado na cama, de cara amarela, de olhos fechados, entre remédios e lágrimas. Não é visita de médico. A morte não gosta da morte. A morte só gosta da vida. A morte chega no momento justo em que o homem vai perder a vida para não deixar o homem morrer: para dar vida eterna para ele. A morte é que imortaliza. Ela salva o homem que o mundo quer matar. Livra o homem do mundo. Isso é insincero. Eu quero bem ao mundo. Porém, quero mais à morte porque eu não conheço nada dela e por isso posso esperar tudo dela. Quero passar de um amor menor para um amor maior e sou humano enfeitando o que virá com bobagens, lugares-comuns. E não há maneira de caminhar sem dar as costas ao que se deixa. A lembrança do passado não existe porque passado lembrado é passado presente. Não é passado. Logo, e em rigor, este não existe. Lembrado, é presente e se liga ao futuro. Esquecido não é nada. Dos inumeráveis que eu fui sucessiva e simultaneamente, coisa nenhuma resta. No único que eu sou agora (formado por eles) eles desapareceram. E eu sou a fusão depurada de todos para durar na morte, entrar e permanecer uno na morte.

A gente cai na vida que nem semente na sementeira: para ganhar forma. Desenvolvida, é transportada. Vai florir em outro lugar. Por isso é que se põem flores nos caixões e nos túmulos. É uma precaução piedosa: poderão servir para o defunto se os botões dele não vingarem. Casaca emprestada para o amigo figurar no baile. Dizem para o defunto: – “Em todo caso, leve estas para garantia.”

Para o amigo figurar no baile. Baile mesmo. Há um momento em que o homem enxerga dentro da morte como o convidado costuma espiar o salão antes de entrar. Às vezes espia e não entra: – o traje é de rigor. Volta para casa. Vai se preparar melhor. São os arrependimentos de última hora. Umas palavras, nem isso, um pensamento desmentido, corrigindo uma vida inteira, porque o homem verificou que não estava bem preparado para entrar na morte. Preparara-se depressa para não perder o baile da morte, sem fazer feio nele. Eu entrarei de chapéu na cabeça. Direi: – Ó, não sabia que havia festa. E o meu desembaraço será tão grande que ninguém atentará na minha deselegância.

Centro paulistano (Viaduto Santa Ifigênia) na década de 1920. Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

4.4.19

UM CARIOCA EM SÃO PAULO: PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Anhangabaú

Depois de uma obra que deveria ter demorado dois meses e acabou se arrastando por sete; depois de duas estadias preliminares breves na casa nova a fim de me acostumar, no Natal e Carnaval; depois de fazer a triagem do que levar agora para Sampa, dentre um mar de livros, discos e outros objetos (a gente vai acumulando coisas no decorrer da vida, embora da vida nada se leve); depois de selecionar uma empresa de mudança que fosse ao mesmo tempo confiável (pelas avaliações na Internet) e não excessivamente cara (escolhemos a Pena Verde, que prestou um excelente serviço e entregou tudo intacto); depois de enfrentar a bagunça da rodoviária, onde o ônibus da Kaiçara que deveria sair às 15 horas não deu as caras e tive que pedir o dinheiro de volta e comprar passagem de outra companhia (1001); depois de encarar um baita engarrafamento na saída do Rio e o medo de chegar em Sampa depois do encerramento do metrô; e após dois dias abrindo os caixotes da mudança e arrumando coisa por coisa; depois de tudo isto, eis que começamos a vida nova no nosso lar doce lar paulistano.

Céu paulistano ao entardecer

O leitor dessas minhas mal traçadas linhas talvez se pergunte como é que um carioca da gema, com seis décadas e meia (e mais uns quebrados) de carioquice, editor do melhor blog sobre a Cidade Maravilhosa, consegue trocar uma urbe famosa pela beleza natural, alegria de viver (e altos níveis de criminalidade) por outra tão diametralmente oposta, onde em certos pontos você vê prédios a 360 graus, na frente das casas em vez de jardins você tem garagens e a praia mais próxima está a 76 quilômetros de distância? Na medida em que acompanhar minhas postagens paulistanas no blog você vai compreender aquilo que parece incompreensível.

