ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

14.11.16

MAJOR ARCHER, UM PIONEIRO NA LUTA CONTRA O DESMATAMENTO

A Floresta da Tijuca, no coração do Rio de Janeiro, a maior floresta urbana do mundo, resultou do primeiro grande projeto de reflorestamento da história universal, iniciado em 1862. Em um dos capítulos do Volume III de O Velho Oeste Carioca, livro sobre a ocupação da Zona Oeste do Rio de Janeiro, André Luís Mansur conta a história desse projeto. Transcrevemos a seguir trechos do capítulo.


Dono da Fazenda Independência, em Guaratiba, o major Manuel Gomes Archer foi um pioneiro na luta contra o desmatamento, um tema comum neste início de século XXI, mas que há 150 anos não estava entre as pautas de nenhum programa de governo. Cortar árvores, sem a menor preocupação com reflorestamento, era uma prática normal no Brasil, aliás inaugurada desde a chegada dos primeiros portugueses ao nosso litoral, e também de corsários franceses nas primeiras décadas do século XVI, que negociavam com os indígenas as toras de pau-brasil, num método tão destrutivo que a espécie que daria nome à colônia foi praticamente extinta do litoral.
         

A Floresta da Tijuca, um dos maiores patrimônios ambientais do Brasil, também passou por um processo de devastação, devido à expansão da lavoura cafeeira, que atingiu o seu auge na segunda metade do século XIX. Foi graças ao empenho pessoal do imperador D. Pedro II, enfrentando interesses de donos de sítios na floresta, que o major Archer recebeu carta branca para realizar o primeiro trabalho de reflorestamento de grande porte de que se tem notícia no Brasil. [...]
Manuel Gomes Archer nasceu em 21 de outubro de 1821. Era major da Guarda Nacional, uma força paramilitar criada no Império para suprir a falta de um exército profissional. Em sua fazenda de Guaratiba, Archer mantinha muitas mudas de espécies nativas, que acabariam sendo usadas no replantio da Floresta da Tijuca.
         
A portaria imperial, nomeando Archer administrador da Floresta da Tijuca, foi assinada em 18 de dezembro de 1860, mas as primeiras mudas só foram plantadas em 4 de janeiro de 1862. Ele se instalou no Sítio do Midosi. "O major Archer proibiu terminantemente a derrubada das poucas árvores que ainda restavam, e proibiu o comércio lucrativo de carvão vegetal que era realizado em todas as partes das montanhas. Ele trouxe sementes de sua propriedade rural em Guaratiba para plantá-las na região, fez viveiros de plantas selecionadas e transplantou as mudas. (Parque Nacional da Tijuca, de Luis Alexandre Franco Gonçales).
         
Monumento a Constantino, Eleutherio, Leopoldo, Manoel, Matheus e Maria, escravos do Major Archer no reflorestamento da Floresta da Tijuca, e a Sabino, Macário, Clemente, Antonio e Francisco, escravos de Thomas Nogueiro da Gama no reflorestamento das Paineiras. A cidade agradece.

Já em 1862, foram plantadas 13.817 árvores, trabalho feito não apenas por seis escravos, como se imaginava, mas também por uma equipe que incluía um feitor, operários, guardas, serventes e empregados incumbidos de abrir e conservar caminhos. Os seis escravos que trabalharam no reflorestamento só foram admitidos a partir de 1964: Constantino, Eleutério, Leopoldo, Manoel, Matheus e Maria. Até o fim do trabalho, em 1874, foram plantadas 61.852 mudas de árvores de diversas espécies, como pau-brasil, nogueira, palmeira, goiabeira, eucalipto etc. O trabalho teve continuidade pelo Barão d´Escragnolle, que ficou no cargo até 1888, quando morreu.
         
O prestígio de Archer, que após o imenso trabalho feito na Floresta da Tijuca, voltou para sua fazenda, em Guaratiba, manteve-se intacto junto ao imperador, que o convidou para a Exposição Mundial da Filadélfia, em 1876, comemorando o centenário da independência dos Estados Unidos, e em 1877 o nomeou superintendente da Imperial Fazenda de Petrópolis, com o objetivo de reproduzir, nos morros da região, também já bastante degradados, o trabalho feito na Tijuca. Em Petrópolis, o problema do desmatamento era causado principalmente pela extração da madeira, seja para a construção das casas, ou para o comércio de lenha e carvão.


