ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

8.7.18

A TRAGÉDIA DA COPA DE 1950, de EDMÍLSON CAMINHA

Crônica originalmente intitulada "O Naufrágio do Titanic" publicada no livro Inventário de crônicas (Brasília : Thesaurus, 1997

Maracanã em cerca de 1967, foto de Marcel Gautherot obtida no site do Instituto Moreira Salles

O Brasil já viveu uma tragédia. Não me refiro à guerra do Paraguai, à revolta de Canudos, ao golpe de 64. Falo de uma com tempo marcado para acontecer: 16 de julho de 1950. Um dia, apenas; hora e meia, para falar a verdade. Não derramou sangue, mas feriu lá dentro – dói ainda hoje.

Foi somente uma partida de futebol, dirão alguns. Não, não, foi muito mais do que isso: foi o malogro de um sonho, o desmentido da esperança, a frustração da alegria, a negação de um presente que começávamos a viver. Seríamos campeões do mundo, venceríamos povos com mil anos de história, mais importantes do que nós, mais fortes do que nós, mais bonitos do que nós, derrotando-os no gramado, sujeitando-os ao talento, ao brilho e à improvisação do homem brasileiro. Sobrevivêramos à ditadura e aos transtornos da guerra: em meio aos escombros da velha ordem, anunciava-se o Brasil como a promessa de um grande país, uma nação vitoriosa a caminho da riqueza e da felicidade. Ninguém se dava conta disso, mas era esse o sentimento das 200 mil pessoas que superlotavam o Maracanã para assistir a Brasil x Uruguai. Pôr as mãos na Taça Jules Rimet já seria um bom começo.

Aquele era o dia dos 27 anos de meu pai. E lá estava ele, perdido na multidão que desde o meio-dia correra para o estádio. O clima era de festa, de exultação, de delírio popular. Sequer se cogitava de que o Brasil pudesse perder: na disputa entre os finalistas, arrasáramos a Suécia por 7 x 1 e destruíramos a Espanha por 6 x 1, enquanto o Uruguai não fora além dos 2 x 2 frente aos espanhóis e de apertados 3 x 2 contra os suecos. Com a vantagem de um ponto, ganharíamos a Copa ainda que empatássemos; cabia-nos, portanto, confirmar o triunfo a que nos condenara o destino. Sabia-se de cor a escalação dos brasileiros, recitada como um credo: Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Achava-se até quem dissesse a formação dos uruguaios: Máspoli, Matías González e Tejera; Gambetta, Obdulio Varela e Rodriguez Andrade; Ghiggia, Julio Pérez, Miguez, Schiaffino e Morán. O árbitro seria George Reader – um inglês, por coincidência, testemunha da cerimônia em que o “nobre esporte bretão” se naturalizaria brasileiro.

O resultado, no entanto, começara a definir-se antes da luta. Ninguém duvidava de que éramos os melhores do mundo: aos campeões prometiam-se casas, carros, empregos públicos e até vitória nas eleições; ganhariam fortunas transformando-se em nome de cervejas, cigarros, refrigerantes e outros lançamentos; na véspera da partida, assinaram mais de duas mil fotos em que se lia "Brasil, campeão do mundo". Havia, porém, que dar muito mais por tanta glória: concentrada no Joá, a seleção foi transferida para São Januário, onde se abriram as portas para uma verdadeira romaria de visitantes, desde candidatos à presidência da república até colecionadores de autógrafos. No sábado, a maioria dos jogadores só conseguiu dormir às onze da noite, após dezenas de homenagens e solicitações. Às sete da manhã estavam de pé, para assistir a missa em ação de graças pela inauguração de uma rádio. Dali a pouco iriam correr 90 minutos, mas tiveram de empurrar o ônibus enguiçado em que chegariam ao Maracanã. Apesar de tudo, entraram em campo como vencedores, cabendo aos uruguaios exercer com timidez e humildade o papel que lhes coubera na consagração do protagonista.

