ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

29.7.18

ENTRE MISÉRIA E GRANDEZA, O DIÁRIO DE DRUMMOND, de EDMÍLSON CAMINHA


 “Por que se escrevem diários?”, perguntou Carlos Drummond de Andrade, para concluir que “há de ser por força de motivação psicológica obscura, inerente à condição de escritor, alheia à noção de utilidade profissional”. Confessa que, por muitos anos, encheu cadernos com anotações sobre o dia a dia, que jamais pretendeu viessem a ter importância documental. “O impulso de escrever para mim mesmo, em caráter autoconfessional, ditou os feixes de palavras que fui acumulando e que um dia... destruí. Mas a própria destruição tem caprichos. Do conjunto sacrificado salvaram-se algumas páginas que hoje reúno em livro”. É O observador no escritório, editado pela Record em 1985.

Seletivamente, o autor publica o que anotara sobre colegas escritores ‒ Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira ‒ e figuras da política: Luís Carlos Prestes, Getúlio Vargas e Castello Branco. Muito pouco acerca da família ‒ conversa com um tio, cartas da mãe e do pai, a filha Maria Julieta que se tranca no quarto para escrever. Drummond diz pouco da intimidade dos seus e de si próprio, por pudor ou pela crença de que, sem interesse para o leitor, não deve torná-la pública.

Os registros de natureza familiar permaneceram, assim, desconhecidos até agora, quando o neto do escritor, Pedro Augusto Graña Drummond, resolveu divulgá-los no livro Uma forma de saudade: páginas de diário (São Paulo: Companhia das Letras, 2017), ano em que se lembram as três décadas da morte de quem os anotara. Pergunte-se, então: por que dar a conhecer, depois de tanto tempo, trechos do diário que a Drummond parecera melhor continuassem inéditos? Respondo: simplesmente por havê-los escrito, pois ninguém põe no papel o que não se queira venha a ser lido, hoje, amanhã ou daqui a cem anos. Assim também com outros artistas: absurdo pensar no compositor de uma sinfonia criada para que orquestra nenhuma a apresentasse; ou em um pintor cujas obras fossem para sempre escondidas no celeiro de uma fazenda; ou no teatrólogo que escrevesse dramas sob a condição de que sequer fossem lidos... Significativamente, Drummond reconhece os “caprichos” da destruição: deu fim ao diário, mas não a todas as notas; por que salvou algumas páginas, e outras não? Pedro Augusto repete, ao apresentar o livro, a explicação do avô quando entrevistado por Maria Julieta: “Para o caso em que algum neto se interessasse um dia em lê-las e assim pudesse sentir que existe uma continuidade na família, ‘um rio de sangue que flui através de uma geração para outra’”. Quem sabe, ainda, pela “motivação psicológica obscura”, inconsciente, de que um dia os leitores comuns viéssemos também a conhecê-las, desejosos de nelas escutar “o eco de um tempo abolido”, como consta à entrada de O observador no escritório.


          Cético, Drummond sabia, já dissera o amigo Bandeira, que “a vida é vã como a sombra que passa”, uma lenta e melancólica procissão rumo ao grande mistério. Assim, com a precisão de talentoso repórter e o estilo de quem sabe escrever, relata a doença e a morte de entes queridos. Em 1954, volta a Itabira para acompanhar, com parentes, a exumação dos restos da mãe: “Sob o sol intenso (...) pouco a pouco a terra foi sendo removida a golpes de escavadeira, enxada, picareta e pá (...). O primeiro osso a aparecer foi um maxilar, que nos pareceu não pertencer ao corpo de Mamãe, pelo fato de estar fora do caixão, mas pouco depois Ofélia conseguiu articulá-lo com a caixa craniana, que estava lá dentro, e que surgiu pesada de terra, nela se distinguindo apenas as cavidades das órbitas e o círculo da garganta. Com um pedaço de madeira Altivo e depois eu o esvaziamos do conteúdo terroso.” O irmão a que se refere morreria em 1961, Drummond viaja do Rio a Belo Horizonte, para o enterro: “Altivo já estava no caixão, o corpo coberto de flores, na sala de visitas. A extrema magreza e a velhice do rosto não impediam que este se mostrasse sereno. (...) Contaram-me que nos últimos dias a falta de apetite se tornara total; a fraqueza era enorme, e uma ferida se formara nas costas, pelo atrito com a cama.”

