ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

25.1.06

GAMBOA & MACHADO DE ASSIS

A Gamboa é como o caviar da canção do Zeca Pagodinho: a maioria de nós nunca viu, só ouviu falar. Foi onde nasceu Machado de Assis. Aliás, sua obra é plena de referências a ela. Por exemplo, no “Conto de Escola”, lemos: “Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, e depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na praia da Gamboa.” Em Quincas Borba, Rubião passeia calmamente por lá: “Mas Rubião não distinguia nada; via tudo confusamente. Foi ainda a pé durante largo tempo; passou o Saco do Alferes, passou a Gamboa, parou diante do cemitério dos ingleses, com os seus velhos sepulcros trepados pelo morro, e afinal chegou à Saúde. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, becos, muita casa antiga, algumas do tempo do reis comidas, gretadas, estripadas, o cais encardido e a vida lá dentro. E tudo isso lhe dava uma sensação de nostalgia...”

As fotos a seguir são minhas. Os textos (com pequenas modificações) foram extraídos do livro de Alexei Bueno, Gamboa (Relume Dumará, 2002) . No final você tem um vídeo onde falo sobre minha velha paixão por Machado de Assis.



Foi em homenagem ao aviador precocemente morto que a antiga praia do Valongo, passou, naquele já distante ano de 1922, a se chamar rua Sacadura Cabral.

Entre muitas construções notáveis, como os sobrados que fazem esquina com a ladeira do Livramento, um dos trechos mais fiéis à ambiência de um Rio colonial, destaca-se a antiga estrebaria (hoje uma garagem).

Da fisionomia desse trecho urbano restou, em estado lamentável, o conjunto arquitetônico e paisagístico do jardim e morro do Valongo, tombado pelo Iphan em 1938. [PS. O Jardim Suspenso do Valongo foi revitalizado em 2013 no contexto do projeto Porto Maravilha.]

Foi no morro do Livramento, como todos sabem, que, em 21 de junho de 1839, na chácara da viúva do senador Bento Barroso Pereira, nasceu Joaquim Maria Machado de Assis, no exato local onde hoje se ergue uma antena de telecomunicações.

Mais adiante alcançaremos a antiga praça da Harmonia, atual Coronel Assunção, onde sobrevive um belo conjunto de casas ecléticas, o prédio do Quinto Batalhão da Polícia Militar e...

...o complexo de construções do Moinho Fluminense, talvez o mais impressionante e monumental conjunto de arquitetura industrial do Rio de Janeiro.

Monumental edifício educacional do Império é a antiga Escola Municipal José Bonifácio, atualmente um centro cultural, na rua Pedro Ernesto, 80.


Na Sacadura Cabral, 357, temos o Bar Sulista, voltado para a velha praça da Harmonia e decorado com os famosos painéis de Nilton Bravo, o Miguel Ângelo dos botequins.


19.1.06

TUDO NA VIDA É PASSAGEIRO

Paulo da Mata-Machado Jr.


De todos os feitios, tamanhos e cores. Quando comecei a dar conta do mundo, enfiado em um imenso quintal suburbano do Rio de Janeiro, os velhos daqueles tempos deixavam bem claro que já não havia mais salvação. Bom tinha sido no tempo deles, eu jamais poderia ser feliz, pois os bondes não eram mais o que tinham sido, as diferentes versões para cada ocasião específica tinham sido substituídas pela sem-graça da oferta única do coletivo de dois carros, bancos de madeira e um ou dois estribos.

Eu não tinha coragem de discordar abertamente, mas na certeza decorrente das minhas ponderações e profundas reflexões durante aqueles primeiros três ou quatro anos da minha existência, sabia que não podia ser tão ruim assim. Afinal, velhos tendiam naturalmente ao pessimismo: má-digestão, intestino preso, rugas...

Em todo o caso as histórias me fascinavam. Diziam que bondes os havia para diversas ocasiões e propósitos da vida urbana: engalanavam-se para casamentos, esfumavam-se funéreos para enterros, transportavam mudanças, móveis, objetos e animais domésticos, eram utilizados como ambulâncias do sistema de saúde pública ou em campanhas de vacinação. Sem falar, é claro, do ilustre passageiro que ia, todo pimpão, lindeiro ao belo tipo faceiro...


E apesar da apregoada decadência e do pessimismo dos antigos, ainda passamos bons anos juntos, eu e eles. Foram mais de dez anos, do bondinho vagaroso e amável da Ilha do Governador aos elegantes e algo empelicados "semoventes" (como os imaginava o poeta) das linhas da cidade, que iam das Barcas ou do Tabuleiro da Baiana para a Tijuca, Camerino, Penha, Bonsucesso, São Cristóvão, Méier, Engenho de Dentro, Copacabana, Urca, Ipanema, Leblon, Gávea, Jardim Botânico... tantos locais, uma lógica urbana perfeita e absolutamente funcional.

Mais tarde, já adolescente, passei a considerar Belo Horizonte uma das mais civilizadas cidades do Mundo: os bondes eram vagões fechados, com portas de entrada e saída, corredor central, bancos laterais e cada um com sua janela fechada com vidros!

Depois percebi que nem todos eram assim, veros bondes europeus: a maioria, para dizer a verdade, estava mais para o heróico e ronceiro bondinho da Ilha que para os orgulhosos “ingleses de polainas” do Rio.

