ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

29.7.18

ENTRE MISÉRIA E GRANDEZA, O DIÁRIO DE DRUMMOND, de EDMÍLSON CAMINHA


 “Por que se escrevem diários?”, perguntou Carlos Drummond de Andrade, para concluir que “há de ser por força de motivação psicológica obscura, inerente à condição de escritor, alheia à noção de utilidade profissional”. Confessa que, por muitos anos, encheu cadernos com anotações sobre o dia a dia, que jamais pretendeu viessem a ter importância documental. “O impulso de escrever para mim mesmo, em caráter autoconfessional, ditou os feixes de palavras que fui acumulando e que um dia... destruí. Mas a própria destruição tem caprichos. Do conjunto sacrificado salvaram-se algumas páginas que hoje reúno em livro”. É O observador no escritório, editado pela Record em 1985.

Seletivamente, o autor publica o que anotara sobre colegas escritores ‒ Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira ‒ e figuras da política: Luís Carlos Prestes, Getúlio Vargas e Castello Branco. Muito pouco acerca da família ‒ conversa com um tio, cartas da mãe e do pai, a filha Maria Julieta que se tranca no quarto para escrever. Drummond diz pouco da intimidade dos seus e de si próprio, por pudor ou pela crença de que, sem interesse para o leitor, não deve torná-la pública.

Os registros de natureza familiar permaneceram, assim, desconhecidos até agora, quando o neto do escritor, Pedro Augusto Graña Drummond, resolveu divulgá-los no livro Uma forma de saudade: páginas de diário (São Paulo: Companhia das Letras, 2017), ano em que se lembram as três décadas da morte de quem os anotara. Pergunte-se, então: por que dar a conhecer, depois de tanto tempo, trechos do diário que a Drummond parecera melhor continuassem inéditos? Respondo: simplesmente por havê-los escrito, pois ninguém põe no papel o que não se queira venha a ser lido, hoje, amanhã ou daqui a cem anos. Assim também com outros artistas: absurdo pensar no compositor de uma sinfonia criada para que orquestra nenhuma a apresentasse; ou em um pintor cujas obras fossem para sempre escondidas no celeiro de uma fazenda; ou no teatrólogo que escrevesse dramas sob a condição de que sequer fossem lidos... Significativamente, Drummond reconhece os “caprichos” da destruição: deu fim ao diário, mas não a todas as notas; por que salvou algumas páginas, e outras não? Pedro Augusto repete, ao apresentar o livro, a explicação do avô quando entrevistado por Maria Julieta: “Para o caso em que algum neto se interessasse um dia em lê-las e assim pudesse sentir que existe uma continuidade na família, ‘um rio de sangue que flui através de uma geração para outra’”. Quem sabe, ainda, pela “motivação psicológica obscura”, inconsciente, de que um dia os leitores comuns viéssemos também a conhecê-las, desejosos de nelas escutar “o eco de um tempo abolido”, como consta à entrada de O observador no escritório.


          Cético, Drummond sabia, já dissera o amigo Bandeira, que “a vida é vã como a sombra que passa”, uma lenta e melancólica procissão rumo ao grande mistério. Assim, com a precisão de talentoso repórter e o estilo de quem sabe escrever, relata a doença e a morte de entes queridos. Em 1954, volta a Itabira para acompanhar, com parentes, a exumação dos restos da mãe: “Sob o sol intenso (...) pouco a pouco a terra foi sendo removida a golpes de escavadeira, enxada, picareta e pá (...). O primeiro osso a aparecer foi um maxilar, que nos pareceu não pertencer ao corpo de Mamãe, pelo fato de estar fora do caixão, mas pouco depois Ofélia conseguiu articulá-lo com a caixa craniana, que estava lá dentro, e que surgiu pesada de terra, nela se distinguindo apenas as cavidades das órbitas e o círculo da garganta. Com um pedaço de madeira Altivo e depois eu o esvaziamos do conteúdo terroso.” O irmão a que se refere morreria em 1961, Drummond viaja do Rio a Belo Horizonte, para o enterro: “Altivo já estava no caixão, o corpo coberto de flores, na sala de visitas. A extrema magreza e a velhice do rosto não impediam que este se mostrasse sereno. (...) Contaram-me que nos últimos dias a falta de apetite se tornara total; a fraqueza era enorme, e uma ferida se formara nas costas, pelo atrito com a cama.”

Um ano antes morrera José, nascido com problemas de saúde, como se lê no diário: “Metade do corpo dele era vermelha e ardia em febre. A outra metade, quase fria. O menino cresceu difícil e cacete. Seus nervos eram destrambelhados. Tudo isso talvez explique meu irmão, seu isolamento selvagem, sua incapacidade de ternura (...)”. Solteiro, confidencia ao mano o caso que tem, há 14 anos, com uma senhora casada, o que a levou a desquitar-se do marido. Chama-se Aida, que surpreende o escritor ao dizer que José também é dado às musas, chegou até a escrever um poema, “O cavalão”, de que terá sido, certamente, a única leitora.

