ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

15.7.18

ORIGENS DO SAMBA

PESQUISA E TEXTO DE IVO KORYTOWSKI. JORNAIS E PERIÓDICOS ANTIGOS CONSULTADOS NA HEMEROTECA DIGITAL


Quem não gosta de samba bom sujeito não é (Dorival Caymmi)


Segundo o Dicionário do folclore brasileiro de Camara Cascudo, a palavra “samba” provém de semba, umbigada em Angola. Originalmente significava um “baile popular urbano e rural” (=pagode, arrasta-pé, forrobodó) ou “dança de roda” (=batuque), antes de adquirir a acepção de um gênero musical urbano. O primeiro registro escrito da palavra, segundo o folclorista, teria ocorrido no periódico recifense O Carapuceiro no 6 de 3 de fevereiro de 1838, que “esbraveja indignado contra o samba d’almocreves [condutores de bestas de carga]”.

Na verdade, o periódico não esbraveja contra o samba, mas o contrapõe às óperas de Rossini, assim como contrapõe uma garatuja de bules e bandejas chineses às pinturas de Rafael, Rubens e Corregio, e os acepipes africanos (bobó, vatapá, acarajé, caruru) às delícias de uma mesa italiana, sustentando que, ao contrário do dito popular de que “gosto não se discute”, existe, sim, o bom e o mau gosto – o “samba de almocreves”, as garatujas chinesas e os acepipes africanos sendo exemplos de “mau gosto”.

Na edição de 26 de dezembro do mesmo ano (no 72), matéria intitulada “Os Fumistas”, que exalta as virtudes do tabaco fumado e em forma de rapé – “se o tabaco é mui útil a todas as hierarquias, e profissões, para um periodiqueiro [=periodicista, profissional que escreve em periódicos] pode-se dizer que é condição sine qua non. Quem há de acudir a um apoquentado jornalista em muitas ocasiões de aperto, se não a sua inseparável amiga, a boceta de tabaco?” – refere-se ao “laborioso matuto” que, depois que lhe furtam o cavalinho, ao chafurdar “as ventas em duas ou três pitadas” de rapé, “esquece-se do cavalo, resigna-se com a sua sorte, e com uma viola nas unhas zangarreia o samba por uma noite inteira”.

Até agora a data fixada por Camara Cascudo costumava ser considerada como a do primeiro registro escrito da palavra samba. Em seu Almanaque do Samba, André Diniz confirma essa crença: “A primeira menção ao termo samba conhecida foi feita em 3 de fevereiro de 1838 no jornal satírico pernambucano O Carapuceiro.” Mas empregando o mecanismo de pesquisa da Hemeroteca Digital Brasileira, consegui localizar menções à palavra anteriores a 1838.

Por exemplo, o Diário de Pernambuco de 4 de agosto de 1830 (p. 2), em matéria sobre a indisciplina de certos corpos de soldados da capital da província, afirma que de nada adianta enviar, como castigo, esses soldados para guarnições no interior, pois lá, na falta de um serviço ativo, descambarão na ociosidade, entretendo-se (vou manter a ortografia da época) “nas pescarias de curraes [currais, ou seja, armadilhas de apanhar peixe], e trepaçoens [trepações] de coqueiros, em cujos passatempos será recebida com agrado a viola, e o samba; e aos peraltas, cada vez os fará mais dezenvolvidos na conjugação do verbo surripio [surrupio, ato de surrupiar]”.

Esse mesmo jornal em diversas edições de 1834, ao relatar incursões contra os insurgentes da Cabanada, refere-se a uma localidade chamada Samba, também Engenho do Samba e Ponto do Samba. O Diário do Governo do Ceará de 1832 (p. 360) menciona igualmente um Engenho Samba. Idem o Correio Oficial do Rio de Janeiro de 1833 (p. 363) e 1834 (p. 67): Engenho Samba do distrito das Alagoas, de propriedade de José Theodoro Pereira.

A Nova Sentinela da Liberdade baiana de 23 de outubro de 1831, alude aos “marotos solteiros sem tamba [bebida indígena fermentada] nem samba; porque esta é a gente do Comércio”.