"Minhocão" na Estação Sé do metrô

Antes de mais nada, para entender Sampa é preciso conhecer sua história. Planejo comprar e ler os elogiados livros do Roberto Pompeu de Toledo a respeito. Por ora sou socorrido pela amiga Jane Darckê Avelar que me proporcionou esta síntese:

Leve em conta que São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. A Vila de Piratiningá (os índios falavam assim, oxítona). E então começaram as grandes chegadas de imigrantes, de vários lugares, credos e etnias. Italianos, espanhóis, mais portugueses, Árabes, turcos, judeus, japoneses, gregos, e mais alguns. Nos anos 60, começaram a chegar em massa, nordestinos e novos africanos. E nos anos 70, chineses e coreanos. Se esqueci algum grupo, perdão!

Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.

Zona Leste

Aos curiosos que querem saber onde estou, saibam que troquei o charmoso bairro carioca de Copacabana, internacionalmente famoso, por um bairro menos badalado, Jardim Artur Alvim, numa zona considerada menos nobre, Zona Leste, de uma das maiores megalópoles da face da Terra.

Um parêntese: conquanto eu vivesse uma vida inteira no Rio, São Paulo não é uma cidade estranha para mim. Minha vovó morava aqui, minha titia morava aqui, desde criança eu vinha para cá, passava férias aqui. Quando trabalhei na extinta Rede Ferroviária passei um mês implantando um sistema aqui. Alguns anos atrás fiz uma viagem turística para cá que está relatada no meu blog Sopa no Mel. Meu romance Passaporte para o Paraíso lancei também aqui. Tenho um irmão morando aqui. Tenho amigos aqui, um deles da pré-adolescência. São Paulo não é uma cidade totalmente estranha para mim.

Ademais, aqui moro numa casa sossegada com um quintal onde, como no final famoso da novela Cândido de Voltaire, vou cultivando o meu jardim (literalmente). Até coloquei uma “cadeira de praia” no quintal para pegar sol e vou aprender a preparar churrasquinhos naquelas churrasqueiras de “pobre” que você vê pelas ruas cariocas (aliás, domingo, vi uma delas numa rua aqui do bairro).

Grafite

Na primeira semana paulistana fiz o reconhecimento da área no entorno da minha casinha. No Rio eu tinha o  costume (por recomendação médica) de realizar uma caminhada diária de uma hora, normalmente em Copacabana. Aqui, com apoio logístico do Google Maps, descobri uma “mancha verde” perto de minha casa num altinho de morro com um condomínio de prédios muito bem ajardinado, uma pracinha em aclive com escadaria e vista para a paisagem paulistana... e como paulistano só anda de carro, pouca gente na rua, trechos até ermos!

Um desafio da adaptação é descobrir onde comprar as coisas. Em Copacabana eu tinha todo o comércio do mundo relativamente perto de meu apê. Aqui, um bairro mais popular, já não conto com essa fartura de lojas, mas explorando, procurando, consultando minha esposa que é daqui, vou descobrindo onde fazer as compras. Tem a feira semanal nas quintas que já é uma mão na roda, e onde vendem um pastel e caldo de cana com limão que já faz valer a pena ir lá. Tem um Carrefour enorme em Guilhermina-Esperança. Tem o Negreiros a um quilômetro daqui. Tem o Assaí, atacadista, com preços ultracamaradas, a uns dois quilômetros daqui. E no alto do meu morrinho de estimação tem um Mini Extra pequeno mas jeitoso.

São Paulo histórico

Outro problema de adaptação é a reciclagem. Em Copacabana tínhamos a coleta seletiva do lixo reciclável. Aqui na Zona Leste não temos, mas não consigo conceber a ideia de que minhas latinhas e garrafas de cerveja e papelões e plásticos vão parar num reles lixão em meio à sujeirada orgânica. Descobri também naquele meu querido morrinho um ecoponto (Ecoponto São Nicolau, consta do Google Maps) que recolhe recicláveis. Regularmente no meu passeio diário levo lá minhas latinhas, garrafas etc.

