ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

26.9.21

AFINAL, MACHADO DE ASSIS ERA NEGRO, BRANCO OU MULATO?

Nos últimos tempos virou moda celebrar a "negritude" do escritor-mor brasileiro. Assim, o crítico literário norte-americano Harold Bloom considera-o "the supreme black literary artist to date". Até membros da Academia Brasileira de Letras, com denso estofo cultural, escrevem asneiras como "Machado era mestiço, filho de um pardo forro e de mãe negra" (Arnaldo Niskier na Revista Brasileira de abril-maio-junho de 2008, pág. 13) e  " [...] filho de Francisco José, um operário mulato pintor de paredes, e de Maria Leopoldina, uma lavadeira negra e neta de escravos" (Murilo Melo Filho, idem, pág. 26). Assim, a fim de esclarecer esta questão, reproduzo aqui o verbete "MULATO" do DICIONÁRIO DE MACHADO DE ASSIS de UBIRATAN MACHADO (cuja segunda edição foi lançada recentemente pela Imprensa Oficial paulista), QUE ABORDA A QUESTÃO COM OBJETIVIDADE, HONESTIDADE E EQUILÍBRIO. Imagens de Machado obtidas na Biblioteca Nacional Digital (exceto a última, do catálogo da exposição Machado Vive). Aos machadianos recomendo a aquisição do dicionário do Ubiratan, não é barato mas vale o investimento.


Machado de Assis em desenho de M.J. Garnier

Machado de Assis em gravura de 1880

Machado de Assis e Joaquim Nabuco em foto de Augusto Malta de 1906

Machado de Assis (esquerda) e grupo em foto de Augusto Malta de 1906

Há muita especulação a respeito de como Machado encarava o fato de ser mulato. Alguns estudiosos insinuam que ele se ressentia de sua cor, numa sociedade dominada por brancos. Simples hipótese. Nenhuma prova, nenhum registro contemporâneo. Há depoimentos, contraditórios, prestados após a sua morte, por pessoas que com ele conviveram. Em certa ocasião, teria dito a Condessa de São Mamede que a mulatice era para ele “um simples acidente”. Francisca de Basto Cordeiro, sua vizinha e amiga por longos anos, garante que “jamais conseguiu dominar o complexo de inferioridade que lhe amargurou a existência a ponto de evitar em todas as suas obras a palavra ‘mulato’ e, se acaso a ouvia em conversas entartarugava-se todo, franziu o sobrolho como se nela houvesse uma indireta com o fito de magoá-lo e, por mais interessante que fosse a conversa, dava o assunto por encerrado”. Esse depoimento deve ser encarado com extrema cautela, pois a depoente encontrava-se em idade avançada e, em vários trechos, conta um fato para logo adiante afirmar o contrário. A obra machadiana também o desmente. Assim, em “A parasita azul”, conto da mocidade, quando se é mais sensível à crítica alheia, empregou a palavra, sem revelar qualquer ressentimento, mas com simpatia: “Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante, que olhava para ele com curiosidade”. Há trechos semelhantes em outras obras. 

Isso não significa que não tenha sentido na pele a discriminação racial. Teve de enfrentar o problema pelo menos em uma ocasião, durante o seu noivado, quando encontrou oposição de alguns parentes de Carolina, por ser mulato. Socialmente, impôs-se sem demonstrar qualquer ressentimento racial, e nunca evitou, também, como os mulatos arrivistas, entre brancos, a amizade com pessoas de sua cor, como provam os inúmeros negros e mulatos de suas relações: Paula Brito, Teixeira e Souza, Ferreira de Menezes, Francisco Otaviano. No entanto, havia receio de feri-lo, chamando-o de mulato. Um homem da inteligência de Joaquim Nabuco, abordando a psicologia do amigo, considerou que jamais “teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese (carta a José Veríssimo, datada de Washington, 25 de novembro de 1908). Evidente que sim, pois indicaria uma clara discriminação ou desejo de ferir. De qualquer maneira, se teve ressentimentos raciais, soube com eles conviver e dificilmente o problema assumiria nele, como em Lima Barreto, um aspecto trágico. 