LIVRARIAS QUE VENDEM OS LIVROS DE ANDRÉ LUÍS MANSUR:

- Livraria Arlequim, no Paço Imperial.
- Livraria Folha Seca, na Rua do Ouvidor, 37.
- Banca de jornais da rua da Quitanda, em frente ao número 50.
- Blooks, na Praia de Botafogo.
- Livraria do Instituto Pereira Passos perto do Largo do Machado.
- Café & Pauta do Botafogo Praia Shoppping e do Boulevard Rio Shopping.
- Livraria Leitura, no Park Shopping, em Campo Grande.
- N & R Restaurante, em Santa Cruz.
- Fernando´s Bar, na Pedra de Guaratiba.
- Lado Oeste Cervejas, em Campo Grande.
- Bar Chopp da Villa, em Campo Grande.
- Livraria Real Engenho, em Realengo.
- Restaurante Don Ganache, em Marechal Hermes.
- Livraria Moviola, em Laranjeiras.
- Sebo de Campo Grande, em Campo Grande.
- Banca Dá Poesia, na pra 7 de Abril, em Paciência.
- PubBeer Paciência.
- Café Consenso, em Pedra de Guaratiba.

5.11.16

OUTEIRO DA GLÓRIA: ILHA DE BELEZA E TRANQUILIDADE

Tem certas áreas ou bairros onde a gente só vai para fazer algo específico, mas não visita como um todo: por exemplo, na Ilha do Governador, a gente só vai ao Aeroporto Internacional. No entanto, a Ilha ocupa uma área com quase o tamanho de toda a Zona Sul carioca (veja no Google Maps) e abriga catorze bairros. Quantos deles você já visitou? O Rio Comprido a gente só atravessa de carro sobre o elevado. É bem verdade que o bairro ficou desfigurado com esse mostrengo. Na Urca a gente só vai até a estação do bondinho, mas não penetra nas entranhas do bairro. E no Outeiro da Glória só sobe até a famosa igreja colonial (que já foi objeto de postagem deste blog que você pode ler clicando aqui), sem imaginar que existe muito mais coisa por lá. Trata-se de uma espécie de "miniSanta Teresa", um desses morros (dos quais outros exemplos são os da Conceição e do Livramento) que foram ocupados antes do “bota-abaixo” do Pereira Passos, portanto antes da tendência de favelização das encostas. 

O Outeiro da Glória tem escadarias, becos, calçamento pé-de-moleque, muros de pedra, vistas do Corcovado e até do Pão de Açúcar, chalés, casas neocoloniais, casarões vetustos, etc. Eu mesmo ignorava esse "oásis" onde a modernidade não chegou até ler um artigo publicado no finado Jornal do Brasil em 8 de outubro de 2007, intitulado “Outeiro esconde ilha de beleza e tranquilidade na Glória”, que guardei e do qual citarei alguns trechos abaixo. Na época do artigo planejei fazer uma postagem sobre o morro que só agora, nove anos depois, vem a lume. 

Caso queira fazer o mesmo percurso que eu, pegue a escadaria à esquerda do ex-prédio da Manchete na Praia do Flamengo (ver aqui), quando chegar no alto siga a Ladeira do Russel à direita até deparar com uma íngreme escadaria à esquerda (aqui), suba sem medo (é tranquilo) até o alto, lá siga a Rua Barão de Guaratiba, siga, siga, siga (ela é cheia de curvas), até desembocar na Rua do Catete do outro lado. Consulte o Google Maps. Se tiver espírito aventureiro pode explorar outras ruas, ruelas, escadarias do morro, mas esse é o roteiro básico.


 Vista com Corcovado

Casa neocolonial

Escadinha

"Uma das mais bonitas e visitadas da cidade, a Igreja de Nossa Senhora do Outeiro é apenas uma das joias que o bairro da Glória conserva. Bem ali, atrás do ponto turístico, do Hotel Glória, do imponente edifício que foi sede do grupo Bloch e dos prédios da Rua do Catete, está guardado um recanto que ainda preserva características urbanísticas do finzinho do século 19." (JB de 8/10/2007)


Ladeira abaixo

Casarões neoclássicos, o da esquerda de 1877

Escadinhas

"O morro é uma ilha dentro da cidade. Muitas casas desvalorizaram pois perderam a vista da Baía de Guanabara com a construção de prédios, entretanto o bairro ficou protegido." (idem)


Chalé onde morou o cantor Ruy Rei (Domingos Zeminian)

Portão com Corcovado atrás

Pórtico

"Cada curva oferece uma vista incrível da cidade. O bairro conserva um silêncio e uma paisagem que quase não se encontra mais." (idem)


Três escadinhas

Escadinha

Alpendre em velho casarão

"A Barão de Guaratiba é uma daquelas ruas onde todos se conhecem e o lugar é considerado seguro pelos moradores. Boa parte das casas é da virada do século e há muitos exemplares do estilo neocolonial. Algumas travessas têm o calçamento de pedras, conhecido como pé-de-moleque." (idem)


Azulejos

Casinha

Telhados

Casa tendendo ao art nouveau

Pichações

Pé-de-moleque. Fotos do editor do blog.