Ao sabê-lo doente, Drummond visita-o muitas vezes em Belo Horizonte, mas tem de pegar de volta, no mesmo dia, o avião que faz a ponte Pampulha‒ Santos Dumont: “Maravilhosa visão do Rio iluminado, ao chegarmos. 55 minutos de voo: 1 e 5 da madrugada. Não há táxi no aeroporto. Caminho a pé até a Praça 15, onde, já desanimado, consigo fazer um motorista recolher-me em seu carro, trazendo-me a Copacabana.” Bons tempos aqueles, em que um poeta podia andar pela noite carioca, sem o menor risco de ser assaltado ou morto por delinquentes que hoje mandam na cidade...

Em 1968, Maria suicida-se com 25 comprimidos de um tranquilizante. Drummond a vê no necrotério: “Lá estava o corpo de minha pobre irmã, recoberto por um lençol, em cima da essa. O rosto tinha a brancura de sempre, com um leve tom amarelado que a morte lhe imprimira; os cabelos muito pretos, e o queixo amarrado por um pedaço de gaze”. Em meio à miséria dos que sofrem para morrer, o autor de Claro enigma emociona-se com a grandeza humana dos sobrinhos que dão tudo de si pelos pais doentes, e de mãos dadas vão com eles até o embarque para o desconhecido.

Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade são os amigos fraternos que preenchem a segunda parte do livro. Enfermo, o poeta de Libertinagem, sempre tão cioso dos assuntos amorosos, faz revelações ao colega que o visita no hospital: “Eu sempre evitei me complicar mantendo casos com mulheres de temperamento difícil. Acho que esse negócio de trepar deveria ser uma coisa simples; duas pessoas se encontram e, como se desejam, vão dormir juntas, sem necessidade de romance. Justamente para evitar casos complicados é que tenho deixado de comer muita mulher boa nesse mundo.”

Bandeira mantinha, então, relacionamento com Lourdes Alencar, “desquitada e violenta”, que lhe infernizou a vida. Ante a pressão da companheira para que se hospitalizasse, ameaçou atirar-se pela janela. “Hoje, teve desfecho o episódio da Casa de Saúde S. Marcelo, no Leblon: a direção da casa pediu-lhe que se retirasse com Manuel, em face da situação criada pela irritabilidade e intransigência da acompanhante (...)”. Os amigos unem-se para socorrer o poeta, com grandes problemas financeiros: conseguem-lhe mil dólares mensais do Itamaraty, como pagamento de direitos por publicações da obra no exterior, e a interferência pessoal do então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, para que lhe reservem um bom apartamento no Hospital dos Servidores. A dureza com que a morte nos iguala a todos é cruamente descrita: “No necrotério dos fundos do hospital, o pobre Manuel, já vestido, jazia à espera de caixão. A boca permanecia aberta, e nela se introduzira um chumaço de algodão.”

Peregrino Júnior, no cemitério, diz ao poeta de A rosa do povo considerá-lo o único em condições de ocupar a vaga de Bandeira na Academia. “Respondi-lhe que não; qualquer bom escritor preencherá bem a cadeira, não sendo necessário que seja um poeta ‒ e eu, definitivamente, não tenho jeito para isso.” Foi eleito Cyro dos Anjos, autor de O amanuense Belmiro. Mais uma proposta, dias depois: “Josué Montello, por intermédio de Rodrigo [M. F. de Andrade], convida-me, não sei com que autoridade, para membro do Conselho Federal de Cultura, que dentro em breve renovará os seus titulares. Claro que não topei.”

Essas, as páginas mantidas em segredo por quem as salvara da destruição. Pode-se concluir que o diário de Drummond, mais do que apenas uma forma de saudade, oferece-nos outra leitura: ilusoriamente distintos uns dos outros, chegaremos a termo nivelados por baixo. Não importa se Carlos, José, Maria ou Manuel: teremos vivido, todos, a miséria e a grandeza inerentes à humana condição.

24.7.18

TERRA SEM MALES, de IVO KORYTOWSKI

TEXTO ESCRITO EM MARÇO DE 2002, QUANDO EU FREQUENTAVA A OFICINA LITERÁRIA DE IVAN PROENÇA, E INCLUÍDO NO MEU LIVRO ÉDIPO



A Campanha da Fraternidade daquele ano preconizou a demarcação das terras indígenas, e os políticos brasileiros — ano eleitoral — daquela vez, contrariando a tradição, fizeram o dever de casa direitinho.

Tupã viu que, enfim, fizera-se justiça para com seu povo. Reuniu o conselho dos deuses que regem os destinos do Brasil, ele próprio, Olorum, Nossa Senhora da Aparecida etc. a fim de instaurar a terra sem males — abundância de caça e pesca, bom clima e paz — dos milenares sonhos indígenas.

Dia seguinte, estourou o escândalo no Canadá: contabilidade da Bombardier manipulada, dívida da empresa tecnicamente impagável, falência decretada. Por outro lado, sucessão de acidentes envolvendo aeronaves Airbus e Boeing fizeram com que passassem a ser vistas com desconfiança por viajantes do mundo inteiro. Da noite para o dia, a Embraer acordou como o mais requisitado fabricante de aviões do mundo, torrentes de divisas para o Brasil.

Os temidos chefes do tráfico (iluminados pelo Espírito Santo?) passaram a se comportar como criminosos de romances de Dostoiévski (mostrando que, às vezes, a vida pode imitar a arte). Acometidos de crises de consciência e profundos remorsos, depuseram os fuzis, granadas e bazucas, entregaram-se às autoridades policiais, alguns se converteram à religião evangélica, contritos. Graças a Deus!