Machado detestava a autopiedade. Inclusive a autopiedade racial. Procurou ajustar-se e se embranquecer através da ascensão social, o que irritou alguns contemporâneos. O professor Hemetério José dos Santos, em seu famoso artigo publicado após a morte de Machado, diz que ele foi um trânsfuga e um traidor de sua raça. Essa opinião teve, e ainda tem, seguidores. Os que consideram que superou os conflitos íntimos decorrentes da mestiçagem lembram a carta que Gonçalves Crespo lhe enviou, datada de 1871, na qual o poeta das Miniaturas escreve que já o conhecia de nome havia algum tempo: “De nome e por uma secreta simpatia que se me levou quando disseram que era... de cor como eu. Será?”. O fato de conservar a carta seria uma prova de superação do problema. A atenuação simbólica da mestiçagem de Machado, e até o seu desaparecimento, por uma espécie de mágica social, encontra um advogado em Joaquim Nabuco, que, na carta acima mencionada, diz considerá-lo “um grego da melhor época”, “um branco, e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica”. Esse processo de embranquecimento culminou com a sua certidão de óbito, onde consta que o falecido era de cor branca. Uma fantasia semelhante à tese de uma corrente atual de que o escritor era negro e determinada foto sua teria sido forjada, como vemos adiante. Machado não era negro. Nem branco. Mas mulato, mestiço, resultado da intensa miscigenação racial brasileira, como demonstra sua ascendência. O pai, Francisco José de Assis, era “pardo forro” (isto é, mulato livre), como consta de sua certidão de batismo, realizado em 11 de outubro de 1806. A mãe, Maria Leopoldina, nasceu na Ilha de São Miguel, nos Açores. Branca pura. O filho do casal era, pois, mestiço

Os testemunhos da época são abundantes e unânimes ao falar de sua mulatice. Nenhum deles lhe atribui a cor branca ou negra. Um dos depoimentos mais importantes é o de um seu inimigo e detrator implacável, o verrineiro Apulco de Castro. Como Machado, era pardo, mais bem mais escuro. Jornalista venal, atacou o colega por diversas vezes. Pois bem, esse sujeito hostil, ao retratar o escritor de forma satírica na série “Retratos a Carvão”, no jornal de escândalos O Corsário, informa com muita clareza a cor de sua pele: “Espiègle [travesso], macambúzio, preocupado, um Hamlet em brochura... porém moreno. Um talento modesto. Dorme no Clube Beethoven”. Moreno, isto é, uma forma brasileira de dizer mulato. Não poderia haver esclarecimento mais imparcial sobre a cor de Machado, exatamente por vir de um inimigo violento, sem qualquer escrúpulo, e pardo. Entre os vários outros testemunhos, podemos lembrar o de Olavo Bilac, que conviveu com Machado por mais de vinte anos e ao retratá-lo nos informa ser ele um homem de altura regular, de 68 anos, mais ou menos. Moreno”. Há inúmeros outros depoimentos de contemporâneos, de José Veríssimo (“mulato, foi de fato um grego da melhor época”), de Joaquim Nabuco, de Francisca de Basto Cordeiro, do negro Hemetério José dos Santos. Apesar de tudo, a citada corrente proclama que uma das fotos mais divulgadas de Machado, tirada na década de 1890, teria sido forjada, embranquecendo a tez negra do escritor. A tal foto utilizou filme fotográfico, inventado poucos anos antes, cuja baixa sensibilidade exigia exposição demorada à luz. O que explica pessoas e paisagens saírem mais claras (e, quando mais claras, mais indistintas, sem contraste, lavadas, como se diz), mas sem chegar à mágica de mudar a cor de ninguém. Não é o caso da foto em questão, perfeita, de alta qualidade, sem sombra de manipulação. As várias outras fotos de Machado, sozinho ou em grupo, são o melhor desmentido a tal tese. Nos retratos coletivos, o criador de Capitu aparece ao lado de várias personalidades, sendo sua pele levemente mais escura do que a dos brancos que o cercam. É o que se pode comprovar nas fotos com Joaquim Nabuco (foto acima), Pereira Passos etc., numa reunião da Panelinha em que se encontra entre João Ribeiro e Lúcio de Mendonça, e em outra fixada em 1906, no almoço oferecido ao presidente da Venezuela Uribes y Uribes (foto acima). Será que os fotógrafos, durante mais de meio século (a primeira foto conhecida de Machado é de 1864), conspirando entre si e apesar de não haver tecnologia disponível para tal, fizeram o milagre de embranquecer a figura de Machado, sem tocar nos demais do grupo? Como explicar tal fenômeno?