3.11.16

POR QUE VOTEI EM MARCELO CRIVELLA


Sou uma pessoa tolerante. Tenho amigos em todo o espectro ideológico. Tenho amigos de esquerda, alguns brilhantes, que adoro e que admiro. Mas (que meus amigos não fiquem chateados com esta minha confissão) a esquerda tem um “defeitinho”. Não é tolerante como eu. Para os esquerdistas, um governo, uma administração que não seja de esquerda é o “fim do mundo”, um retrocesso, um horror. Para ela a “não esquerda” padece de uma espécie de pecado original, irredimível. Quem vota num candidato que não seja da lista deles comete quase que um crime ideológico. Falta-lhes o "espírito democrático".

Não tenho nada a favor do Crivella. Meu voto nele foi um voto útil. Votei contra o Freixo. Não tenho nada contra ele, pessoalmente. Tenho contra o partido. Ele está no partido errado. Um partido virulentamente anti-Israel. O ditador da Síria com apoio da Rússia bombardeia populações civis e o PSOL não fala nada. A Arábia Saudita bombardeia civis no Iêmen e idem. Mas se Israel cometer algum deslize... sai de baixo! A grita dos partidos e intelectuais de esquerda (e aí se inclui o PSOL) é ensurdecedora. Já aconteceu no passado.

Desconfio que o PSOL, se ganhasse a Prefeitura, faria o que o PT fez no nível federal: arrumaria “boquinhas”, cargos comissionados, para toda a companheirada. Distribuiria dinheiro público a rodo aos artistas e intelectuais que apoiam sua ideologia. Não continuaria apoiando os black blocs como fez no passado porque agora estaria no poder e não interessa. Tampouco continuaria apoiando greves intermináveis de professores, sequestrando o futuro das crianças pobres (porque as ricas estudam em escola particular), pelo mesmo motivo. Mas se Freixo faria realmente ou deixaria de fazer essas coisas nunca saberemos... porque ele perdeu.

O que saberemos é se Crivella fará aquilo que o PSOL afirmou que faria: convidar o nefasto Garotinho (esconjura!) para seu secretariado e governar visando o projeto de poder evangélico. Tomara que não. O Paes fez um grande governo de grandes empreendimentos: VLT, BRT, Parque de Madureira (numa região carente de áreas de lazer), o Porto Maravilha. Crivella diz que vai cuidar das pessoas: da saúde, da educação, da segurança. O Eclesiastes ensina que existe um tempo para tudo. Tempo de grandes obras, tempo de cuidar das pessoas. Não morro de amores por Crivella, mas tomara que o governo dele dê certo. Para o bem de nós que adoramos o Rio.

30.10.16

ELEIÇÕES NO TEMPO DE MACHADO DE ASSIS


Já em 1884, no tempo do Império, quando o voto para a Assembléia Geral era censitário (só votavam pessoas acima de certa renda) e as mulheres sequer tinham esse direito, Machado de Assis escreveu uma crônica - bem atual - satirizando os políticos pedindo votos. Vamos a ela:



Venho pedir-lhe o seu voto na próxima eleição para deputado.

— Mas, com o senhor, fazem setenta e nove candidatos que...

— Perdão: oitenta. Que tem isto? A reforma eleitoral deu a cada eleitor toda a independência, e até fez com que adiantássemos um passo. [...]

— Bem; pede-me o voto.

— Sim, senhor.

— Responda-me primeiro. Que é que fazia até agora?

— Eu...?

— Sim, trabalhou com a palavra ou com a pena, esclareceu os seus concidadãos sobre as questões que lhe interessam, opôs-se aos desmandos, louvou os acertos...

— Perdão, eu...

— Diga.

— Eu não fiz nada disso. Não tenho que louvar nada, não sou louva-deus. Opor-me! É boa! Opor-me a quê? Nunca fiz oposição.

— Mas esclareceu...

— Nunca, senhor! Os lacaios é que esclarecem os patrões ou as visitas: não sou lacaio. Esclarecer! Olhe bem para mim.