Assim começou o jogo, às duas e cinquenta e cinco daquela tarde de angústia e emoção. O primeiro tempo ficou em 0 x 0, mas nos mostramos bem melhores: chutamos 17 vezes a gol, os uruguaios apenas 6. Obdulio Varela, "El Gran Capitán", não admitia perder, e por isso gritava, reclamava, pressionava, na tentativa de compensar a diferença. Aos 27 minutos, aproxima-se de Bigode e dá-lhe não se sabe exatamente o quê – um tapa no rosto, como viram muitos, ou um tapinha no pescoço, como querem alguns. De qualquer forma, sua arrogância teria amedrontado os brasileiros, que não conseguiriam manter a superioridade com que dominavam a partida.

Apesar de tudo, voltamos para o segundo tempo cheios de confiança. Mal a bola começou a rolar, Zizinho passou para Ademir e Ademir deu na medida para Friaça, que disparou uma bomba no canto direito de Máspoli. GOOOOL! GOOOOL DO BRASIL! O Maracanã quase vem abaixo numa explosão de alegria que dura três minutos: até que enfim! Aquele era somente o primeiro! Seríamos campeões em grande estilo, enchendo a rede do Uruguai! Vinte minutos depois, acontece o que todos temiam: Obdulio passa para Ghiggia, Ghiggia escapa de Bigode e lança para Schiaffino: gol do Uruguai. Continuávamos campeões, o empate nos favorecia, mas um grande silêncio, um medo profundo cobriu o Maracanã, como se pressentíssemos o desastre. Se a comemoração se fizera antes do tempo, também nos apressávamos em consentir o revés, aceitar o castigo – era a copa da precipitação.

Os uruguaios devem ter dito é agora ou nunca, e com 13 minutos aconteceu mais do que o improvável, o impossível: Ghiggia tabelou com Julio Pérez e disparou pela direita perseguido por Bigode; Juvenal corria para interceptá-lo e Schiaffino chegava pelo meio esperando o passe; quase sem condições de tentar direto, o ponta recuaria para o companheiro, acreditou Barbosa, que não fechou o ângulo; Ghiggia enxergou o buraco e chutou meio sem jeito; a bola correu fraca, entrando pelo espaço mínimo entre o goleiro e o poste: gol do Uruguai. Barbosa deixou-se ficar batido no chão, e Bigode em desespero levou a mão à cabeça. Se os uruguaios já tinham marcado um, aquele era o segundo, o que significava dizer que eles estavam ganhando, a pouco mais de dez minutos do final da partida – pensavam os brasileiros, num grande esforço de raciocínio. O que restava de tempo foi um desespero, os jogadores lutando, o público gritando, até que Mr. Reader apitou. Por incrível que pudesse parecer, terminara o jogo. E não éramos nós os vencedores. Não éramos nós os campeões.

A torcida não arredou pé do estádio, meio tonta, esperou meia hora para começar a sair. O Maracanã, o "Gigante do Derby", templo do futebol, altar onde nos sagraríamos, era um majestoso barco à deriva, o Titanic sem rumo depois de trombar com um iceberg. Diziam que o colosso inglês jamais afundaria, e lá estava ele, fazendo água, mergulhando a proa rumo às profundezas do oceano. Como pôde acontecer?, perguntava-se nas ruas, nas biroscas, nos salões de sinuca, nos cabarés, onde quer que se encontrasse um brasileiro. Era como se o velocista campeão disparasse na reta de chegada e torcesse o pé, arrebentando-se no asfalto; como se no último round o boxeador invencível recebesse um cruzado no queixo e desse com a cara na lona; como se o maior nadador do mundo cruzasse a Baía de Guanabara para morrer a cem metros da praia. Como se a seleção brasileira precisasse de um empate para ganhar a Copa e perdesse de 2 x 1 para o Uruguai.