Na outra ponta, convencido enfim dos terríveis malefícios do cigarro, o Congresso proibiu sua fabricação e venda em todo o território nacional. Mas para evitar o fechamento da Souza Cruz e os terríveis problemas sociais que daí decorreriam, a fábrica foi autorizada a produzir e distribuir cigarros de diamba (tradicional erva indígena com efeitos tranquilizantes — e às vezes alucinógenos). A paz e o amor reinaram sobre o país, bicho!

Os carnavais baiano e carioca tornaram-se permanentes: todo fim de semana trios elétricos e desfiles de escolas de samba traziam alegria ao povo. Por que parar, parar por quê?

Psiquiatras, médicos e psicanalistas enfim estabeleceram cientificamente que "cerveja refresca até pensamento", o que valeu ao Brasil o primeiro prêmio Nobel (de Medicina), e o néctar dos deuses — devidamente acompanhado de praias e "gatas" de biquíni — passou a ser indicado no mundo inteiro para pacientes depressivos e ansiosos.

Intelectuais franceses decretaram a morte do Modernismo e a volta do Romantismo. A televisão brasileira aproveitou-se da onda estética pra transformar a novela brasileira — a legítima sucessora do folhetim do século XIX — no segundo maior produto de exportação do país. De repente, norte-americanos, franceses, chineses, o mundo todo emocionava-se com as peripécias rocambolescas de nossos personagens e papagueava nossas falas e macaqueava nossos hábitos e costumes. (Em Londres, por pressão da opinião pública, as vetustas cabines telefônicas foram substituídas por alegres orelhões à carioca. Yes, sir!)

Intelectuais estrangeiros, pra melhor compreender o fenômeno, passaram a estudar o idioma de Camões. A moda pegou e, em pouco tempo, cursos de Português pululavam abrindo enorme mercado de trabalho pra brasileiros aventureiros dispostos a correr o mundo.

A terra sem males, onde negros, índios e brancos de todos os matizes conviviam harmoniosamente, atraiu a atenção de cientistas sociais e de políticos do mundo inteiro: consultores brasileiros passaram a ser contratados a peso de ouro pra desatar os “nós górdios” das outras partes do mundo (consta que patrício nosso enfim solucionou a cizânia israelense-palestinense, transformando as colinas e bazares de Jerusalém num imenso Carnaval).

Os sem-terra ganharam terras, os sem-teto ganharam teto, os deserdados da sorte ganharam polpudos prêmios do Show do Milhão, Totobola, Raspadinha, e os escritores sem-livro enfim viram suas obras publicadas... e lidas!

Só quem não gostou daquela alegria toda foram os profetas do apocalipse — sisudos, auto-exilados nas torres de marfim, as sempiternas previsões pessimistas definitivamente contrariadas pelos fatos. Razão tinha o carnavalesco (e sábio) Joãozinho Trinta, ao diagnosticar: "O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual".


FINALMENTE, CONVIDO-OS A VEREM MEU VÍDEO SOBRE O TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA, DE LIMA BARRETO, AUTOR QUE CERTAMENTE ADORARIA VER O BRASIL CONVERTIDO NA "TERRA SEM MALES"

19.7.18

TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA (LIMA BARRETO): UMA RESENHA



Se vocês entrarem no verbete da Wikipedia do Triste Fim de Policarpo Quaresma vão ler: O major Policarpo é um anti-herói quixotesco, imbuído de nobres ideais, alguns beirando ao tresloucado (tanto é que passa uma temporada no hospício). Bom coração, idealista, patriota, por causa de suas qualidades acaba sendo castigado e sempre se dá mal. Uma obra clássica da literatura brasileira que ajuda a explicar por que somos como somos. Esta é a minha opinião. Fui eu quem inseriu esse parágrafo lá na Wikipedia.

O livro se divide em três partes, mas na verdade são quatro: a primeira apresenta nosso anti-herói e os demais personagens e culmina com a proposta tresloucada de Policarpo de transformar o tupi-guarani em língua oficial do Brasil. A segunda é o período que Policarpo passa internado no hospício de alienados D. Pedro II, a caminho da Urca, onde hoje fica o Palácio Universitário e outras instalações da UFRJ, em frente ao Iate Clube, antiga Praia da Saudade. A terceira é quando ele resolve virar agricultor no sítio do Sossego, na serra. E a quarta é sua participação, também tresloucada, na Revolta da Armada, que foi uma revolta de marinheiros talvez ainda mais violenta que a guerra do tráfico atual, com bombardeios, balas perdidas, um horror. Tem um conto do Machado de Assis, Pílades e Orestes, onde o personagem morre vítima de uma bala perdida da Revolta.

A Revolta da Armada em foto de 1893 de Juan Gutierrez

Nosso triste anti-herói tem sempre as melhores das intenções mas nunca é compreendido e se mete em trapalhadas. É como o Dom Quixote de Cervantes. Por isso eu disse que ele é um anti-herói quixotesco

Na primeira parte Policarpo envia um requerimento à Câmara propondo que o tupi-guarani torne-se a língua oficial do Brasil. “O tupi – diz o requerimento – língua originalíssima [...] é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui viveram e ainda vivem”. A ideia não é tão porra-louca quanto parece. O tupi-guarani é a nossa língua original, nos primórdios da colonização chegou a ser a língua franca do Brasil, e outros países preservam, ao lado da língua do colonizador, as suas línguas originais, por exemplo em Angola o quimbundo, quicongo e umbundo, e na Irlanda o gaélico. ...