— Mas, então, o que é que o senhor quer?

— Quero ser deputado.

— Para quê?

— Para ir à câmara falar contra o ministério.

— Ah! é contra o Dantas?

— Nem contra nem pró. Quem é o Dantas? Eu sou contra o ministério... Digo-lhe mesmo que a minha idéia é ser ministro. Não imagina as cócegas com que fico em vendo um dos outros de ordenanças atrás... Só Deus sabe como fico!

— Mas já calculou, já pesou bem as dificuldades a que...

— O meu compadre Z... diz que não gasta muito.

— Não me refiro a isso; falo do diploma, o uso do diploma. Já pesou...

— Se já pesei? Eu não sou balança.

— Bem, já calculou...

— Calculista? Veja lá como fala. Não sou calculista, não quero tirar vantagens disto; graças a Deus para ir matando a fome ainda tenho, e possuo braços. Calculista!

— Homem, custa-me dizer o que quero. O que eu lhe pergunto é se, ao apresentar-se candidato, refletiu no que o diploma obriga ao eleito.

— Obriga a falar.

— Só falar?

— Falar e votar.

— Nada mais?

— Obriga também a passear, e depois torna-se a falar e votar. Para isto é que eu vinha pedir-lhe o voto, e espero não me falte.

— Estou pronto, se o senhor me tirar de uma dificuldade.

— Diga, diga.

— O X. pediu-me ontem a mesma coisa, e depois de ouvir as mesmas perguntas que lhe fiz, às quais respondeu do mesmo modo. São do mesmo partido, suponho!

— Nunca: o X. é um peralta.

— Diabo! Ele diz a mesma coisa do senhor.

Crônica de Machado de Assis de 10 de novembro de 1884, publicada na seção "Balas de Estalo" da Gazeta de Notícias, extraída do livro Crônicas de Lélio (Ediouro). Foto de Machado de Assis por Marc Ferrez.

20.10.16

HISTÓRIA DO RIO DE JANEIRO, de STANISLAW PONTE PRETA


A coisa começou no século XVI, pouco depois que Pedro Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou a confusão, isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia Rio de Janeiro.

Depois em 1512 – segundo o testemunho ocular de Brício de Abreu – rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da Barra, descobriram uma baía muito bonita e, distraídos que estavam, não perceberam que era baía. Pensaram que era um rio e, como fosse janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro. Eis, portanto, que o Rio já começou errado.

Passaram-se os anos, os portugueses não deram muita bola pra descoberta, e vieram uns franceses intrusos e se alojaram na baía. Foi então que os portugueses abriram os olhos e, ao mesmo tempo, abriram fogo contra o invasor, chefiados por um destemido cavalheiro que atendia pelo nome de Estácio de Sá (onde mais tarde se fundaria a primeira escola de samba, mas isso foi depois). Estácio era sobrinho de Mem de Sá, ex-governador geral e primo de Salvador de Sá, que mais tarde viria a governar a cidade. É interessante notar que, muito tempo depois, quem descer pela Rua Mem de Sá, vai dar na Rua Salvador de Sá que, por sua vez, passa pelo Largo do Estácio, também de Sá. 

Quando os comandados de Estácio de Sá iniciaram a batalha contra os franceses, a coisa foi dura e só se resolveu numa derradeira batalha travada na Praia de Uruçumirim. Para vencer tiveram de suar a camisa e é por isso que, mais tarde, a Praia de Uruçumirim ficou sendo a Praia do Flamengo, o célebre Flamengo que, por tradição, sua a camisa até hoje. Isso aconteceu aí pelo ano de 1567 e estava fundada a cidade do Rio de Janeiro, a mesma que viria a ser, em 1763, capital do vice-reinado, e depois capital da República dos Estados Unidos do Brasil. 

A cidade foi construída sobre alagadiços e a brava gente, que a construiu, secou tão bem os alagadiços que até hoje está faltando água. Quando, em 1763, foi considerada capital do vice-reinado, a cidade tinha somente 30 mil habitantes natos e mais, naturalmente, o Brício de Abreu, que não nasceu aqui, mas em Paris, de onde veio ainda pequenino no vapor Provence

Daí por diante o Rio de Janeiro foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo e ... pimba! estourou. E, como tudo que estoura, abriu buraco pra todo lado.

Tal é, em resumo, a história do Rio de Janeiro, que foi descoberto por portugueses navegadores e que portugueses do comércio atacadista da Rua Acre querem levar para Portugal. Daí o velho ditado de Tia Zulmira: “Cabral descobriu o Brasil e Manoel quer carregar”.