Grade

Agora vou contar uma historinha. No Supermercado Negreiros, onde fui comprar uns hortifrutis, chego no caixa com o carrinho de compras repleto de berinjela, abobrinha, abóbora, aipim etc., e uma gentil freguesa avisa que é preciso pesar primeiro. Vou lá eu pesar a mercadoria. É preciso ensacar item por item, cada coisinha individual, informa o funcionário. Um desperdício de sacos plásticos que, se não forem devidamente reciclados, vão emporcalhar a natureza. Na hora de pesar o aipim, o funcionário, em dúvida, pergunta:
– É cará?
– Não, aipim.
Ele me olha com uma cara espantada. Repito:
– Aipim.
Ele examina melhor a tuberosa e enfim diagnostica:
– Mandioca!
Observo que no Rio a gente chama aquilo de aipim (no nordeste é macaxeira). Ao que ele me pergunta:
– O senhor é do Rio? Lá é muito violento!
Esta é a fama que temos. E ele me conta que, certa vez, ainda rapaz, foi em excursão para um encontro evangélico no Maracanã. Mas em vez de ir ao evento, “fugiu” para conhecer a cidade. Foi até a Praia do Flamengo. Perguntei:
– E Copacabana, não foi?
– O dinheiro não deu.
Sugeri que, “agora que você tem o dinheiro”, voltasse ao Rio.
– Agora é que não tenho dinheiro mesmo.

"uma pracinha em aclive com escadaria e vista para a paisagem paulistana"

Embora a imagem que se tem daqui via noticiários seja de um perpétuo engarrafamento (assim como a imagem que se tem do Rio é de assaltos seriais), observei que, o fato é que, fora do pico (rush), o transporte público funciona otimamente. Ao contrário do Rio, onde os ônibus param numa infinidade de pontos e sinais de trânsito ou mesmo fora do ponto e no BRT você viaja como sardinhas em lata (parece que os empresários fazem de propósito para maximizar o lucro minimizando o conforto), aqui em Sampa ônibus articulados, amplos, com ar-condicionado, percorrem distâncias enormes em corredores especiais com incrível eficiência. E afora a hora do rush eles não lotam, você viaja sentado. Enquanto no Rio as linhas de ônibus se sobrepõem às de metrô (você pode ir de Copa à Tijuca ou à Barra de metrô ou de ônibus), em Sampa existe uma racionalidade: as linhas de ônibus complementam as do metrô, atendendo as áreas não cobertas pela malha metroviária ou ferroviária.

No metrô (Linha Vermelha que vai para meu bairro)

Contribui para a mobilidade (e isso a mídia não mostra, pois só foca os engarrafamentos do rush) o fato de Sampa ter crescido realmente a partir do século XX e com isso terem sido planejados e rasgados amplos corredores de avenidas interligando praticamente a cidade inteira.

Também você consegue carregar seu cartão de transporte facilmente, existe fartura de maquininhas nas estações de metrô, não é como no Rio que as máquinas são parcas e sempre com grandes filas.

A topografia aqui é ondulada, você sobe, desce, sobe desce, por isso o projeto de ciclovias do Haddad gorou. E nas subidas, as calçadas não acompanham o aclive da rua. São escalonadas (em escadinha), por causa das saídas das garagens. Não acostumado com essa irregularidade, no primeiro dia dei uma topada num desses degraus e quase me espatifei. O Rio, por outro lado, é plano, mas pontilhado de montanhas.

O aprazível bairro Chácara Santo Antônio, verdadeiro jardim botânico

Existem bairros nobres que são verdadeiros jardins botânicos, tamanha a profusão de árvores, arbustos, flores, trepadeiras, não só aquelas plantadas pela Prefeitura, mas também pelos proprietários nas calçadas em frente aos seus casarões. Apaixonamo-nos pela Chácara São João, onde fomos resolver um problema na NET. Com bairros aprazíveis assim quem é que precisa de praia? (Mas o paulistano parece que precisa, porque nos feriadões enfrenta engarrafamentos colossais para chegar ao litoral.)

Algumas ruas paulistanas têm nomes poéticos como Rua Borboletas Psicodélicas (não é delírio, pode procurar no Google Maps), Rua Caçada Real, Rua Sonho Gaúcho (por onde passo para fazer compras no Assaí), Rua Verbo Divino, Rua Esperantina etc. Pelo que li, certa vez a Prefeitura, ante o desafio de nomear um sem-número de ruas, formou uma comissão para criar um banco de nomes, missão essa cumprida com real criatividade. Achei até uma rua com o nome do matemático francês que morreu jovem num duelo, cuja história meu falecido amigo matematófilo Márcio Steinbruch adorava contar: Evariste Galois.