Machado de Assis aos 57 anos

Machado de Assis aos 25 anos

Outra do Machado, extremamente nítida, aos 25 anos, pelo fotógrafo Pacheco da Casa Imperial

OBRIGADO POR VISITAR MEU BLOG, E VOLTE SEMPRE. VEJA MEUS VÍDEOS SOBRE MACHADO DE ASSIS E O MORRO DO LIVRAMENTO, ONDE ELE NASCEU:
 

19.9.21

EXPOSIÇÃO "HÁ LUZ ATRÁS DOS MUROS" NO MUSEU DE ARTE OSÓRIO CESAR (MAOC), EM FRANCO DA ROCHA

Você pega o trem na estação paulistana do Brás e em menos de uma hora está em Franco da Rocha, cidadezinha aprazível, colorida, arejada, arborizada, diferente do "mar de prédios" paulistano. À direita, a meio quilômetro da estação, você chega ao museu (e atrás dele, as antigas instalações do complexo psiquiátrico). Você assiste a um vídeo que conta a história do Osório Cesar, marido da artista Tarsila do Amaral, pioneiro na humanização do tratamento psiquiátrico no Brasil, inspirador da doutora Nise da Silveira, e se surpreende com o altíssimo nível do acervo de obras de arte dos antigos internos. Bom passeio para uma tarde de sábado ou domingo.


Istvan Csibak, Museu Dr. Osório Cesar, 1989, acrílica, guache e óleo sobre papel


O museu, instalado na antiga casa do diretor, que compunha o conjunto do projeto original do Hospital Psiquiátrico do Juquery, concluído em 1898. Moraram nesta casa Francisco Franco da Rocha e Antônio Carlos Pacheco e Silva. Com o passar do tempo, também foi sede de uma importante escola de enfermagem. Em 1985 passou a sediar a primeira fase do museu, abrigando também o atelier dos artistas do Juquery. Fechado em 2005, mais adiante foi restaurado e reinaugurado em 2020 com a exposição de longa duração "Há luz atrás dos muros" aqui mostrada.

Na exposição “Há luz atrás dos muros”, que (re)inaugura o Museu de Arte Osório Cesar (MAOC), apresentamos a rica criação de mais de 60 artistas que, em diferentes momentos da vida, tiveram suas trajetórias marcadas pela internação no Complexo Hospitalar do Juquery.

Em meio a um dia-a-dia de violações à dignidade humana, os artistas-internos aprenderam técnicas e conhecimentos em frequências e interesses tão diversos quanto suas trajetórias. Os suportes e seus modos de expressão são também variados, abarcando desenho, cerâmica, gravura, escultura e pintura. A fluência da produção e a espontaneidade alheia às questões que os artistas comuns se debatem são um fator distintivo. Recorrendo a memórias afetivas, extraindo do âmago experiências vividas ou relatando a imposta realidade, os artistas constituíram maneiras inventivas de (re)ver seus mundos, contorcendo o sentido do que é entendido como “normal”.

A mostra está organizada em dois blocos interligados. Uma seção agrupa os trabalhos por gêneros e temas transversais que compõem o acervo do MAOC, como registros da arquitetura e paisagem do Juquery; casas, animais e ambientes rurais; naturezas-mortas; construções geométricas abstratas; signos religiosos e do mundo extrassensível.

