ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

21.12.16

CAIS DO VALONGO, de NIREU CAVALCANTI

TEXTO ESCRITO PELO HISTORIADOR NIREU CAVALCANTI EM 20 DE DEZEMBRO DE 2016 E ENVIADO AOS AMIGOS, ENTRE OS QUAIS TENHO A SORTE DE ESTAR

Pessoal amigo

Venho há muito tempo tentando trazer para a reflexão na mídia essa farsa do “Cais do Valongo” destinado ao desembarque de escravos. Assim, trago algumas de minhas conclusões sobre a questão resultantes de árduas pesquisas.

O comércio de escravos (os armazéns) no Valonguinho (a primeira parte da imensa praia que se estendia da Pedra do Sal até o morro da Saúde), seguida da parte chamada de Valongo, transferiu-se para a região por iniciativa da Câmara de Vereadores, dos comerciantes de grosso-trato não envolvidos com o comércio negreiro, dos cirurgiões e médicos, dos profissionais de engenharia e arquitetura, a partir de janeiro de 1758.

Naquela época acreditava-se que as epidemias que grassavam na cidade tinham origem nos armazéns situados na área central – região do entorno da atual Praça XV – condição incompatível, segundo os contemporâneos, com cidade do porte e da importância do Rio de Janeiro.

Alguns negociantes negreiros entraram no Tribunal da Relação questionando se procedia, de fato, a relação entre as epidemias e os armazéns de escravos. O processo arrastou-se naquele Tribunal, mas por decisão do vice-rei Marquês do Lavradio, aqueles comerciantes foram obrigados a se deslocar a nova região demarcada pela Câmara de Vereadores.

O comércio negreiro no Valongo teve sua duração de 1760 até 1830, ano em que o tráfico negreiro efetivamente já estava reduzido. Para alcançar 1.000.000 de escravos seria necessário que entrassem mais de 14 mil escravos por ano. Os livros da Alfândega durante o século XVIII registram no máximo 11.000 em alguns anos (cerca de cinco).

Com a chegada da Corte e assinatura de tratado comercial com a Inglaterra, um dos seus itens estabelecia o compromisso da monarquia portuguesa iniciar a redução do tráfico negreiro, até sua total extinção (que só veio a ocorrer em 1850). Os comerciantes negreiros apressaram-se, então, em trazer mais escravos. Registros na Alfândega para os anos de 1810 e 1811 mostram a chegada de 20.000 escravos, em cada ano.

O cais da cidade (da Misericórdia até o Arsenal da Marinha) ficou incompatível com a demanda oriunda da abertura dos portos do Brasil, pelo príncipe regente D. João, ao comércio com as nações amigas. O número de navios mercantes estrangeiros aumentou significativamente, além dos navios originários do crescimento do comércio interno entre as províncias.

Na última década do século XVIII os comerciantes que usavam os portos do interior da Baía de Guanabara, principalmente os negociantes de Minas Gerais, solicitaram permissão para construírem, às suas custas, um cais na região do Valongo, ou Gamboa. Argumentavam sobre o prejuízo que tinham com a pequenez do “Cais dos Mineiros”, vizinho à Alfândega. Foi negado o pedido pelo vice-rei conde de Resende, sob o argumento de que seria perigoso incentivo ao contrabando de mercadorias, principalmente de escravos.


Este perfeito mapa da região (1791) do Valonguinho-Valongo mostra a Pedra do Sal (“Pedra da Prainha”) avançando pelo mar da baía, interrompendo a ligação entre o trecho da Prainha (atual Praça Mauá) e a marinha do Valongo. Assim como não registra nenhum cais público, apenas os atracadouros dos diversos trapiches.


A ausência de cais público ocorre neste mapa de 1808. Mostra a cidade que D. João encontrou quando chegou.

Dom João, em 1809, resolveu fazer um cais do Largo da Prainha até o morro da Saúde. Foi feito o projeto, mas não tinha o Tesouro recursos para arcar com essa despesa, principalmente fazer o corte na Pedra do Sal e indenizar todos os proprietários que tinham trapiches, ou moradias e comércio ao longo desse cais. A obra se arrastou por anos e a partir de 1821 já há citação documental de que foram construídos parte do cais (muralha), algumas rampas e degraus. É importante frisar que esse cais Joanino destinava-se aos navios mercantes, não negreiros. Os escravos continuavam a desembarcar, serem cadastrados e pagos os impostos na Alfândega [atual Casa França-Brasil], como registra Rugendas em 1828.



