ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

31.10.18

O QUE É FELICIDADE, de MANOEL CARLOS

Crônica de Manoel Carlos transcrita da Veja-Rio de 10/2/2010


Andei pensando nisso ultimamente. Quem me diz? Quem me explica? Quem me define com precisão qual a identidade verdadeira dessa misteriosa e maravilhosa sensação que sentimos, que nos leva a afirmar: sou feliz? Ou, pelo menos: estou feliz? No dicionário está muito claro: felicidade é satisfação. A qualidade de estar e/ou ser feliz.
Os poetas falam muito nesse estado, mais para dizer que o desejam, que o procuram e que não o encontram. Vicente de Carvalho garante que a felicidade...
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

E há também os que a encontram, mas não sabem. Ou que só ficam sabendo quando já é tarde, quando a perderam, quando a deixaram passar. Na mesma hora me vem à memória o verso de Miraí, um lindo samba de Ataulfo Alves, que, ao lembrar-se dos tempos de criança, exclama, emocionado: "Eu era feliz e não sabia!".
Lembro-me também da frase de Dorian Gray no romance de Oscar Wilde, mais ou menos assim: "Não procuro a felicidade, procuro o prazer". Mas sentir prazer não é sentir-se feliz. E estar feliz não é estar repleto de prazer? Mas também sabemos que a satisfação de Dorian Gray era extraída da dor de viver. E, principalmente, da dor que nos causa o tempo, o passar dos anos, o envelhecimento. Por isso, para ele, felicidade era ser eternamente jovem e belo.
Para os poetas e para a poesia, ser infeliz é mais inspirador do que ser feliz. Queixar-se da vida é mais comum do que louvá-la. Até nas novelas. Se o personagem vive sorrindo, logo alguém diz que ele é chato, cansativo, artificial.
Meu amigo Reynaldo é radical:
– Ninguém gosta de pessoa muito feliz. Dessas que exalam euforia e contentamento. Parece um acinte, uma afronta. Como se pode viver sem conflitos? Ser infeliz é que é o normal, porque é mais duradouro.
E Vinicius de Moraes concorda, ao afirmar:
Tristeza não tem fim
Felicidade sim.


Manuel Bandeira

Ah, os poetas! Alguns, como o nosso Manuel Bandeira, louvam a morte num poema precisamente com o nome "Felicidade":
Oh, ter vontade de se matar,
bem sei é coisa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

Mas por que estou eu a gastar tinta, como se dizia antigamente, no tempo em que se escrevia a mão, com essa palavra tão usada e ao mesmo tempo tão obscura, que todo mundo conhece, mas que ninguém define com precisão, e que os dicionários registram, sem ênfase, em duas ou três linhas? Conto a vocês. É que lendo Um Ensaio Autobiográfico, de Jorge Luis Borges, livro que nasceu de alguns encontros que o admirável escritor argentino manteve com o americano Norman Thomas di Giovanni, seu amigo e principal interlocutor, deparei com esta declaração que Borges faz no fechamento do livro e que, pedindo licença à editora e aos tradutores Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz, reproduzo aqui, de presente aos meus queridos leitores:
"Suponho que já escrevi meus melhores livros. Isso me dá uma espécie de tranquila satisfação e serenidade. No entanto, não acho que tenha escrito tudo. De algum modo, sinto a juventude mais próxima de mim hoje do que quando era um homem jovem. Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que eu procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado".
Jorge Luis Borges nasceu em 1899 e morreu em 1986, aos 87 anos. O ensaio foi escrito em 1970, quando ele tinha 71 anos.

Busto de Borges em Buenos Aires

10.10.18

CRIMINALIDADE NO RIO DE JANEIRO NO TEMPO DE MELO MORAIS FILHO



Alguns saudosistas têm a mania de recordar um passado “ideal”– quando os produtos eram mais baratos, havia menos violência, a vida era mais saudável – que só existe em suas fantasias. É só relembrar a história da humanidade com sua sucessão de conflitos sangrentos, invasões, atrocidades. Se o Rio no passado ainda não sofria a “guerra do tráfico”, teve, por exemplo, a Revolta da Armada, cujas balas perdidas, só em 25 de setembro de 1893, mataram um vendedor de balas no Largo do Rocio (Praça Tiradentes), uma dançarina italiana na Rua do Lavradio, além de ferirem duas crianças no Catete e danificarem diversos prédios, entre eles a igreja da Lapa dos Mercadores cuja torre foi atingida.


Nesse sentido, o livro Fatos e Memórias, publicado em 1904 e nunca mais reeditado, de Mello Moraes Filho (Melo Morais Filho na ortografia atual)  sobrinho neto de Antonio de Moraes Silva, autor de um dicionário da língua portuguesa publicado em 1890, e tio-avô de Vinicius de Moraes, que dispensa apresentação  é revelador porquanto ele mergulhou fundo no submundo carioca. “Dos muitos cronistas da vida carioca do período compreendido entre o fim do século XIX e o primeiro quartel do XX, Melo Morais Filho é dos maiores e dos menos lembrados”, diz Alexei Bueno, em Prefácio a uma edição do livro a ser futuramente lançada.

