ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

15.9.16

A PAIXÃO RENASCE, de Flávia Oliveira

"O Rio é amor bandido"

CRÔNICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL O GLOBO DE 4/8/2016, UM DIA ANTES DA ABERTURA DOS JOGOS OLÍMPICOS

O meu lugar, peço licença ao mestre Arlindo Cruz, é repleto de seres de luz — e de espíritos das trevas, especialmente entre os que o governam. É acolhedor, mas sabe ser brutal. É brutal, mas acolhedor como poucas metrópoles do mundo. Eu nasci, cresci e escolhi viver no Rio de Janeiro. Daqui não saio. Nem se o prefeito Eduardo Paes perder a paciência numa rede social e me mandar embora. Nem se os inomináveis — sim, há mais de um candidato abaixo da crítica — assumirem o Piranhão em 2017. (Aos não iniciados em carioquice, é esse o apelido da sede da prefeitura, erguida numa velha área de prostituição.)

O Rio nos maltratou às vésperas dos primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul, que começam oficialmente amanhã. A violência urbana fugiu do controle. O aparato de repressão asfixiou comunidades populares em atitude tão inaceitável quanto habitual. No segundo trimestre, a polícia matou 124 pessoas na cidade; só em junho, foram 49 homicídios, o dobro do registrado no mesmo mês de 2015. Ainda ontem de manhã, o Complexo do Alemão padecia com mais um confronto entre policiais e traficantes.

Não foi à toa que a Anistia Internacional Brasil lançou a campanha “A violência não faz parte desse jogo”, para denunciar violações de direitos humanos na cidade olímpica. Um documento cobrando treinamento e abordagens adequados pelas forças de segurança, respeito à liberdade de manifestação pacífica, investigações imparciais e independentes e assistência a vítimas foi assinado por 120 mil pessoas e entregue ao Comitê Rio 2016. No mês passado, estreou o aplicativo Fogo Cruzado, um mapa colaborativo sobre ocorrência de tiroteios e confrontos. Em um mês, houve mais de 600 relatos.

Em sete anos de preparação para os Jogos, o Rio tampouco foi capaz de avançar na agenda ambiental, que prometia despoluir a Baía de Guanabara e as lagoas de Jacarepaguá. As competições de vela vão ocorrer num cenário livre apenas do lixo aparente, recolhido por balsas. E só Deus sabe o que pode acontecer se chover.

Os investimentos em mobilidade urbana não livraram a cidade de megaengarrafamentos na semana derradeira. Foram 120 quilômetros de puro estresse na última segunda-feira e 200, na terça. A circulação inviável levou à decretação do quarto feriado municipal durante a jornada olímpica, para desespero do empresariado ante ao efeito do expediente interrompido na atividade econômica. Todos esses passivos são conhecidos, merecem críticas e exigem mobilização permanente da sociedade carioca. A cidadania participativa do novo século não aceita o estelionato eleitoral nem se contenta com as realizações possíveis. O anseio é pela cidade ótima; e as autoridades têm de aprender a lidar com isso.

Mas a festa está na rua e o meu lugar, engalanado, é bonito como nenhum outro. Quando o clima de celebração se instala, a paixão renasce. As fotos lindas de todos os cantos da cidade que pipocam nas redes sociais são a prova. Difícil imaginar cenário mais bonito para uma competição esportiva, do Leme ao Pontal, da Lagoa ao Maracanã, do Centro a Deodoro.

As delegações estrangeiras, que desembarcam aos milhares com uniformes coloridos e smartphones em punho, estão a nos escancarar o significado dos Jogos. Os suíços tomaram a Lagoa; os franceses, a Hípica. A Dinamarca ocupou Ipanema; a Itália, a Barra. O CCBB abriu espaço para a magnífica exposição de obras dos museus D’Orsay e L’Orangerie, de Paris. Os mexicanos montaram uma mostra arqueológica e uma exposição audiovisual sobre Frida Kahlo no Museu Histórico Nacional. O “Abaporu”, obra-prima brasileira hoje no acervo do Malba argentino, migrou para o MAR. Virou capital do mundo o meu lugar.

