Numa época em que o regionalismo desponta como tendência hegemônica (quase um estilo de época) nas letras brasileiras, Cyro dos Anjos, em sua obra O amanuense Belmiro, vai na contracorrente com esse sui generis "diário" íntimo (que na verdade resultou do amálgama de uma série de crônicas jornalísticas) de um burocrata belo-horizontino de 38 anos, amanuense na Seção do Fomento Animal (“que não fomenta coisa alguma, senão o meu lirismo”) do Ministério da Agricultura, espécie de anti-herói chapliniano, “velho profissional da tristeza”, a cuja vida exterior normalmente banal (rompida vez ou outra por algum evento menos banal como a prisão por algumas horas por suspeita de comunismo ou a viagem ao Rio de Janeiro) se contrapõem os “abismos insondáveis” da alma embebida de paixão não correspondida, “ingênuos pensamentos, loucas fantasias”, dúvidas, incertezas (“Fali na vida, por não ter encontrado rumos. Este Diário, ou coisa que o valha, não é sintoma disso?”).
O estilo é uma
mescla de lirismo, ceticismo e ironia, com sutis toques machadianos. O autor
assim consegue o milagre de transformar o cotidiano corriqueiro (“Que vim fazer neste
mundo? Até agora nada realizei”) em material literário de primeira, nessa narrativa que se estende do
Carnaval de 1935 até o do ano seguinte. Como espécie de ideia recorrente, o
amor platônico pela bela Arabela, que na verdade é Carmélia Miranda, jovem de
boa família, “criatura mais bonita [e] mais fina nestas redondezas”, que acaba
casando com um distinto médico radiologista, o casal indo passar a lua-de-mel
na Europa.
Desfila por esse diário uma fauna de personagens, amigos do
amanuense: a “desejável” (que hoje chamaríamos de “boazuda” — “como a saúde de
Jandira convida a um higiênico idílio rural”) Jandira, o anarquista Redelvim
(“um anarquismo lírico, que não dá para atirar bombas nem praticar atentados”),
que o autor conheceu numa república de estudantes, o filósofo Silviano defensor
da conduta católica (“fugir da vida no que ela tem de excitante”), o jovem
colega de repartição Glicério “que é novo na vida e na burocracia”, o tranquilo
Florêncio, “homem sem abismos”, “homem sem história” sempre provido das
melhores e mais recentes anedotas, etc.
O autor às vezes coloca em dúvida a utilidade de seu diário
(“Se, acaso, publicar um dia este caderno de confidências íntimas, perdoem-me
os leitores as anotações de caráter muito pessoal, que forem encontrando e que
certamente não lhes interessarão.”), outras vezes o justifica (“Por que um
livro?”, foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse
propósito. “Já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?” Respondi-lhe que
perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo
tantos.”)
A certa altura o autor (o livro é narrado em primeira
pessoa) vem ao Rio sob pretexto de uma missão profissional qualquer, mas na
verdade para ver o embarque da amada platônica recém-casada para a lua-de-mel
na Europa. A seguir, trechos dos capítulos 77 a 80 que narram a aventura, ou melhor,
desventura carioca:
Deixando o Arpoador, senti-me lúcido e triste |
EIS-ME nesta mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Deixei Belo Horizonte com antecedência de alguns dias para não dar na vista do Glicério. Senti desejo de vir, e vim. De que vale a gente viver a contrariar-se? Por si mesma a vida já nos impõe tantas limitações... [...]
Nossos amigos cariocas não sabem o que vale o mar para nós,
de Minas.
Desde cinco dias não faço outra coisa senão frequentá-lo no
cais, na praia, pela manhã, pela noite. Anda enfurecido e sombrio, arrastando
sua língua difícil. Tenho tentado, em vão, conversá-lo: está inacessível.
Perco-me, também, na contemplação comovida deste Rio velho,
deste Rio torto e encardido, que é o que amo. A cidade nova e brilhante, que
nasceu dos flancos da outra, me assusta e intimida. O Rio antigo traz-me
imagens machadianas que amei na adolescência.
Percorrendo a Rua Matacavalos, pensei, com saudade, naqueles
cavalheiros que andavam de tílburi, jogavam voltarete e tinham, sobre o mundo,
pensamentos sutis. Divisei, a um canto, o vulto amável de Sofia e tive dó do
Rubião. A meus ouvidos, mana Rita fazia insinuações (Cale a boca, mana
Rita...). Em certo bonde, que me pareceu puxado por burricos, tive a meu lado
Dom Casmurro, e lobriguei, numa travessa, dois vultos que deslizavam furtivos à
luz escassa dos lampiões: Capitu e Escobar.
Andando sempre, e a pé (não aprendi, ainda, a usar
convenientemente os ônibus), também fui dar comigo em regiões não machadianas.
Os passos me levaram, distraído, a certos quarteirões movimentados, ribeirinhos
do Mangue. Jamais me passara pela idéia uma visita a paragens tais, mas, como
já ali me achasse, moveu-me a curiosidade de examinar os transeuntes e o local.
Não fui muito adiante: encontrei militares de terra e mar algo tocados, que
começaram a olhar-me de soslaio, e tratei de retirar-me com dignidade. Atrás,
algumas damas de poucas ou nenhumas vestes me propunham em francês coisas não
muito adequadas ao meu ofício e condição. Safei-me daquele mercado estranho,
com o peito deprimido. Ali nenhuma ilusão era possível. [...]
Por que me perturba, assim, o mar? Diante dele, quando devia
amesquinhar-me, exalto-me e quero compartilhar de sua energia cósmica. De onde
nos será possível descortinar o alto panorama? Qual será o caminho—o da
humildade ou o da dureza?
Deixando o Arpoador, senti-me lúcido e triste, como o
marinheiro do poeta. Ficaram-me desejos confusos de amor e de aniquilamento. Se
ao menos o amor se definisse, teríamos um sentido. Mas, que sabemos do amor?
Impossível fixá-lo, encontrar-lhe a expressão real, permanente. Ele se compõe
da variedade e da ondulação. Conhece todas as gradações, e seu objeto é ora
fixo, ora móvel, ora uno, ora múltiplo.
Ainda estou a ouvir, como a uma sinfonia wagneriana, as
vagas que batem no rochedo. A voz do grande paralítico.
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