Não é, como o leitor mais arguto pouquinha coisa pôde perceber, uma história tão brilhante assim, como pretandem as letras dos sambas apoteóticos. 

Do livro Tia Zulmira e Eu. Stanislaw Ponte Preta foi o pseudônimo sob o qual Sérgio Porto escrevia suas impagáveis crônicas, figurando personagens como Tia ZulmiraPrimo Altamirando. Disse ele: "Quando inventei o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta foi justamente para que o Stan não prejudicasse o Sérgio. Isto é, eu, Sérgio, queria escrever coisas sérias, o Stanislaw deveria abordar — na qualidade de jornalista — assuntos inconsequentes, tais como mundanismo, divertissement." Ilustração  superior de Alcy Linares.

15.9.16

A PAIXÃO RENASCE, de Flávia Oliveira

"O Rio é amor bandido"

CRÔNICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL O GLOBO DE 4/8/2016, UM DIA ANTES DA ABERTURA DOS JOGOS OLÍMPICOS

O meu lugar, peço licença ao mestre Arlindo Cruz, é repleto de seres de luz — e de espíritos das trevas, especialmente entre os que o governam. É acolhedor, mas sabe ser brutal. É brutal, mas acolhedor como poucas metrópoles do mundo. Eu nasci, cresci e escolhi viver no Rio de Janeiro. Daqui não saio. Nem se o prefeito Eduardo Paes perder a paciência numa rede social e me mandar embora. Nem se os inomináveis — sim, há mais de um candidato abaixo da crítica — assumirem o Piranhão em 2017. (Aos não iniciados em carioquice, é esse o apelido da sede da prefeitura, erguida numa velha área de prostituição.)

O Rio nos maltratou às vésperas dos primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul, que começam oficialmente amanhã. A violência urbana fugiu do controle. O aparato de repressão asfixiou comunidades populares em atitude tão inaceitável quanto habitual. No segundo trimestre, a polícia matou 124 pessoas na cidade; só em junho, foram 49 homicídios, o dobro do registrado no mesmo mês de 2015. Ainda ontem de manhã, o Complexo do Alemão padecia com mais um confronto entre policiais e traficantes.

Não foi à toa que a Anistia Internacional Brasil lançou a campanha “A violência não faz parte desse jogo”, para denunciar violações de direitos humanos na cidade olímpica. Um documento cobrando treinamento e abordagens adequados pelas forças de segurança, respeito à liberdade de manifestação pacífica, investigações imparciais e independentes e assistência a vítimas foi assinado por 120 mil pessoas e entregue ao Comitê Rio 2016. No mês passado, estreou o aplicativo Fogo Cruzado, um mapa colaborativo sobre ocorrência de tiroteios e confrontos. Em um mês, houve mais de 600 relatos.

Em sete anos de preparação para os Jogos, o Rio tampouco foi capaz de avançar na agenda ambiental, que prometia despoluir a Baía de Guanabara e as lagoas de Jacarepaguá. As competições de vela vão ocorrer num cenário livre apenas do lixo aparente, recolhido por balsas. E só Deus sabe o que pode acontecer se chover.

Os investimentos em mobilidade urbana não livraram a cidade de megaengarrafamentos na semana derradeira. Foram 120 quilômetros de puro estresse na última segunda-feira e 200, na terça. A circulação inviável levou à decretação do quarto feriado municipal durante a jornada olímpica, para desespero do empresariado ante ao efeito do expediente interrompido na atividade econômica. Todos esses passivos são conhecidos, merecem críticas e exigem mobilização permanente da sociedade carioca. A cidadania participativa do novo século não aceita o estelionato eleitoral nem se contenta com as realizações possíveis. O anseio é pela cidade ótima; e as autoridades têm de aprender a lidar com isso.

Mas a festa está na rua e o meu lugar, engalanado, é bonito como nenhum outro. Quando o clima de celebração se instala, a paixão renasce. As fotos lindas de todos os cantos da cidade que pipocam nas redes sociais são a prova. Difícil imaginar cenário mais bonito para uma competição esportiva, do Leme ao Pontal, da Lagoa ao Maracanã, do Centro a Deodoro.