O jamaicano Usain Bolt, multicampeão olímpico e mundial do atletismo, está treinando em instalações da Marinha, na Avenida Brasil. O igualmente laureado Michael Phelps, americano da natação, está na área. Simone Biles, fenômeno da ginástica artística dos EUA, e nosso Arthur Zanetti, o homem das argolas, também. A seleção bicampeã do vôlei feminino, orgulho nacional, vai brigar pelo tri. E vai que a seleção de futebol desencanta...

O povo do samba foi escalado e entrará em campo (viva!) na cerimônia de abertura e em programação intensa na região portuária revitalizada. Anteontem, os boêmios do Sat’s festejavam a vitoriosa campanha #agnaldoolimpico, que conseguiu fazer do garçom e churrasqueiro do bar de Copacabana um dos condutores da tocha. O Comitê Rio 2016 formalizou o convite após saber do flashmob etílico, que percorreu com um arremedo de chama olímpica 13 botequins do bairro. Mais carioca, impossível.

O Rio maltrata, mas é lindo. É lindo, mas maltrata. O Rio é cigarra; a gente intui o inverno de escassez, mas não resiste à cantoria do fim das tardes de verão. O Rio é amor bandido, é filho pródigo. A gente puxa a orelha e belisca; se emociona e acolhe. Me abraça, meu Rio.

LEIA TAMBÉM NOSSA MATÉRIA SOBRE AS OLIMPÍADAS CARIOCAS CLICANDO AQUI.

1.9.16

O AMANUENSE BELMIRO NO RIO DE JANEIRO


Numa época em que o regionalismo desponta como tendência hegemônica (quase um estilo de época) nas letras brasileiras, Cyro dos Anjos, em sua obra O amanuense Belmiro, vai na contracorrente com esse sui generis "diário" íntimo (que na verdade resultou do amálgama de uma série de crônicas jornalísticas) de um burocrata belo-horizontino de 38 anos, amanuense na Seção do Fomento Animal (“que não fomenta coisa alguma, senão o meu lirismo”) do Ministério da Agricultura, espécie de anti-herói chapliniano, “velho profissional da tristeza”, a cuja vida exterior normalmente banal (rompida vez ou outra por algum evento menos banal como a prisão por algumas horas por suspeita de comunismo ou a viagem ao Rio de Janeiro) se contrapõem os “abismos insondáveis” da alma embebida de paixão não correspondida, “ingênuos pensamentos, loucas fantasias”, dúvidas, incertezas (“Fali na vida, por não ter encontrado rumos. Este Diário, ou coisa que o valha, não é sintoma disso?”). 

O estilo é uma mescla de lirismo, ceticismo e ironia, com sutis toques machadianos. O autor assim consegue o milagre de transformar o cotidiano corriqueiro (“Que vim fazer neste mundo? Até agora nada realizei”) em material literário de primeira, nessa narrativa que se estende do Carnaval de 1935 até o do ano seguinte. Como espécie de ideia recorrente, o amor platônico pela bela Arabela, que na verdade é Carmélia Miranda, jovem de boa família, “criatura mais bonita [e] mais fina nestas redondezas”, que acaba casando com um distinto médico radiologista, o casal indo passar a lua-de-mel na Europa. 

Desfila por esse diário uma fauna de personagens, amigos do amanuense: a “desejável” (que hoje chamaríamos de “boazuda”  “como a saúde de Jandira convida a um higiênico idílio rural”) Jandira, o anarquista Redelvim (“um anarquismo lírico, que não dá para atirar bombas nem praticar atentados”), que o autor conheceu numa república de estudantes, o filósofo Silviano defensor da conduta católica (“fugir da vida no que ela tem de excitante”), o jovem colega de repartição Glicério “que é novo na vida e na burocracia”, o tranquilo Florêncio, “homem sem abismos”, “homem sem história” sempre provido das melhores e mais recentes anedotas, etc.