Até em São Luís do Maranhão andei de bonde. Em ruas silenciosas, calçadas com paralelepípedos e ladeadas de casinhas amáveis, onde ecoavam as músicas de
Vicente Celestino, cantadas do estribo por um menino, tipo popular da cidade, pouco maior que os meus seis anos daqueles tempos e que dessa maneira ia amealhando alguns tostões.

Soube depois, embora não chegasse a tempo para ser transportado por eles, que existiam bondes em Juiz de Fora, Belém, Campinas, Curitiba, Porto Alegre... e mais um punhado de cidadezinhas amáveis e acolhedoras pelo Brasil afora, daqueles modorrentos anos cinqüenta.

Anos de transição, percebemos quando chegou a década seguinte. Como transitórios todos somos: eu, o cantorzinho, meu pai, os velhos da remota infância. À exceção, claro, da felicidade daqueles tempos, do condutor e do motorneiro...

Fotos de bondes antigos obtidas na Internet. Saiba tudo sobre os bondes visitando o site do Novo Milênio. E pra quem gosta de bondes, uma sugestão: visitar o Museu do Bonde em Santa Teresa (Rua Carlos Brant, 14 - Tel: 2220-1003). Outra dica: o documentário de Jean Manzon sobre os bondes cariocas no YouTube.

11.1.06

O MAR AZUL

Rogel Samuel



Volto de Copacabana, onde o vi. O mar, aquele mar azul.
"Vontade de cantar, mas tão absoluta, que me calo, repleto", escreveu Drummond ao vê-lo. Ao vê-lo belo. E azul. Tão azul.
O problema do mar, de sua beleza, é que sua beleza é infinita, é azul, azul profundo.

Oh, sim, estamos, entramos no Verão. Voltemos ao Verão. Que venha o verão. Como no início dos Cantos, Ezra Pound diz:

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.




Que mar é esse? Este é o mesmo mar de Ulisses, o mesmo mar de Pessoa, de Camões, que canta:

Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas


Desconhecido embora, um poeta amazonense, Sebastião Norões, escreveu, há décadas, em 1956, um soneto perfeito, exemplar, único, sobre o mar. Seu título, "Mar da memória":

Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.

O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,

delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.

Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.


No verão, o brilho intenso, os ares claros, as nuvens brancas. O calor é pegajoso, pecaminoso.
Quando jovem, morava perto do Arpoador. Domingos de sol, festivos, de verão extremo.
O sol ficando forte, vem a vida, as canções. O metalizado brilho do passado estandartiza, nos ares, as claras visões dos cânticos do sol. É o verão do mar, que para o amor se vai abrir. Quando amar se espera. E o mar, o mar azul, "essa incógnita de anil que se destrança / em ânsias de infinito e me circunda / em grave tom de inquietude langue".

É langue todo verão, e assim esqueço, me esqueço, penso que ainda jovem. Me lembro dos dias de verão do Pier. Quem tem sonhos não morre. "O mar de quando eu era, não agora. / Quando as retinas fixavam tredas / a incompreensível mole líquida e convulsa. / E o pensamento convidava longes."
O mar convida longes. Atravessa o longe, a linha, o afastado horizonte. Delimitando 'imprevisíveis rumos / viagens de herói e de mancebo guapo."
Naquele tempo, acampávamos nas praias desertas, e em desertas praias amávamos.
Um dia, em Búzios, um grande e luxuoso barco ancorou na praia onde acampávamos, na noite de Reveillon. De longe podíamos ver mulheres elegantes, os garçons, as champanhas. Fogos de artifícios. Ao nascer do sol, alguns vieram, num bote menor, até a praia. Algumas mulheres, de vestidos longos e brancos, ainda com as jóias, jogaram-se no mar. Outras, completamente nuas. Era a Era de 60, onde tudo se permitia, mesmo o ser feliz, nas « marítimas águas consagradas, / que do gado de Próteo são cortadas." E «nossos corpos também no pranto aflito, / E ventos vindos pela popa nos / Impeliam adiante, velas cheias». Sim, sim. « Por artifício de Circe, / A deusa benecomata."



Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira, Amazonas. Mas estudou em Fortaleza, daí sua fixação no Mar. Aos 18 anos voltou para Manaus, fez Faculdade de Direito. Foi meu professor no Colégio Estadual. Chefe de Polícia do Estado, onde protegeu o comunista Jorge Amado. Era professor de Geografia.
A geografia do Mar.
Quando éramos jovens, Norões foi nosso professor e Mestre. Posso vê-lo, atrás das baforadas de cigarro. As lentes grossas. Norões impressionava, carismático, culto. Nunca pensei que faria sua "apresentação", anos mais tarde, quando escrevi um prefácio para a segunda edição de seu livro "Poesia Freqüentemente", de 1956. E é uma surpresa sempre que releio seu livro, sua poesia está mais viva ali, sua poesia é azul, lá onde o horizonte mergulha. E desponta.

O mar azul.


Rogel Samuel é autor de O Amante das Amazonas e Novo Manual de Teoria Literária. A crônica "O Mar Azul" foi originalmente publicada no site Blocos. Conheça o blog de Rogel clicando em seu nome.