Um ano antes morrera José, nascido com problemas de saúde, como se lê no diário: “Metade do corpo dele era vermelha e ardia em febre. A outra metade, quase fria. O menino cresceu difícil e cacete. Seus nervos eram destrambelhados. Tudo isso talvez explique meu irmão, seu isolamento selvagem, sua incapacidade de ternura (...)”. Solteiro, confidencia ao mano o caso que tem, há 14 anos, com uma senhora casada, o que a levou a desquitar-se do marido. Chama-se Aida, que surpreende o escritor ao dizer que José também é dado às musas, chegou até a escrever um poema, “O cavalão”, de que terá sido, certamente, a única leitora.

Ao sabê-lo doente, Drummond visita-o muitas vezes em Belo Horizonte, mas tem de pegar de volta, no mesmo dia, o avião que faz a ponte Pampulha‒ Santos Dumont: “Maravilhosa visão do Rio iluminado, ao chegarmos. 55 minutos de voo: 1 e 5 da madrugada. Não há táxi no aeroporto. Caminho a pé até a Praça 15, onde, já desanimado, consigo fazer um motorista recolher-me em seu carro, trazendo-me a Copacabana.” Bons tempos aqueles, em que um poeta podia andar pela noite carioca, sem o menor risco de ser assaltado ou morto por delinquentes que hoje mandam na cidade...

Em 1968, Maria suicida-se com 25 comprimidos de um tranquilizante. Drummond a vê no necrotério: “Lá estava o corpo de minha pobre irmã, recoberto por um lençol, em cima da essa. O rosto tinha a brancura de sempre, com um leve tom amarelado que a morte lhe imprimira; os cabelos muito pretos, e o queixo amarrado por um pedaço de gaze”. Em meio à miséria dos que sofrem para morrer, o autor de Claro enigma emociona-se com a grandeza humana dos sobrinhos que dão tudo de si pelos pais doentes, e de mãos dadas vão com eles até o embarque para o desconhecido.

Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade são os amigos fraternos que preenchem a segunda parte do livro. Enfermo, o poeta de Libertinagem, sempre tão cioso dos assuntos amorosos, faz revelações ao colega que o visita no hospital: “Eu sempre evitei me complicar mantendo casos com mulheres de temperamento difícil. Acho que esse negócio de trepar deveria ser uma coisa simples; duas pessoas se encontram e, como se desejam, vão dormir juntas, sem necessidade de romance. Justamente para evitar casos complicados é que tenho deixado de comer muita mulher boa nesse mundo.”

Bandeira mantinha, então, relacionamento com Lourdes Alencar, “desquitada e violenta”, que lhe infernizou a vida. Ante a pressão da companheira para que se hospitalizasse, ameaçou atirar-se pela janela. “Hoje, teve desfecho o episódio da Casa de Saúde S. Marcelo, no Leblon: a direção da casa pediu-lhe que se retirasse com Manuel, em face da situação criada pela irritabilidade e intransigência da acompanhante (...)”. Os amigos unem-se para socorrer o poeta, com grandes problemas financeiros: conseguem-lhe mil dólares mensais do Itamaraty, como pagamento de direitos por publicações da obra no exterior, e a interferência pessoal do então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, para que lhe reservem um bom apartamento no Hospital dos Servidores. A dureza com que a morte nos iguala a todos é cruamente descrita: “No necrotério dos fundos do hospital, o pobre Manuel, já vestido, jazia à espera de caixão. A boca permanecia aberta, e nela se introduzira um chumaço de algodão.”

Peregrino Júnior, no cemitério, diz ao poeta de A rosa do povo considerá-lo o único em condições de ocupar a vaga de Bandeira na Academia. “Respondi-lhe que não; qualquer bom escritor preencherá bem a cadeira, não sendo necessário que seja um poeta ‒ e eu, definitivamente, não tenho jeito para isso.” Foi eleito Cyro dos Anjos, autor de O amanuense Belmiro. Mais uma proposta, dias depois: “Josué Montello, por intermédio de Rodrigo [M. F. de Andrade], convida-me, não sei com que autoridade, para membro do Conselho Federal de Cultura, que dentro em breve renovará os seus titulares. Claro que não topei.”

Essas, as páginas mantidas em segredo por quem as salvara da destruição. Pode-se concluir que o diário de Drummond, mais do que apenas uma forma de saudade, oferece-nos outra leitura: ilusoriamente distintos uns dos outros, chegaremos a termo nivelados por baixo. Não importa se Carlos, José, Maria ou Manuel: teremos vivido, todos, a miséria e a grandeza inerentes à humana condição.

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