Neocolonial em Sampa: Escola Pueri Domus

O atendimento nas lojas aqui dá de dez a zero no carioca: numa lanchonete, numa loja, você é atendido com cortesia. No Rio depara com frequência com atendentes de cara amarrada ou em pleno papo, e você tem que esperar que terminem a importante conversa para ser atendido. Não sei se é treinamento, se é cultura, mas aqui a gente se sente um pouco mais perto do Primeiro Mundo. Basta dizer que ninguém entra no ônibus pela porta de saída sem pagar, nem tem assalto a mão armada em ônibus.

No pico o metrô superlota, mas em certas estações do Centro (Sé, República) chegam regularmente metrôs vazios, evitando aquela empurração generalizada da linha 2 do metrô carioca.

Uma diferença a favor de Sampa é que aqui, embora alguns dias possam ser quente, à noite a temperatura cai. No verão carioca são trinta graus dentro de casa dia e noite.

Um ponto a favor dos cariocas é que aqui os logradouros públicos são mais emporcalhados: não sei se o carioca é mais limpo ou a Comlurb é mais eficiente do que sua congênere paulistana. Na Zona Leste vejo muito cocô de cachorro nas calçadas. No Rio, pelo menos em Copacabana, os donos recolhem os dejetos de seus cãezinhos.

Assim vão transcorrendo minhas plácidas primeiras semanas paulistanas, cidade com bairros étnicos, boa gastronomia, profusas atrações culturais, a melhor orquestra sinfônica do país e o segundo melhor museu de arte do hemisfério sul do planeta (o primeiro está em Buenos Aires).


Painel de azulejos do Vale do Anhangabaú em 1892 do Atelier Artístico Moral que encontrei num bar na Rua Juazeiro do Norte, perto de minha casa

Shopping, programa quintessencialmente paulistano

11.3.19

SÃO PAULO: MINHA MUDANÇA & PRIMEIRAS FOTOS


Tendo morado desde minha vinda ao mundo, em 1951, ininterruptamente no Rio de Janeiro (com eventuais viagens a serviço ou lazer para outras paragens), questões familiares me levam agora a mudar, no dia 15 de março de 2019, para São Paulo. Vou morar numa casinha num bairro modesto, Jardim Artur Alvim, da Zona Leste (se você não sabe onde é a Zona Leste, o bairro mais famoso de lá, que você decerto conhece, é Tatuapé), que corresponderia a um subúrbio carioca, mas com transporte público bom e um pouco mais de segurança (quanto mais vou descobrir). Mas uma vez por mês virei ao Rio. O blog, portanto, passa a alternar postagens sobre a Cidade Maravilhosa e a Cidade da Garoa, o maior polo industrial "alemão" do mundo – com maior concentração de indústrias alemãs do que qualquer cidade da Alemanha (ver aqui). Após ter captado por década e meia (desde a criação do blog) a alma carioca, agora encaro o desafio de procurar, em meio ao mar de prédios & casas (porque em Sampa pra qualquer lado que você olhe – norte, sul, leste, oeste – vê prédios e mais prédios ou casas e mais casas), a poesia, a beleza, o colorido, o pitoresco, a cultura, os tipos humanos etc. (porque mazelas, sejam cariocas, sejam paulistanas, deixo para os outros abordarem, e o fazem muito bem) desta que é uma das maiores metrópoles do planeta. Para ver exclusivamente as postagens sobre Sampa, clique em São Paulo no menu superior ou no menu da barra vertical direita. E deixe suas impressões na seção de comentários.

As fotos foram tiradas: 1) Em 2017 quando lancei meu Passaporte para o Paraíso também em Sampa; 2) Em 2018 quando viajei várias vezes a Sampa a fim de acompanhar as obras de minha nova casa. Estão aqui numa ordem aleatória, não cronológica.