Também Melo Morais, naqueles tempos já distantes, alude a um Rio de Janeiro do passado “quando a confiança predominava entre os pacatos habitantes, e que se podia sem receio dormir a portas abertas”. Porque “agora”, ou seja, no início do século XX, quando ele escreve o livro, “ladrões de rua [...] dia e noite exercem sua arriscada profissão dentro e fora desta cidade, vergonhosamente policiada”. O triste fato é que “Não há contestar que nesta populosa capital assentaram permanentes acampamentos malfeitores e ladrões, que por aí livremente pululam, transfigurando-a em alguma coisa de arriscadamente habitável. Aqui rouba-se por todas as formas, assalta-se a qualquer hora do dia e da noite, e ninguém poderá assegurar, deixando os sobressaltados lares, se a eles voltará sem a carteira, sem o relógio, ou mesmo sem a vida.

A seguir, mais alguns trechos desse curioso livro do alvorecer do século XX que esperamos ver em breve relançado. Você também pode acessar a edição original da obra clicando aqui. As imagens foram extraídas de diversos capítulos da edição original do livro.



Para melhor formular um critério sobre o que a respeito asseguramos, basta percorrer por instantes as folhas diárias, que fatigadas de publicarem ao acaso notícias de repetidos ataques à propriedade e aos domicílios, concentraram em coluna especial tal gênero de narrativas, proporcionando ao historiador futuro fácil busca, com o fim de descrever um período social que envergonha e humilharia a qualquer povo de raso nível.

Garantidos pela quase uniformidade da justiça pública, que indulta horripilantes crimes, acoroçoados por autoridades e agentes de segurança, dispostos a dar-lhes fuga (luceres), porque auferem ocultos proventos, os gatunos e ladrões assenhorearam-se desta cidade, constituídos em classes e em turmas, com organização própria, isto é, com os recursos precisos para escaparem à letra morta da lei, com correspondentes imediatos que lhes restituem em moeda o valor do furto e do saque, com rustidores (depósitos) que resguardam as provas autênticas do delito, e com gíria privativa a cada parcialidade no exercício das depredações.

Salientando-se mais temerosa que os precedentemente assinalados, uma horda de malfeitores recebeu dessa população de réprobos o crisma de escrunchantes (arrombadores de porta), criando para seu uso um argot fixo, no que se refere ao instrumental do ofício e às peripécias decorrentes e intercorrentes à ação.


Assim aparelhada, divide-se a magna classe dos escrunchantes em gravateiros (garroteadores), em as­saltantes à mão armada, sonambulistas (narcotiza­dores), e renas (ladrões de navios ancorados); não mencionando os penosos (ladrões de aves), amostriqueiros (ladrões de amostras), etc., turba anônima do gatunismo das ruas e dos quintais.

Desde 1866 são frequentes, entre nós, os roubos de igreja. O primeiro de que reza a tradição popular foi cometido na matriz de Santo Antônio dos Pobres, à rua dos Inválidos, por um célebre vigarista cearense, punguista e escrunchante, Pamplona de tal, que num ataco (assalto) àquele templo, depois de ter pilhado alfaias e adereços pertencentes às imagens, substituiu o resplandor do pa­droeiro por um chapéu de palha, que trazia na ocasião, pregando em redor larga tira de papel com o seguinte dístico: "Quem é pobre não tem luxo". [...]


Em pequenas quadrilhas, nesta cidade, os assaltos são cometidos ordinariamente à noite.
Nunca menos de quatro se incumbem do trabalho (roubo). A ferramenta do estilo e armas de ataque limitam-se ao pé-de-cabra, à dentosa (chave de abrir burras), ao alfinete (faca), cabelo (serra fina), a lanterneta (lanterna de furta-fogo) e aos berrantes (revólveres), indispensáveis à proteção das saídas e entradas dos referidos malfeitores. [...]


Postos em fuga, é vulgar entre os assaltados e os assaltantes, entre estes e a vizinhança alarmada, haver prolongados tiroteios, verdadeiros combates, dos quais resultam mortes e ferimentos.

Em fins de 1900 registrou a imprensa desta capital um caso de roubo à mão armada, uma escalada de ladrões a uma habitação em freguesia suburbana, que se destacou em meio de dezenas de outros ultimamente praticados, não só pela temeridade dos sicários, como também pela desfaçatez com que esses miseráveis, em face da vítima ultrajada, declararam em seus depoimentos torpezas que lhe macularam o lar.

Os gatunos arrombaram a parede da cozinha, servindo-se do orifício dos tijolos arrancados, penetraram no prédio em horas adiantadas da noite, quando o sono havia irmanado com a morte a quietação dos domiciliados.


E o revólver do bandido, apontado à fronte de uma senhora que acordara em sobressalto, impôs-lhe a revelação dos lugares certos onde existiam jóias e dinheiro, ao passo que as sombras da meia-noite velavam cenas de lubricidade e de desgrenhado pavor.

No extremo pólo, e epilogado de ridículo, figura caricatamente o arrombamento, seguido de roubo, da joalheria Luís de Resende, à rua do Ouvidor.

Trabalho lento, e de penosa execução, os cautelosos e ignorados escrunchantes, escorregando pelo ralo das águas pluviais e tomando a direção da galeria de esgotos, brocaram para cima uma entrada comunicável com o grande compartimento de jóias, pedras preciosas e outros objetos de real valor.

Apropriando-se do opulento acervo, estimado em 200:000$000, os salteadores evadiram-se, deixando unicamente, como rastro maravilhoso da aventura, o célebre buraco, desde logo denominado pelo povo – O buraco do Resende.