Esta aquarela de Thomas Ender (c. 1818) mostra a Pedra do Sal ainda em processo de corte e a praia do Valonguinho-Valongo sem cais.


Neste mapa (1829) observamos que o corte da Pedra do Sal foi totalmente realizado e feito para a nova urbanização da orla, registrando ainda o aparecimento de vários atracadouros e novos trapiches ao longo de toda a marinha.


Gravura de Rugendas (1828) mostrando o processo de chegada dos escravos novos na Alfândega.

Uma grande obra de renovação, ampliação e embelezamento do cais do Valongo foi realizada para o desembarque da imperatriz Theresa Cristina (03/09/1843), esposa de D. Pedro II.


Mapa de 1844, um ano após a construção do cais da Imperatriz (Praça Municipal), mostra a nova zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.

Portanto, o cais descoberto na região do Valongo e que poderemos ter a felicidade de visitar é o construído para aquele importante marco político-histórico no Brasil.

O tombamento da região do Valongo como Patrimônio da Humanidade é mais do que recomendável: zona do comércio negreiro, abrigo do campo santo dos escravos novos. O cemitério lá se encontra, sob várias construções da Rua Pedro Ernesto – a antiga rua do Cemitério ─, além de ter sido o cenário vivo da união das nobrezas europeias: os Bourbon e os Bragança, nos trópicos e continente Americano.

Cabe, por fim, destacar que o Brasil é o único país da América que foi reinado e império.


Grandjean de Montigny: Projeto de fonte comemorativa da chegada da imperatriz D. Theresa Cristina. (1843).

Observação: todos os mapas e iconografias pertencem ao Acervo da Biblioteca Nacional e podem ser acessados no seu portal digital.

Escrito por Nireu Cavalcanti. Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2016. Clique no label "História do Rio" abaixo para ler outras matérias neste blog sobre a história da cidade.

1.12.16

HISTÓRIA DO CLIMA DO RIO DE JANEIRO DOS TEMPOS COLONIAIS À ERA DO AQUECIMENTO GLOBAL: SEMPRE FEZ CALOR OU ANTIGAMENTE ERA MAIS FRESCO?

UMA PESQUISA DE IVO KORYTOWSKI

Capa da Revista Illustrada de 3 de novembro de 1877 alusiva à onda de calor que assolava o Rio de Janeiro. Na página 6, dizia a revista: "O calor tem estado insuportável, dizem todos que o suportam. Eu porém não me queixo, porque mal de muitos, consolo é."

Que verão insuportável!
Não se pode caminhar!
Que calor desagradável!
Vivem todos a pingar!
Tal verão parece incrível,
É o verão do Senegal!
Ó que calor impossível!
Ó que calor infernal!
É um tormento, uma agonia,
Um martírio de matar!
Só com dez banhos por dia
Pode a gente se lavar!

Correio da Manhã, 21/2/1909


O ano vai chegando ao fim e o carioca tem a consciência de que, passada a temporada de chuvas, virá o calor implacável, o Rio 40 Graus. Será que antigamente fazia menos calor no Rio de Janeiro? Ou a cidade sempre foi um “forno”, uma sauna? A julgar pelos versinhos acima, que encontrei no jornal Correio da Manhã de 21 de fevereiro de 1909, ou pelo hábito da família imperial e da nobreza brasileira de passarem o verão em Petrópolis, parece que o calor carioca é um fenômeno antigo, embora tenha se agravado com o aquecimento global, como veremos. Mas comecemos pelo princípio, pelos primórdios da cidade.

O primeiro registro sobre o clima carioca de que temos notícia é do marinheiro, geógrafo e escritor veneziano Antonio Pigafetta, que acompanhou a viagem de circunavegação de Fernão de Magalhães, sendo um dos seus dezoito sobreviventes e tendo escrito um relato precioso (Primo viaggio intorno al globo terracqueosobre as peripécias daquele périploEscreve ele: 

In questo porto (detto poi Rio Janeiro) entrammo il dì di S. Lucia, avendo il sole allo zenit nel mezzodì, ed ebbimo, nel tempo del nostro soggiorno colà, più caldo che non n’avevamo provato sotto la linea equinoziale.