Depois Policarpo se mete na agricultura. Ele não entende como no Brasil, um país tão rico em terras, todo mundo quer ter um emprego público em vez de cultivar a terra. Vou citar um trecho: “Como era tão simples viver na nossa terra! Quatro contos de réis por ano, tirado da terra, facilmente, docemente, alegremente! Oh! terra abençoada! Como é que toda a gente queria ser empregado público, apodrecer numa banca, sofrer na sua independência e no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas, sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidêmico, sustentar-se de maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma vida feliz, farta, livre, alegre e saudável?” Num passeio pela região Policarpo, que imaginava que os nossos camponeses fossem felizes, saudáveis e alegres, se impressiona com a “miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre”. Mas aí, como sempre acontece com Policarpo, apesar de suas melhores intenções, tudo acaba saindo errado: ele enfrenta a praga das saúvas, dos políticos locais, da burocracia que até hoje tolhe os brasileiros que queiram empreender. “Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhe a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.” Olha que livro genial, mostra cem anos atrás um Brasil que perdura até hoje. Quem quer abrir um negócio neste país conhece as dificuldades, a burocracia, os fiscais querendo propinas, tudo isto que impede que a nossa economia deslanche.

Na última parte Policarpo se apresenta como voluntário ao marechal Floriano para lutar do lado dele na Revolta. Idealista, entrega ao marechal um relatório com sugestões para melhorar a nossa agricultura mas Floriano não está nem aí, acho que o relatório acaba virando papel de rascunho (se não me falha a memória).

A certa altura o autor fala sobre as balas perdidas: “Se uma bala zunia no alto céu azul, luminoso, as moças davam gritinhos de gata, corriam para dentro das lojas, esperavam um pouco e logo voltavam sorridentes, o sangue a subir às faces pouco e pouco, depois da palidez do medo.”


Lima Barreto é o escritor dos subúrbios, dos tipos suburbanos. Tem uma passagem bonita onde ele descreve os subúrbios cariocas, vou transcrever só o comecinho:

“Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa cousa em matéria de edificação de cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções. Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiam como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado. Às vezes se sucedem na mesma direção com uma freqüência irritante, outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervalo coeso e fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas umas sobre outras numa angústia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao nosso olhar uma ampla perspectiva.”

Tudo que eu disse nesta postagem (e um pouco mais) está no vídeo a seguir. Assistam. Se gostarem, inscrevam-se no meu canal do YouTube (aqui) e vejam também meus outros vídeos sobre clássicos da literatura! 

15.7.18

ORIGENS DO SAMBA

PESQUISA E TEXTO DE IVO KORYTOWSKI. JORNAIS E PERIÓDICOS ANTIGOS CONSULTADOS NA HEMEROTECA DIGITAL


Quem não gosta de samba bom sujeito não é (Dorival Caymmi)


Segundo o Dicionário do folclore brasileiro de Camara Cascudo, a palavra “samba” provém de semba, umbigada em Angola. Originalmente significava um “baile popular urbano e rural” (=pagode, arrasta-pé, forrobodó) ou “dança de roda” (=batuque), antes de adquirir a acepção de um gênero musical urbano. O primeiro registro escrito da palavra, segundo o folclorista, teria ocorrido no periódico recifense O Carapuceiro no 6 de 3 de fevereiro de 1838, que “esbraveja indignado contra o samba d’almocreves [condutores de bestas de carga]”.

Na verdade, o periódico não esbraveja contra o samba, mas o contrapõe às óperas de Rossini, assim como contrapõe uma garatuja de bules e bandejas chineses às pinturas de Rafael, Rubens e Corregio, e os acepipes africanos (bobó, vatapá, acarajé, caruru) às delícias de uma mesa italiana, sustentando que, ao contrário do dito popular de que “gosto não se discute”, existe, sim, o bom e o mau gosto – o “samba de almocreves”, as garatujas chinesas e os acepipes africanos sendo exemplos de “mau gosto”.

Na edição de 26 de dezembro do mesmo ano (no 72), matéria intitulada “Os Fumistas”, que exalta as virtudes do tabaco fumado e em forma de rapé – “se o tabaco é mui útil a todas as hierarquias, e profissões, para um periodiqueiro [=periodicista, profissional que escreve em periódicos] pode-se dizer que é condição sine qua non. Quem há de acudir a um apoquentado jornalista em muitas ocasiões de aperto, se não a sua inseparável amiga, a boceta de tabaco?” – refere-se ao “laborioso matuto” que, depois que lhe furtam o cavalinho, ao chafurdar “as ventas em duas ou três pitadas” de rapé, “esquece-se do cavalo, resigna-se com a sua sorte, e com uma viola nas unhas zangarreia o samba por uma noite inteira”.