As delegações estrangeiras, que desembarcam aos milhares com uniformes coloridos e smartphones em punho, estão a nos escancarar o significado dos Jogos. Os suíços tomaram a Lagoa; os franceses, a Hípica. A Dinamarca ocupou Ipanema; a Itália, a Barra. O CCBB abriu espaço para a magnífica exposição de obras dos museus D’Orsay e L’Orangerie, de Paris. Os mexicanos montaram uma mostra arqueológica e uma exposição audiovisual sobre Frida Kahlo no Museu Histórico Nacional. O “Abaporu”, obra-prima brasileira hoje no acervo do Malba argentino, migrou para o MAR. Virou capital do mundo o meu lugar.

O jamaicano Usain Bolt, multicampeão olímpico e mundial do atletismo, está treinando em instalações da Marinha, na Avenida Brasil. O igualmente laureado Michael Phelps, americano da natação, está na área. Simone Biles, fenômeno da ginástica artística dos EUA, e nosso Arthur Zanetti, o homem das argolas, também. A seleção bicampeã do vôlei feminino, orgulho nacional, vai brigar pelo tri. E vai que a seleção de futebol desencanta...

O povo do samba foi escalado e entrará em campo (viva!) na cerimônia de abertura e em programação intensa na região portuária revitalizada. Anteontem, os boêmios do Sat’s festejavam a vitoriosa campanha #agnaldoolimpico, que conseguiu fazer do garçom e churrasqueiro do bar de Copacabana um dos condutores da tocha. O Comitê Rio 2016 formalizou o convite após saber do flashmob etílico, que percorreu com um arremedo de chama olímpica 13 botequins do bairro. Mais carioca, impossível.

O Rio maltrata, mas é lindo. É lindo, mas maltrata. O Rio é cigarra; a gente intui o inverno de escassez, mas não resiste à cantoria do fim das tardes de verão. O Rio é amor bandido, é filho pródigo. A gente puxa a orelha e belisca; se emociona e acolhe. Me abraça, meu Rio.

LEIA TAMBÉM NOSSA MATÉRIA SOBRE AS OLIMPÍADAS CARIOCAS CLICANDO AQUI.

1.9.16

O AMANUENSE BELMIRO NO RIO DE JANEIRO


Numa época em que o regionalismo desponta como tendência hegemônica (quase um estilo de época) nas letras brasileiras, Cyro dos Anjos, em sua obra O amanuense Belmiro, vai na contracorrente com esse sui generis "diário" íntimo (que na verdade resultou do amálgama de uma série de crônicas jornalísticas) de um burocrata belo-horizontino de 38 anos, amanuense na Seção do Fomento Animal (“que não fomenta coisa alguma, senão o meu lirismo”) do Ministério da Agricultura, espécie de anti-herói chapliniano, “velho profissional da tristeza”, a cuja vida exterior normalmente banal (rompida vez ou outra por algum evento menos banal como a prisão por algumas horas por suspeita de comunismo ou a viagem ao Rio de Janeiro) se contrapõem os “abismos insondáveis” da alma embebida de paixão não correspondida, “ingênuos pensamentos, loucas fantasias”, dúvidas, incertezas (“Fali na vida, por não ter encontrado rumos. Este Diário, ou coisa que o valha, não é sintoma disso?”). 

O estilo é uma mescla de lirismo, ceticismo e ironia, com sutis toques machadianos. O autor assim consegue o milagre de transformar o cotidiano corriqueiro (“Que vim fazer neste mundo? Até agora nada realizei”) em material literário de primeira, nessa narrativa que se estende do Carnaval de 1935 até o do ano seguinte. Como espécie de ideia recorrente, o amor platônico pela bela Arabela, que na verdade é Carmélia Miranda, jovem de boa família, “criatura mais bonita [e] mais fina nestas redondezas”, que acaba casando com um distinto médico radiologista, o casal indo passar a lua-de-mel na Europa. 

Desfila por esse diário uma fauna de personagens, amigos do amanuense: a “desejável” (que hoje chamaríamos de “boazuda”  “como a saúde de Jandira convida a um higiênico idílio rural”) Jandira, o anarquista Redelvim (“um anarquismo lírico, que não dá para atirar bombas nem praticar atentados”), que o autor conheceu numa república de estudantes, o filósofo Silviano defensor da conduta católica (“fugir da vida no que ela tem de excitante”), o jovem colega de repartição Glicério “que é novo na vida e na burocracia”, o tranquilo Florêncio, “homem sem abismos”, “homem sem história” sempre provido das melhores e mais recentes anedotas, etc.

O autor às vezes coloca em dúvida a utilidade de seu diário (“Se, acaso, publicar um dia este caderno de confidências íntimas, perdoem-me os leitores as anotações de caráter muito pessoal, que forem encontrando e que certamente não lhes interessarão.”), outras vezes o justifica (“Por que um livro?”, foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse propósito. “Já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?” Respondi-lhe que perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo tantos.”)