Em português: 

Nesse porto (chamado depois de Rio Janeiro) entramos no dia de Santa Luzia [13 de dezembro], com o sol no zênite ao meio-dia, e sofremos, durante nossa estadia lá, mais calor do que havíamos experimentado sob a linha equinocial [do Equador].
 
Um relato pouco posterior à fundação oficial da cidade (em 1565) é o do jesuíta português Fernão Cardim, que aqui esteve como secretário do visitador da companhia, de 1583 a 1598, retornando como provincial da companhia de 1604 a 1609. Em carta ao padre provincial de Portugal onde descreve sua passagem pelo Rio de Janeiro, em dezembro de 1584, Cardim discorre sobre o clima brasileiro. A carta encontra-se na obra Tratados da terra e gente do Brasil que pode ser acessada na Brasiliana Eletrônica. Vejamos o que diz Cardim levando em conta que naquela época grande parte da mata atlântica que cobria nosso litoral ainda estava intacta e a cidade do Rio de Janeiro se restringia a algumas construções no Morro do Castelo e em pequeno trecho da Várzea:

O clima do Brasil geralmente é temperado de bons, delicados, e salutíferos ares, donde os homens vivem muito até 90, cento e mais anos, e a terra é cheia de velhos; geralmente não tem frios, nem calmas [=calor forte causado pelo sol com cessação dos ventos], ainda que do Rio de Janeiro até São Vicente há frios, e calmas, mas não muito grandes; os céus são muito puros e claros, principalmente de noite; a lua é mui prejudicial à saúde, e corrompe muito as cousas; as manhãs são salutíferas, têm pouco de crepúsculos, assim matutinos, como vespertinos, porque, em sendo manhã, logo sai o sol, e em se pondo logo anoitece. O inverno começa em março, e acaba em agosto, o verão começa em setembro e acaba em fevereiro; as noites e dias são quase todo o ano iguais.

Na época colonial, as Observações físicas meteorológicas feitas na cidade do Rio de Janeiro no anno de 1787, manuscrito de Bento Sanches Dorta, correspondente da Real Academia de Ciências de Lisboa, que podem ser acessadas na Biblioteca Nacional Digital, dão uma ideia do clima da época. A Tabela 3a das Observações, intitulada Graus de Calor no Termômetro, apresenta as temperaturas máxima e mínima de cada mês e a média daquele mês. A seguir, a tabela original, em graus Fahrenheit, seguida de um quadro com sua conversão para graus centígrados. Observe que as temperaturas máximas são razoavelmente altas para a época, considerando-se a inexistência de ar-condicionado (atingindo um pico de 34,17oC em 3 de março), e que a média anual de 23,41 não está tão distante assim das médias dos últimos cinquenta anos (mais adiante examinaremos séries de temperaturas de 1961 até 2015 obtidas no banco de dados do INMET).




dia
máxima
dia
mínima
média
jan
14
32,22
2
20,00
27,25
fev
8
33,47
2
22,22
28,22
mar
3
34,17
16
20,00
26,06
abr
27
31,39
20
16,39
23,81
mai
19
24,72
6
15,56
20,11
jun
21
26,67
10
12,78
20,56
jul
31
27,78
9
13,89
19,50
ago
27
28,33
15
12,78
19,89
set
29
27,22
2
16,67
22,06
out
3
31,11
20
16,11
23,84
nov
10
30,28
12
16,67
23,88
dez
30
32,78
16
16,11
25,74
MÉDIA ANUAL




23,41

Escreve o meteorologista dos tempos coloniais: “O maior calor desse ano, indicado no termômetro de Fahrenheit, é de 93,5 [34,17oC] pelas horas da tarde do dia 3 de março: havendo no céu várias nuvens brancas espalhadas em forma de barras, e correndo o vento N'. [...] O menor calor foi 55 [12,78oC] anunciado pelo mesmo instrumento duas vezes. Primeira a 10 de junho às 7 da manhã; estando o céu muito claro; e ventando levemente do N'O. [...] Segunda a 15 de agosto às 6 da manhã: havia nuvens negras acasteladas [=empilhadas] formadas pelo céu, e soprava um forte vento de O. [...] O calor médio de todo o ano chegou a 74,16 [23,42oC], resultado que deu a adição de 2816 observações. Uma curiosidade: Em seu estudo meteorológico, Dorta menciona uma terrível tempestade ocorrida em janeiro:

No dia 24 de janeiro de 1787, pelas 2 da tarde estando o barômetro na direção de 28. [?] e o termômetro anunciando 84. [28,89oC] de calor, ventando fortem. do S.O., começou uma grande chuva, acompanhada de horríveis trovões, e continuados relâmpagos de diversos pontos do horizonte, que incendiavam todo o hemisfério, e prolongando-se essa tormenta até as 4.h 20’ [4 horas e 20 minutos], acabou lançando um Raio em uma Corveta, que se achava neste Rio.