Até agora a data fixada por Camara Cascudo costumava ser considerada como a do primeiro registro escrito da palavra samba. Em seu Almanaque do Samba, André Diniz confirma essa crença: “A primeira menção ao termo samba conhecida foi feita em 3 de fevereiro de 1838 no jornal satírico pernambucano O Carapuceiro.” Mas empregando o mecanismo de pesquisa da Hemeroteca Digital Brasileira, consegui localizar menções à palavra anteriores a 1838.

Por exemplo, o Diário de Pernambuco de 4 de agosto de 1830 (p. 2), em matéria sobre a indisciplina de certos corpos de soldados da capital da província, afirma que de nada adianta enviar, como castigo, esses soldados para guarnições no interior, pois lá, na falta de um serviço ativo, descambarão na ociosidade, entretendo-se (vou manter a ortografia da época) “nas pescarias de curraes [currais, ou seja, armadilhas de apanhar peixe], e trepaçoens [trepações] de coqueiros, em cujos passatempos será recebida com agrado a viola, e o samba; e aos peraltas, cada vez os fará mais dezenvolvidos na conjugação do verbo surripio [surrupio, ato de surrupiar]”.

Esse mesmo jornal em diversas edições de 1834, ao relatar incursões contra os insurgentes da Cabanada, refere-se a uma localidade chamada Samba, também Engenho do Samba e Ponto do Samba. O Diário do Governo do Ceará de 1832 (p. 360) menciona igualmente um Engenho Samba. Idem o Correio Oficial do Rio de Janeiro de 1833 (p. 363) e 1834 (p. 67): Engenho Samba do distrito das Alagoas, de propriedade de José Theodoro Pereira.

A Nova Sentinela da Liberdade baiana de 23 de outubro de 1831, alude aos “marotos solteiros sem tamba [bebida indígena fermentada] nem samba; porque esta é a gente do Comércio”.

Na edição de 5 de janeiro de 1856 do Diário do Rio de Janeiro (p.2), na seção de notícias da Província do Ceará, vemos uma menção a um samba (folia) associado a desordem, associação essa que se tornaria comuníssima no noticiário da imprensa na virada do século XIX ao século XX:


No ano seguinte, em 21 de maio (p.2), nas notícias da Bahia, esse mesmo Diário do Rio de Janeiro menciona um espetáculo teatral com “crioulas” dançando o samba:


A coluna “Carteira do Repórter”, assinada por Zé Mimoso, do Correio Paraense de 28 de setembro de 1893 narra uma cena tragicômica num samba cheio de “embigadas” [umbigadas].



A primeira descrição de um "samba" na literatura brasileira acredito que tenha sido na obra clássica do naturalismo brasileiro A carne de Júlio Ribeiro, de 1888 (se alguém tem conhecimento de uma descrição literária anterior por favor me informe). A cena descreve uma dança dos escravos, em torno de uma fogueira, no terreiro em frente às senzalas, após um dia de trabalho, ao som de dois atabaques e vários adufes:

Os que não dançavam, que não tomavam parte no samba, grupavam-se aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio, enlevados, absortos.

Do solo batido pelo tripudiar de tanta gente erguia-se uma nuvem de pó, avermelhada pelo clarão da fogueira.

A garrafa de aguardente andava de mão em mão: não havia copos; bebiam pelo gargalo.

Ao cheiro de terra pisada, de cachaça, de sarro de pito, sobrelevava dominante um cheiro humano áspero, aliáceo, um odor almiscarado forte, uma catinga africana, indefinível, que doía ao olfato, que cortava os nervos, que entontecia o cérebro, sufocante, insuportável.
[...]

A rapariga dormia, dormia profundamente, respirando alto, em estertores.

Fora, o samba continuava; ouvia-se tutucar dos atabaques, e o estrupido surdo dos pés; sonoro, melancólico, plangente, repercutiu o estribilho:

Eh! Pomba! eh!

Em 1890 Alexandre Levy compõe uma peça orquestral intitulada Suíte Brasileira cujo terceiro movimento, inspirado na cena do samba de A Carne, intitulou-se Samba.

Em folhetins publicados na imprensa na passagem do século XIX para o XX, várias são as menções a sambas. Por exemplo, no conto “O Francellino” de Mario Negreiros, publicado na edição de julho de 1898 da “revista mensal de lettras, artes e sciencias” Genesis, encontramos este trecho:



Nas notícias dos jornais dessa mesma época o samba costuma estar associado a arruaças, bebedeiras, ocorrências policiais. Vejamos alguns exemplos:

Cidade do Rio, 14 de novembro de 1900:


Gazeta da Tarde, 30 de janeiro de 1896:


Gazeta da Tarde, 11 de novembro de 1901


Costuma-se mencionar uma suposta “repressão” ao samba no início do século XX. A minha impressão, ao ler esses jornais, é que não se reprimiu o samba em si, o ritmo, mas as rodas de samba, devido ao alarido, à arruaça (o pessoal ficava bêbado), não por causa da música em si. Imagine numa época sem carros, sem sirenes de ambulância, sem rádios, sem aparelhos de som, sem aviões sobrevoando, o silêncio sepulcral das noites ser quebrado por uma roda de samba. Aquilo incomodava os vizinhos, que chamavam a polícia. Meu amigo Alexei Bueno, a quem consultei, confirma essa minha impressão: “O problema era exatamente esse, arruaça, barulho, bebedeira, numa época onde se dormia muito cedo, pois nem rádio havia, e grande parte da população nem um romance podia ler, pois era analfabeta.” 