Uma seção monográfica destaca trabalhos de 14 artistas. Do período de funcionamento da Escola Livre de Artes Plásticas, estão Antônio Sérgio, Aurora Cursino, Farid Geber, Ioitiro Akaba, Masayo Seta, Caraíba, Rubens Neves Garcia e Valeriano; dos artistas que vivenciaram o Atelier de Arte do Museu, além de Masayo Seta (cuja estadia compreendeu os dois períodos), apresentamos obras de Almir D’Avila, Maria Aparecida Dias, Istvan Csibak, Otaviano, Ubirajara e Waldemar.

A apresentação desobedece a ordenamentos lineares. Antes, valorizamos os encontros fortuitos, a quebra de expectativa e caminhos labirínticos. As obras dos artistas do Juquery (artistas do mundo), testemunhos da força de vida de indivíduos que se sobrepuseram ao trauma da internação, são como luzes que, não só no fim, mas por detrás das paredes do túnel, dos muros reais ou imaginários, alargam frestas, alicerçam mundos.

Hélio Menezes

Pedro Quintanilha

Curadores


Esquerda para direita e de cima para baixo: Tamara, Sem título / Autoria desconhecida / José Otaviano Rafael, Sem título, 1998 / Conceição, Sem título, 1989 / Cleusa, Sem título, 1976 / José Valeriano Annes, Sem título

Ioitiro Akaba, Bandiza, óleo sobre papel, sem data

Istvan Csibak, Freud, 1994, acrílica e óleo sobre tela

José Otaviano Rangel, Casal Entrelaçado, 1994, óleo e tinta de tecido sobre tela

Istvan Csibak, Espelho Mágico, 1994, óleo sobre tela: Espelho meu diga se existe homem mais feio do que eu

Farid Geber, sem título, sem data, llnoleogravura

Aurora Cursino dos Santos, Autorretrato, sem data, óleo sobre papel

Quatro obras (década de 1950) de João Rubens Neves Garcia, todas sem título

Waldemar Lúcio Raymond, sem título, 1990, giz de cera, hidrocor e pastel oleoso sobre papel

Quatro obras de José Otaviano Rafael

Istvan Csibak, Autorretrato, 1996, grafite e guache sobre papel: Sou natural da Ungria Capital de Budapest

Almir D'Ávila, O sanhaço comendo goiaba, 1993, grafite e guache sobre papel

Arte no Juquery

A história da arte produzida no Juquery é uma história das técnicas, das palavras e, sobretudo, do tempo e do encontro entre artistas, pesquisadores e profissionais da instituição que promoveram o fazer artístico e a preservação do acervo.

A data da primeira obra de arte é incerta, pois, entre 1920 e 1930, há produções artísticas nas oficinas de ergoterapia, nos desenhos em papéis descartados ou paredes do hospital e com o uso de suportes incomuns, como esculturas feitas de miolo de pão.

Em 1949 é criada a Seção de Artes Plásticas do Juquery, com direção do psiquiatra Mário Yahn. Na década de 1950 a seção foi transformada em Escola Livre de Artes Plásticas (ELAP) e Osório Cesar passa a ser o diretor, até 1964. A ELAP resistiu em suas atividades até a década de 1970, e por ela passaram artistas como Maria Leontina, Clélia Rocha e Moacyr Rocha, que orientaram os artistas do Juquery, procurando manter a liberdade de escolha de cada um/a na utilização de materiais e técnicas para as suas composições.

No ano de 1985 é inaugurado o Museu Osório Cesar, com objetivo de preservar a coleção da ELAP e abrir o Atelier de Arte. Nesta segunda fase, as obras produzidas são incorporadas ao museu, ampliando, assim, seu acervo. Em 2006, a instituição é fechada, após o incêndio que atingiu o prédio administrativo e a biblioteca do Juquery.

A exposição “Há luz atrás dos muros” apresenta obras que foram realizadas durante esse duradouro caminho, reabrindo com o Museu de Arte Osório Cesar.