Madrugada na Liberdade

Liberdade cedinho (seis e meia)

O editor do blog num Starbucks de shopping

Moto e carro

Grafite

Morumbi

Vista da Estação Artur Alvim

Cores

Catedral Metropolitana Ortodoxa

Catedral Metropolitana Ortodoxa

Hospital Santa Catarina

Carros

Vista

Reflexos

Antiga mansão de 1905 do barão do café Joaquim Franco de Mello, uma das poucas remanescentes na Avenida Paulista

MASP

Parque Trianon: oásis paulistano

O legítimo Bauru do Ponto Chic

1.3.19

PARABÉNS PRA VOCÊ, MEU RIO DE JANEIRO, de HELIO BRASIL

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE UM ANO ATRÁS (1/3/18) NO ENTÃO RECÉM-RESSUSCITADO JORNAL DO BRASIL


Nossos antepassados lusitanos chegaram ao Brasil – todos nós sabemos – em 1500, em Porto Seguro, na Bahia. Em virtude da grande extensão da costa e da pilhagem realizada pelos europeus de olho nas novas terras, adivinhadas ricas e generosas, somente em 1531 Martim Afonso de Sá por aqui passou deixando o porto, na suposta foz do Rio de Janeiro, bem abrigado pelo generoso desenho da Guanabara.

Ansiosos pela conquista de novos territórios, os franceses invadiram o Rio em 1555 e aqui se instalaram militarmente, entrincheirados na hoje conhecida Ilha do Governador – então Paranapecu.

A vinda de Mem de Sá, trazendo o braço guerreiro de seu sobrinho Estácio e à frente de exércitos organizados e armados, apoiados pelos guerreiros de Arariboia, foi decisiva para a reconquista. A fundação propriamente (data que hoje se comemora) foi no dia 1º de março de 1565, ao pé do morro Cara de Cão, juntinho ao nosso querido Pão de Açúcar. Perito na arte militar, Estácio decidiu deixar o local e instalar estrategicamente suas tropas no alto do morro do Castelo, elevação histórica que abrigou o forte lusitano, a Igreja de São Sebastião (nosso padroeiro) e o Colégio dos Jesuítas, marcos infelizmente desaparecidos quando em 1920-22 o morro foi arrasado.

Os franceses foram finalmente expulsos e, com relativa tranquilidade, os donos da terra desceram para a várzea iniciando a ocupação gradativa do território. E o Rio expandiu-se, apesar dos descuidos de seus habitantes e alguns predadores, venceu os pântanos que o cercavam, impondo novos traçados aos muitos cursos d’água e ganhando território para a população que pouco a pouco deixava o reino lusitano para trás. Historiadores poderão dizer quando foi que os cariocas – com a graça dos santos e dos deuses vindos da Europa, da África, e aqui mesclados aos caboclos indígenas – passaram a dar o colorido às festas e aos costumes, bem emoldurados por uma natureza luminosa.

Ao longo das sucessivas escaladas históricas para a Independência, passando dos vice-reis à corte Joanina nas mãos de um monarca bonachão e sagaz, D. João, das tiradas autoritárias de um Pedro I ao seu professoral filho que entregou mansamente a coroa aos republicanos, o Rio avançou (de certa forma à frente do Brasil) e o reflexo disto foi o despontar urbano com o prefeito Francisco Pereira Passos ao abrir a Avenida Central no início de 1900.

Planos urbanos como os de Agache, de Dodosworth e, mais recente, o de Doxiadis no rápido momento em que a cidade do Rio de Janeiro tornou-se um estado da federação, transfiguraram a metrópole, que nos dias de hoje, depois de ter voltado à condição de município, tenta reencontrar a sua aura de “Maravilhosa”. Já no século XX, muitos foram os arquitetos e urbanistas que a amavam e se propuseram a engrandecê-la: Afonso Reydi e Roberto Burle Marx, projetando e deixando florir o chamado Parque do Aterro do Flamengo, Luís Paulo Conde e tantos outros, arquitetos e urbanistas, sociólogos e antropólogos, deixam transparecer a preocupação com seus destinos de urbe tropical.

Que a data que se comemora – gravada neste retorno auspicioso do nosso JB – inspire uma retomada decisiva.

Quando os guerreiros lusitanos venceram os invasores, o mar de Uruçumirim (hoje, uma nesga no Flamengo na foz do rio Carioca) tornou-se vermelho com o sangue dos combatentes. Respeitando tal sacrifício, vamos, cariocas de hoje, lutar não mais de forma sanguinolenta, mas com o coração e a cabeça para reconstituir a cidade que decididamente ainda é MARAVILHOSA!


HELIO BRASIL – arquiteto – março de 2018.