O samba como gênero musical nasceu em meio à população negra carioca (em grande parte, ex-escravos) da Zona Portuária (Pedra do Sal, etc.) e Cidade Nova (Praça XI, etc.) nas primeiras décadas do século XX. Em 1917 gravou-se o primeiro samba (samba-maxixe, mais propriamente), Pelo Telefone, registrado por Donga. Para quem o acusou de ter se apropriado de uma obra de criação coletiva, Donga teria replicado: Samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro. E o resto da história você já conhece.


8.7.18

A TRAGÉDIA DA COPA DE 1950, de EDMÍLSON CAMINHA

Crônica originalmente intitulada "O Naufrágio do Titanic" publicada no livro Inventário de crônicas (Brasília : Thesaurus, 1997

Maracanã em cerca de 1967, foto de Marcel Gautherot obtida no site do Instituto Moreira Salles

O Brasil já viveu uma tragédia. Não me refiro à guerra do Paraguai, à revolta de Canudos, ao golpe de 64. Falo de uma com tempo marcado para acontecer: 16 de julho de 1950. Um dia, apenas; hora e meia, para falar a verdade. Não derramou sangue, mas feriu lá dentro – dói ainda hoje.

Foi somente uma partida de futebol, dirão alguns. Não, não, foi muito mais do que isso: foi o malogro de um sonho, o desmentido da esperança, a frustração da alegria, a negação de um presente que começávamos a viver. Seríamos campeões do mundo, venceríamos povos com mil anos de história, mais importantes do que nós, mais fortes do que nós, mais bonitos do que nós, derrotando-os no gramado, sujeitando-os ao talento, ao brilho e à improvisação do homem brasileiro. Sobrevivêramos à ditadura e aos transtornos da guerra: em meio aos escombros da velha ordem, anunciava-se o Brasil como a promessa de um grande país, uma nação vitoriosa a caminho da riqueza e da felicidade. Ninguém se dava conta disso, mas era esse o sentimento das 200 mil pessoas que superlotavam o Maracanã para assistir a Brasil x Uruguai. Pôr as mãos na Taça Jules Rimet já seria um bom começo.

Aquele era o dia dos 27 anos de meu pai. E lá estava ele, perdido na multidão que desde o meio-dia correra para o estádio. O clima era de festa, de exultação, de delírio popular. Sequer se cogitava de que o Brasil pudesse perder: na disputa entre os finalistas, arrasáramos a Suécia por 7 x 1 e destruíramos a Espanha por 6 x 1, enquanto o Uruguai não fora além dos 2 x 2 frente aos espanhóis e de apertados 3 x 2 contra os suecos. Com a vantagem de um ponto, ganharíamos a Copa ainda que empatássemos; cabia-nos, portanto, confirmar o triunfo a que nos condenara o destino. Sabia-se de cor a escalação dos brasileiros, recitada como um credo: Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Achava-se até quem dissesse a formação dos uruguaios: Máspoli, Matías González e Tejera; Gambetta, Obdulio Varela e Rodriguez Andrade; Ghiggia, Julio Pérez, Miguez, Schiaffino e Morán. O árbitro seria George Reader – um inglês, por coincidência, testemunha da cerimônia em que o “nobre esporte bretão” se naturalizaria brasileiro.

O resultado, no entanto, começara a definir-se antes da luta. Ninguém duvidava de que éramos os melhores do mundo: aos campeões prometiam-se casas, carros, empregos públicos e até vitória nas eleições; ganhariam fortunas transformando-se em nome de cervejas, cigarros, refrigerantes e outros lançamentos; na véspera da partida, assinaram mais de duas mil fotos em que se lia "Brasil, campeão do mundo". Havia, porém, que dar muito mais por tanta glória: concentrada no Joá, a seleção foi transferida para São Januário, onde se abriram as portas para uma verdadeira romaria de visitantes, desde candidatos à presidência da república até colecionadores de autógrafos. No sábado, a maioria dos jogadores só conseguiu dormir às onze da noite, após dezenas de homenagens e solicitações. Às sete da manhã estavam de pé, para assistir a missa em ação de graças pela inauguração de uma rádio. Dali a pouco iriam correr 90 minutos, mas tiveram de empurrar o ônibus enguiçado em que chegariam ao Maracanã. Apesar de tudo, entraram em campo como vencedores, cabendo aos uruguaios exercer com timidez e humildade o papel que lhes coubera na consagração do protagonista.

Assim começou o jogo, às duas e cinquenta e cinco daquela tarde de angústia e emoção. O primeiro tempo ficou em 0 x 0, mas nos mostramos bem melhores: chutamos 17 vezes a gol, os uruguaios apenas 6. Obdulio Varela, "El Gran Capitán", não admitia perder, e por isso gritava, reclamava, pressionava, na tentativa de compensar a diferença. Aos 27 minutos, aproxima-se de Bigode e dá-lhe não se sabe exatamente o quê – um tapa no rosto, como viram muitos, ou um tapinha no pescoço, como querem alguns. De qualquer forma, sua arrogância teria amedrontado os brasileiros, que não conseguiriam manter a superioridade com que dominavam a partida.