Na edição de 5 de janeiro de 1856 do Diário do Rio de Janeiro (p.2), na seção de notícias da Província do Ceará, vemos uma menção a um samba (folia) associado a desordem, associação essa que se tornaria comuníssima no noticiário da imprensa na virada do século XIX ao século XX:


No ano seguinte, em 21 de maio (p.2), nas notícias da Bahia, esse mesmo Diário do Rio de Janeiro menciona um espetáculo teatral com “crioulas” dançando o samba:


A coluna “Carteira do Repórter”, assinada por Zé Mimoso, do Correio Paraense de 28 de setembro de 1893 narra uma cena tragicômica num samba cheio de “embigadas” [umbigadas].



A primeira descrição de um "samba" na literatura brasileira acredito que tenha sido na obra clássica do naturalismo brasileiro A carne de Júlio Ribeiro, de 1888 (se alguém tem conhecimento de uma descrição literária anterior por favor me informe). A cena descreve uma dança dos escravos, em torno de uma fogueira, no terreiro em frente às senzalas, após um dia de trabalho, ao som de dois atabaques e vários adufes:

Os que não dançavam, que não tomavam parte no samba, grupavam-se aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio, enlevados, absortos.

Do solo batido pelo tripudiar de tanta gente erguia-se uma nuvem de pó, avermelhada pelo clarão da fogueira.

A garrafa de aguardente andava de mão em mão: não havia copos; bebiam pelo gargalo.

Ao cheiro de terra pisada, de cachaça, de sarro de pito, sobrelevava dominante um cheiro humano áspero, aliáceo, um odor almiscarado forte, uma catinga africana, indefinível, que doía ao olfato, que cortava os nervos, que entontecia o cérebro, sufocante, insuportável.
[...]

A rapariga dormia, dormia profundamente, respirando alto, em estertores.

Fora, o samba continuava; ouvia-se tutucar dos atabaques, e o estrupido surdo dos pés; sonoro, melancólico, plangente, repercutiu o estribilho:

Eh! Pomba! eh!

Em 1890 Alexandre Levy compõe uma peça orquestral intitulada Suíte Brasileira cujo terceiro movimento, inspirado na cena do samba de A Carne, intitulou-se Samba.

Em folhetins publicados na imprensa na passagem do século XIX para o XX, várias são as menções a sambas. Por exemplo, no conto “O Francellino” de Mario Negreiros, publicado na edição de julho de 1898 da “revista mensal de lettras, artes e sciencias” Genesis, encontramos este trecho:



Nas notícias dos jornais dessa mesma época o samba costuma estar associado a arruaças, bebedeiras, ocorrências policiais. Vejamos alguns exemplos:

Cidade do Rio, 14 de novembro de 1900:


Gazeta da Tarde, 30 de janeiro de 1896:


Gazeta da Tarde, 11 de novembro de 1901


Costuma-se mencionar uma suposta “repressão” ao samba no início do século XX. A minha impressão, ao ler esses jornais, é que não se reprimiu o samba em si, o ritmo, mas as rodas de samba, devido ao alarido, à arruaça (o pessoal ficava bêbado), não por causa da música em si. Imagine numa época sem carros, sem sirenes de ambulância, sem rádios, sem aparelhos de som, sem aviões sobrevoando, o silêncio sepulcral das noites ser quebrado por uma roda de samba. Aquilo incomodava os vizinhos, que chamavam a polícia. Meu amigo Alexei Bueno, a quem consultei, confirma essa minha impressão: “O problema era exatamente esse, arruaça, barulho, bebedeira, numa época onde se dormia muito cedo, pois nem rádio havia, e grande parte da população nem um romance podia ler, pois era analfabeta.” 

O samba como gênero musical nasceu em meio à população negra carioca (em grande parte, ex-escravos) da Zona Portuária (Pedra do Sal, etc.) e Cidade Nova (Praça XI, etc.) nas primeiras décadas do século XX. Em 1917 gravou-se o primeiro samba (samba-maxixe, mais propriamente), Pelo Telefone, registrado por Donga. Para quem o acusou de ter se apropriado de uma obra de criação coletiva, Donga teria replicado: Samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro. E o resto da história você já conhece.


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