A certa altura o autor (o livro é narrado em primeira pessoa) vem ao Rio sob pretexto de uma missão profissional qualquer, mas na verdade para ver o embarque da amada platônica recém-casada para a lua-de-mel na Europa. A seguir, trechos dos capítulos 77 a 80 que narram a aventura, ou melhor, desventura carioca:

Deixando o Arpoador, senti-me lúcido e triste

EIS-ME nesta mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Deixei Belo Horizonte com antecedência de alguns dias para não dar na vista do Glicério. Senti desejo de vir, e vim. De que vale a gente viver a contrariar-se? Por si mesma a vida já nos impõe tantas limitações... [...]

Nossos amigos cariocas não sabem o que vale o mar para nós, de Minas.

Desde cinco dias não faço outra coisa senão frequentá-lo no cais, na praia, pela manhã, pela noite. Anda enfurecido e sombrio, arrastando sua língua difícil. Tenho tentado, em vão, conversá-lo: está inacessível.

Perco-me, também, na contemplação comovida deste Rio velho, deste Rio torto e encardido, que é o que amo. A cidade nova e brilhante, que nasceu dos flancos da outra, me assusta e intimida. O Rio antigo traz-me imagens machadianas que amei na adolescência.

Percorrendo a Rua Matacavalos, pensei, com saudade, naqueles cavalheiros que andavam de tílburi, jogavam voltarete e tinham, sobre o mundo, pensamentos sutis. Divisei, a um canto, o vulto amável de Sofia e tive dó do Rubião. A meus ouvidos, mana Rita fazia insinuações (Cale a boca, mana Rita...). Em certo bonde, que me pareceu puxado por burricos, tive a meu lado Dom Casmurro, e lobriguei, numa travessa, dois vultos que deslizavam furtivos à luz escassa dos lampiões: Capitu e Escobar.

Andando sempre, e a pé (não aprendi, ainda, a usar convenientemente os ônibus), também fui dar comigo em regiões não machadianas. Os passos me levaram, distraído, a certos quarteirões movimentados, ribeirinhos do Mangue. Jamais me passara pela idéia uma visita a paragens tais, mas, como já ali me achasse, moveu-me a curiosidade de examinar os transeuntes e o local. Não fui muito adiante: encontrei militares de terra e mar algo tocados, que começaram a olhar-me de soslaio, e tratei de retirar-me com dignidade. Atrás, algumas damas de poucas ou nenhumas vestes me propunham em francês coisas não muito adequadas ao meu ofício e condição. Safei-me daquele mercado estranho, com o peito deprimido. Ali nenhuma ilusão era possível. [...]

Por que me perturba, assim, o mar? Diante dele, quando devia amesquinhar-me, exalto-me e quero compartilhar de sua energia cósmica. De onde nos será possível descortinar o alto panorama? Qual será o caminho—o da humildade ou o da dureza?

Deixando o Arpoador, senti-me lúcido e triste, como o marinheiro do poeta. Ficaram-me desejos confusos de amor e de aniquilamento. Se ao menos o amor se definisse, teríamos um sentido. Mas, que sabemos do amor? Impossível fixá-lo, encontrar-lhe a expressão real, permanente. Ele se compõe da variedade e da ondulação. Conhece todas as gradações, e seu objeto é ora fixo, ora móvel, ora uno, ora múltiplo.

Ainda estou a ouvir, como a uma sinfonia wagneriana, as vagas que batem no rochedo. A voz do grande paralítico.

22.8.16

RIO 2016: AS OLIMPÍADAS CARIOCAS



Não obstante as previsões catastróficas das cassandras de sempre – que previram desde um atentado terrorista e uma onda de assaltos contra os visitantes até uma epidemia de Zika e entulhos na Baía atrapalhando os regatistas –, apesar da má-vontade da imprensa nacional e internacional – a CNN chegou a descobrir uma bactéria super-resistente nadando nas águas de Copacabana e o site de análise política O Antagonista chamou nossos jogos de “olímpiadas do coco” (ao que enviei uma mensagem raivosa dizendo que eles é que eram “jornalistas de cocô”) –, apesar da tentativa das esquerdas, que já haviam tentado sabotar nossa Copa ("Não Vai Ter Copa": ver aqui), de explorar a exposição internacional para promover sua campanha de FORA TEMER... apesar de toda essa torcida do contra, como já acontecera nas conferências do clima da ONU, no Pan (ver aqui), na Jornada Mundial da Juventude (ver aqui) e na Copa (ver aqui), mais uma vez a nossa querida cidade maravilhosa soube acolher com galhardia um grande evento e receber de braços abertos a avalanche de visitantes, encantando-os. Podemos dizer que o Rio ganhou medalha de ouro ao sediar as Olimpíadas (ou melhor, quem disse isso foi Rosiska Darcy de Oliveira na crônica Rio, medalha de ouro que você pode ler aqui).