Apesar de tudo, voltamos para o segundo tempo cheios de confiança. Mal a bola começou a rolar, Zizinho passou para Ademir e Ademir deu na medida para Friaça, que disparou uma bomba no canto direito de Máspoli. GOOOOL! GOOOOL DO BRASIL! O Maracanã quase vem abaixo numa explosão de alegria que dura três minutos: até que enfim! Aquele era somente o primeiro! Seríamos campeões em grande estilo, enchendo a rede do Uruguai! Vinte minutos depois, acontece o que todos temiam: Obdulio passa para Ghiggia, Ghiggia escapa de Bigode e lança para Schiaffino: gol do Uruguai. Continuávamos campeões, o empate nos favorecia, mas um grande silêncio, um medo profundo cobriu o Maracanã, como se pressentíssemos o desastre. Se a comemoração se fizera antes do tempo, também nos apressávamos em consentir o revés, aceitar o castigo – era a copa da precipitação.

Os uruguaios devem ter dito é agora ou nunca, e com 13 minutos aconteceu mais do que o improvável, o impossível: Ghiggia tabelou com Julio Pérez e disparou pela direita perseguido por Bigode; Juvenal corria para interceptá-lo e Schiaffino chegava pelo meio esperando o passe; quase sem condições de tentar direto, o ponta recuaria para o companheiro, acreditou Barbosa, que não fechou o ângulo; Ghiggia enxergou o buraco e chutou meio sem jeito; a bola correu fraca, entrando pelo espaço mínimo entre o goleiro e o poste: gol do Uruguai. Barbosa deixou-se ficar batido no chão, e Bigode em desespero levou a mão à cabeça. Se os uruguaios já tinham marcado um, aquele era o segundo, o que significava dizer que eles estavam ganhando, a pouco mais de dez minutos do final da partida – pensavam os brasileiros, num grande esforço de raciocínio. O que restava de tempo foi um desespero, os jogadores lutando, o público gritando, até que Mr. Reader apitou. Por incrível que pudesse parecer, terminara o jogo. E não éramos nós os vencedores. Não éramos nós os campeões.

A torcida não arredou pé do estádio, meio tonta, esperou meia hora para começar a sair. O Maracanã, o "Gigante do Derby", templo do futebol, altar onde nos sagraríamos, era um majestoso barco à deriva, o Titanic sem rumo depois de trombar com um iceberg. Diziam que o colosso inglês jamais afundaria, e lá estava ele, fazendo água, mergulhando a proa rumo às profundezas do oceano. Como pôde acontecer?, perguntava-se nas ruas, nas biroscas, nos salões de sinuca, nos cabarés, onde quer que se encontrasse um brasileiro. Era como se o velocista campeão disparasse na reta de chegada e torcesse o pé, arrebentando-se no asfalto; como se no último round o boxeador invencível recebesse um cruzado no queixo e desse com a cara na lona; como se o maior nadador do mundo cruzasse a Baía de Guanabara para morrer a cem metros da praia. Como se a seleção brasileira precisasse de um empate para ganhar a Copa e perdesse de 2 x 1 para o Uruguai.

Em 90 minutos, passáramos da euforia à depressão, subíramos aos céus e descêramos ao mais escuro dos infernos, a glória inteira que podia ter sido e que não foi. Juvenal passou 14 dias sem sair de casa; Bauer voltou para São Paulo escondido em um trem; Friaça perdeu a memória e não sabe como foi parar em Teresópolis – voltou a si dois dias depois, cinco quilos mais magro; e Zizinho, por muito tempo, garantia que se comunicava telepaticamente com Obdulio Varela. Na concentração, Barbosa assinara um manifesto em favor da paz que depois se descobriria procedente do PCB, o Partido Comunista Brasileiro; como não fora campeão, o goleiro teve de ir ao Dops para declarar se conhecia Marx e Lênin e se gostava deles. Nem o capitão uruguaio suportou o peso daquele domingo: de volta ao hotel, pôs algum dinheiro no bolso e saiu sozinho pela noite, comandante vitorioso a passear por entre os escombros dos vencidos. Entrou num bar, pediu uma caipirinha e logo foi reconhecido por brasileiros que se embriagavam; pensou que seria agredido mas o que veio foi o convite para que aceitasse um copo. Faz algum tempo, declarou que se pudesse voltar atrás marcaria um gol contra, só para não se sentir responsável pela tristeza desse grande povo. Em vez de jogador excelente, nota-se que Obdulio Varela poderia ter sido um escritor de sucesso, tal o jeito que possui para a criação literária. Pudesse reviver aquela partida, faria quantos gols estivessem ao alcance dos seus pés, pois no esporte o que conta é vencer – se possível honestamente. Essa história de que basta competir é conversa daquele barão que provavelmente nunca chutou uma bola na vida.