Em 90 minutos, passáramos da euforia à depressão, subíramos aos céus e descêramos ao mais escuro dos infernos, a glória inteira que podia ter sido e que não foi. Juvenal passou 14 dias sem sair de casa; Bauer voltou para São Paulo escondido em um trem; Friaça perdeu a memória e não sabe como foi parar em Teresópolis – voltou a si dois dias depois, cinco quilos mais magro; e Zizinho, por muito tempo, garantia que se comunicava telepaticamente com Obdulio Varela. Na concentração, Barbosa assinara um manifesto em favor da paz que depois se descobriria procedente do PCB, o Partido Comunista Brasileiro; como não fora campeão, o goleiro teve de ir ao Dops para declarar se conhecia Marx e Lênin e se gostava deles. Nem o capitão uruguaio suportou o peso daquele domingo: de volta ao hotel, pôs algum dinheiro no bolso e saiu sozinho pela noite, comandante vitorioso a passear por entre os escombros dos vencidos. Entrou num bar, pediu uma caipirinha e logo foi reconhecido por brasileiros que se embriagavam; pensou que seria agredido mas o que veio foi o convite para que aceitasse um copo. Faz algum tempo, declarou que se pudesse voltar atrás marcaria um gol contra, só para não se sentir responsável pela tristeza desse grande povo. Em vez de jogador excelente, nota-se que Obdulio Varela poderia ter sido um escritor de sucesso, tal o jeito que possui para a criação literária. Pudesse reviver aquela partida, faria quantos gols estivessem ao alcance dos seus pés, pois no esporte o que conta é vencer – se possível honestamente. Essa história de que basta competir é conversa daquele barão que provavelmente nunca chutou uma bola na vida.

Muitos esqueceram, deixaram cicatrizar a ferida. Em outros, porém, a lembrança continua, como se uma perna amputada pudesse doer para sempre. São Os Órfãos de 50, Os Deserdados de Ghiggia, que escreveram sobre o jogo para libertar-se dele. Paulo Perdigão dedicou-lhe um livro inteiro, Anatomia de uma derrota. Mário Filho, Nélson Rodrigues, Antônio Maria, Edilberto Coutinho, Armando Nogueira e Luís Fernando Veríssimo publicaram crônicas. Geneton Moraes Neto reuniu, em 200 páginas, o depoimento dos onze jogadores e do técnico Flávio Costa. Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado fizeram o curta Barbosa, levando para o cinema o conto "O dia em que o Brasil perdeu a Copa", de Paulo Perdigão. Na história, o protagonista – na verdade, o próprio autor – aciona a máquina do tempo de H. G. Wells para voltar ao Maracanã naquele dia fatal, em que, menino de onze anos, assistira ao drama que o atormentava como culpa. Quando Julio Pérez lançasse para Ghiggia, avisaria ao goleiro que o uruguaio chutaria no canto. Aos 33 minutos do segundo tempo, lá está ele, atrás do gol à direita das cabines de rádio: Ghiggia corre, aproxima-se da pequena área, Barbosa ouve um grito e... Como se costuma dizer nestas ocasiões, leia o conto e veja o filme.

Em 1992, fui a Montevidéu. Andando pela Dezoito de Julho, imaginei o carnaval naquela noite de domingo, o povo nas ruas, o mar de bandeiras transbordando a avenida, o pequeno Uruguai maior do que o Brasil, melhor do que a Europa, o primeiro do mundo. No hotel, perguntei por Ghiggia: soube que trabalhava em um cassino, fora da cidade, raramente aparece. Queria conhecê-lo, olhar para o homem que fizera um país inteiro chorar. "Por que vocês falam tanto nessa copa? O Brasil já ganhou três campeonatos, joga muito mais do que nós, tem o melhor futebol do mundo!", ouvi de um dirigente esportivo com quem conversei. "Fizemos dois gols por sorte: se tivéssemos de disputar outra partida, jamais ganharíamos. Esqueçam aquele dia!"

Não dá. Em 16 de julho de 1950, perdemos um jogo que não podíamos perder, que não soubemos ganhar. Nas arquibancadas do Maracanã, 200 mil brasileiros sentiram o sol escurecer, a terra cair, o coração parar, a morte em vida. Todos estávamos lá, mesmo os que nascemos depois.


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