A cerimônia de abertura já mostrou que não somos os vira-latas que um certo "complexo" diagnosticado por um genial cronista às vezes nos leva a crer que sejamos. A revista Veja, em matéria de capa, admite que “O BRASIL SURPREENDE O MUNDO”Conquanto não ficássemos entre as dez maiores potências esportivas como planejado, fizemos a melhor campanha de nossa história olímpica (7 ouros, 6 pratas, 6 bronzes, 13o lugar no ranking) e ainda de quebra ganhamos um legado: o lindo Boulevard Olímpico que permitiu ao carioca redescobrir a orla histórica da cidade (ver aqui), o VLT, os BRTs, a expansão do metrô. Muitos medalhistas brasileiros são visivelmente gente humilde, dos estratos populares (aquela gente da qual os lulopetistas e seus asseclas se dizem representantes enquanto saboreiam seu caviar e saqueiam o país), alguns das Forças Armadas. Se nossos universitários em vez de bebericarem tanto chope e se embeberem de tanto esquerdismo inútil se dedicassem aos desportos, como fazem seus colegas do Primeiro Mundo...

Em Editorial onde faz balanço das Olimpíadas cariocas, escreve O Globo: "Ao se anunciar o Rio como sede da Olimpíada de 2016 começou um debate sobre se compensaria trazer os Jogos para a cidade e o Brasil. Hoje, não se tem dúvida de que foi bastante compensador. Não apenas pelo dinheiro que circulou na cidade e outros estados, como pelos empregos criados, principalmente na construção civil. E a Rio-2016 foi aproveitada de forma hábil pelo prefeito Eduardo Paes para viabilizar impressionantes projetos na revitalização do Porto, na ampliação da malha de transporte de massa (BRTs) e na linha de metrô até a Barra."

Na revista Isto É desta semana, lemos: "Os brasileiros estão cheios de esperança, felizes com a Olimpíada que foram capazes de organizar e com a oportunidade rara de desfrutar de um período luminoso de uma das cidades mais iluminadas do mundo. A Olimpíada reergueu a nossa auto-estima e varreu para longe o desânimo político e econômico que paralisou a nação nos últimos dois anos."  E o meganadador Michael Phelps, em seu perfil no Instagram, se derrete pela cidade: "Por mais legal que seja estar em casa, já sinto falta da beleza do Rio de Janeiro e da simpatia de seu povo. Obrigado, Rio, por receber os Jogos Olímpicos e por fazer com que a gente se sentisse tão bem-vindo!"

MORAL DA HISTÓRIA: mais uma vez ficou comprovado que, como disse o poeta, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. E  no futuro, quando o Rio de Janeiro voltar a abrigar um grande evento, como é de sua vocação, mais uma vez as cassandras, que são incapazes de aprender alguma coisa, vaticinarão a catástrofe que não acontecerá. A seguir, algumas fotos e um vídeo tirados pelo editor do blog durante as Olimpíadas.

Transatlântico

Rubgy Sevens

O público do rugby (nem só de futebol vive o homem)

A imprensa

Hipismo

A pira olímpica

Arte no Boulevard Olímpico

Engarrafamento humano no trecho mais estreito do Boulevard Olímpico

Alegres torcedores

Anéis olímpicos na Praia de Copacabana

Rio 2016 em arte de Kristjana S. Williams exposta na fachada do Copacabana Palace. Imagem obtida no site Maior Viagem.

20.8.16

ARTISTA E AMBULANTE NO TREM DA CENTRAL

Em artigo publicado durante os Jogos Olímpicos, o site da CNN contrasta o "moderno sistema de metrô" carioca com a "rede de trens mais rústica", que descreve como uma "loja de conveniências sobre rodas, oferecendo aos viajantes a oportunidade de comprarem de tudo, de biscoitos e doces a relógios digitais e bolsas." O filme amador mostra um artista do acordeon e um ambulante em ação no trem Santa Cruz que levava o público aos locais de competições em Deodoro durante as Olimpíadas.
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