Muitos esqueceram, deixaram cicatrizar a ferida. Em outros, porém, a lembrança continua, como se uma perna amputada pudesse doer para sempre. São Os Órfãos de 50, Os Deserdados de Ghiggia, que escreveram sobre o jogo para libertar-se dele. Paulo Perdigão dedicou-lhe um livro inteiro, Anatomia de uma derrota. Mário Filho, Nélson Rodrigues, Antônio Maria, Edilberto Coutinho, Armando Nogueira e Luís Fernando Veríssimo publicaram crônicas. Geneton Moraes Neto reuniu, em 200 páginas, o depoimento dos onze jogadores e do técnico Flávio Costa. Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado fizeram o curta Barbosa, levando para o cinema o conto "O dia em que o Brasil perdeu a Copa", de Paulo Perdigão. Na história, o protagonista – na verdade, o próprio autor – aciona a máquina do tempo de H. G. Wells para voltar ao Maracanã naquele dia fatal, em que, menino de onze anos, assistira ao drama que o atormentava como culpa. Quando Julio Pérez lançasse para Ghiggia, avisaria ao goleiro que o uruguaio chutaria no canto. Aos 33 minutos do segundo tempo, lá está ele, atrás do gol à direita das cabines de rádio: Ghiggia corre, aproxima-se da pequena área, Barbosa ouve um grito e... Como se costuma dizer nestas ocasiões, leia o conto e veja o filme.

Em 1992, fui a Montevidéu. Andando pela Dezoito de Julho, imaginei o carnaval naquela noite de domingo, o povo nas ruas, o mar de bandeiras transbordando a avenida, o pequeno Uruguai maior do que o Brasil, melhor do que a Europa, o primeiro do mundo. No hotel, perguntei por Ghiggia: soube que trabalhava em um cassino, fora da cidade, raramente aparece. Queria conhecê-lo, olhar para o homem que fizera um país inteiro chorar. "Por que vocês falam tanto nessa copa? O Brasil já ganhou três campeonatos, joga muito mais do que nós, tem o melhor futebol do mundo!", ouvi de um dirigente esportivo com quem conversei. "Fizemos dois gols por sorte: se tivéssemos de disputar outra partida, jamais ganharíamos. Esqueçam aquele dia!"

Não dá. Em 16 de julho de 1950, perdemos um jogo que não podíamos perder, que não soubemos ganhar. Nas arquibancadas do Maracanã, 200 mil brasileiros sentiram o sol escurecer, a terra cair, o coração parar, a morte em vida. Todos estávamos lá, mesmo os que nascemos depois.


6.7.18

CASA DE ROBERTO MARINHO no COSME VELHO


Roberto Marinho não era como esses milionários cujas casas são absolutamente indevassáveis. Quem passava diante do seu portão na Rua Cosme Velho via uma nesga da casa rosa, como mostra a foto abaixo tirada em 2013, mas jamais imaginava que um dia poderia adentrar aquele casarão que, pela extensão do muro, via-se que ocupava vasto terreno. Pois este ano seus filhos tomaram a louvável iniciativa de transformar a casa em centro cultural, permitindo que qualquer um a visite e contemple os quadros que Roberto Marinho colecionou durante sua vida. 

Contam seus filhos: “Movido pelo amor à arte e pela crença no talento dos artistas brasileiros, costumava adquirir obras diretamente dos pintores e escultores que considerava promissores, ou, como dizia, porque gostava do trabalho, pela emoção que lhe provocava. Frequentava bienais e salões, galerias e ateliês, mas também adquiria quadros e esculturas para ajudar um artista em dificuldades.”

A casa vista da rua em 2013

A casa de 1938 inspirou-se na casa grande do engenho Megaípe, daí suas linhas levemente coloniais, mas sem a estilização do neocolonial em voga na época.

Casa grande do engenho Megaípe, por Percy Lau

Casa do Roberto Marinho

Matéria de O Globo por Nani Rubin de 19/4/2018 informa: “A instituição cultural nasce no lugar que por décadas serviu de residência ao jornalista, e tem como objetivo ser um centro de exibição e pesquisa da arte moderna brasileira, foco da coleção adquirida ao longo de sete décadas.

A casa limítrofe à Floresta da Tijuca foi palco de festas memoráveis, que juntavam empresários, artistas e intelectuais. Ali, Dorival Caymmi e Amália Rodrigues cantaram, e Tônia Carrero e Paulo Autran encenaram peça do Teatro Brasileiro de Comédia. Após a morte de seu proprietário, em 2003, e a da viúva, Lily Marinho, em 2011, o local ficou desocupado.

Desde então, os três filhos do jornalista (com Stella Marinho, a primeira mulher) vinham pensando em como transformá-la em uma casa viva, mas que não passasse pelo culto à personalidade do pai, nem que fosse uma casa-museu, como conta Lauro Cavalcanti, diretor do espaço.”




A casa, na Rua Cosme Velho, 1105, pode ser visitada de terça a domingo, das 12 às 18 horas, com entrada até 17h15. O ingresso custa 10 reais (com meia para estudantes e os mais velhos como eu), mas nas quartas-feiras a entrada é gratuita. Para os andarilhos, do Largo do Machado até lá são 3,2 quilômetros. Tranquilo. Mas você pode saltar do metrô no Largo do Machado e pegar o ônibus integrado para o Cosme Velho.

Modernos 10: Mostra inaugural da Casa Roberto Marinho reunindo dez expoentes do modernismo brasileiro nos anos 1930 e 1940


Tarsila do Amaral, Paisagem II, 1963

Milton Dacosta, Roda, 1942

Djanira

Alberto da Veiga Guignard, Sem Título, 1927-31