O autor às vezes coloca em dúvida a utilidade de seu diário (“Se, acaso, publicar um dia este caderno de confidências íntimas, perdoem-me os leitores as anotações de caráter muito pessoal, que forem encontrando e que certamente não lhes interessarão.”), outras vezes o justifica (“Por que um livro?”, foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse propósito. “Já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?” Respondi-lhe que perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo tantos.”)

A certa altura o autor (o livro é narrado em primeira pessoa) vem ao Rio sob pretexto de uma missão profissional qualquer, mas na verdade para ver o embarque da amada platônica recém-casada para a lua-de-mel na Europa. A seguir, trechos dos capítulos 77 a 80 que narram a aventura, ou melhor, desventura carioca:

Deixando o Arpoador, senti-me lúcido e triste

EIS-ME nesta mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Deixei Belo Horizonte com antecedência de alguns dias para não dar na vista do Glicério. Senti desejo de vir, e vim. De que vale a gente viver a contrariar-se? Por si mesma a vida já nos impõe tantas limitações... [...]

Nossos amigos cariocas não sabem o que vale o mar para nós, de Minas.

Desde cinco dias não faço outra coisa senão frequentá-lo no cais, na praia, pela manhã, pela noite. Anda enfurecido e sombrio, arrastando sua língua difícil. Tenho tentado, em vão, conversá-lo: está inacessível.

Perco-me, também, na contemplação comovida deste Rio velho, deste Rio torto e encardido, que é o que amo. A cidade nova e brilhante, que nasceu dos flancos da outra, me assusta e intimida. O Rio antigo traz-me imagens machadianas que amei na adolescência.

Percorrendo a Rua Matacavalos, pensei, com saudade, naqueles cavalheiros que andavam de tílburi, jogavam voltarete e tinham, sobre o mundo, pensamentos sutis. Divisei, a um canto, o vulto amável de Sofia e tive dó do Rubião. A meus ouvidos, mana Rita fazia insinuações (Cale a boca, mana Rita...). Em certo bonde, que me pareceu puxado por burricos, tive a meu lado Dom Casmurro, e lobriguei, numa travessa, dois vultos que deslizavam furtivos à luz escassa dos lampiões: Capitu e Escobar.

Andando sempre, e a pé (não aprendi, ainda, a usar convenientemente os ônibus), também fui dar comigo em regiões não machadianas. Os passos me levaram, distraído, a certos quarteirões movimentados, ribeirinhos do Mangue. Jamais me passara pela idéia uma visita a paragens tais, mas, como já ali me achasse, moveu-me a curiosidade de examinar os transeuntes e o local. Não fui muito adiante: encontrei militares de terra e mar algo tocados, que começaram a olhar-me de soslaio, e tratei de retirar-me com dignidade. Atrás, algumas damas de poucas ou nenhumas vestes me propunham em francês coisas não muito adequadas ao meu ofício e condição. Safei-me daquele mercado estranho, com o peito deprimido. Ali nenhuma ilusão era possível. [...]

Por que me perturba, assim, o mar? Diante dele, quando devia amesquinhar-me, exalto-me e quero compartilhar de sua energia cósmica. De onde nos será possível descortinar o alto panorama? Qual será o caminho—o da humildade ou o da dureza?

Deixando o Arpoador, senti-me lúcido e triste, como o marinheiro do poeta. Ficaram-me desejos confusos de amor e de aniquilamento. Se ao menos o amor se definisse, teríamos um sentido. Mas, que sabemos do amor? Impossível fixá-lo, encontrar-lhe a expressão real, permanente. Ele se compõe da variedade e da ondulação. Conhece todas as gradações, e seu objeto é ora fixo, ora móvel, ora uno, ora múltiplo.

Ainda estou a ouvir, como a uma sinfonia wagneriana, as vagas que batem no rochedo. A voz do grande paralítico.