O viajante inglês John Luccock, que residiu no Rio de Janeiro de 1808 a 1818 e viajou pelo Brasil, escreve no Capítulo 2 de seu Notes on Rio de Janeiro and the Southern parts of Brazil: "The great heat of the climate of Rio, has repeatedly been alluded to: I have seen Farenheit's thermometer, when exposed to the sun, as high as 130°; at the same time, it reached 96° in the shade. The country round about is, in general, cooler than the city; in some of the mountainous parts, it is much cooler than its immediate neighbourhood." Traduzindo e convertendo: "O grande calor do clima do Rio tem sido repetidamente citado: vi um termômetro Farenheit, quando exposto ao sol, atingir 130° [54 graus centígrados]; ao mesmo tempo, atingiu  96° [36 graus centígrados] na sombra. O campo circundante costuma ser mais fresco do que a cidade; em algumas partes montanhosas, é bem mais fresco do que sua vizinhança imediata." Observe que esse capítulo foi escrito em 1808!

Nessa mesma época, o oficial Thomas O'Neil, da Marinha Real do Reino Unido, vindo na esquadra inglesa que escoltou a corte portuguesa na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro, em seu A concise and accurate account of the proceedings of the squadron under the command of Rear Admiral Sir Sydney Smith, K.S.&c. effecting the escape of the Royal Family of Portugal to the Brazils on November, 29, 1807, observou (a tradução do inglês é minha): “O clima da América do Sul é agradável e saudável, estando livre de muitos inconvenientes que tendem a ocorrer em outros países tropicais. Embora situado sob o Trópico de Capricórnio, o ar é poucas vezes imediatamente quente, já que a brisa marinha regularmente começa a soprar de manhã e continua até a noite, quando é sucedida por um agradável vento terrestre.” 

Em seu livro Travels in South America, During the Years of 1819-20-21 (Viagens na América do Sul durante os anos de 1819-20-21) o negociante e viajante inglês Alexander Caldcleugh, que acompanhou o ministro inglês à corte no Rio, escreveu: “O mês mais quente é fevereiro, quando o barômetro fica em cerca de 86° ou 88° Fahrt. [30 ou 31°C] e, se nesse período, a ordem da natureza é invertida permitindo que a brisa terrestre prevaleça o dia inteiro, um evento que felizmente acontece raramente, o termômetro se eleva proporcionalmente. Em uma ocasião, quando a brisa terrestre continuou até quatro horas da tarde, o ar esteve intoleravelmente opressivo, parecendo o vento quente da Índia. Às cinco horas o temporal começou, e uma queda imediata ocorreu no termômetro, que logo após o alvorecer na manhã seguinte, quando foi registrado, estava assim: máxima 120° [48,9°C], mínima 56° [13,3°C], uma diferença de 84º. Durante o verão os habitantes preservam uma baixa temperatura na casa abrindo as janelas por uma ou duas horas no despontar do dia, e depois fechando as persianas o resto do dia. 

Em dezembro de 1817, Rose Marie de Freycinet, que veio (inicialmente como clandestina) junto com o marido, oficial da Marinha, na expedição científica da corveta Uranie ao redor do mundo, ao chegar no Rio de Janeiro em dezembro de 1817, escreveu em seu diário: “Il fait extrêmement chaud dans la ville, mais chaque jour, vers 11 heures du matin, il s'éleve de la rade un vent frais, que nous autres marins nous appelons une petite brise, qui vient rendre la chaleur supportable et entretenir l'éclat de la verdure." Tradução: "Faz muito calor na cidade, mas todos os dias, em torno das 11 da manhã, levanta-se, do porto, um vento fresco que nós, marinheiros, chamamos de brisa leve, que torna o calor suportável e conserva o esplendor da vegetação." (PDF com texto original baixado do site Gallica. Ver também: Luís Edmundo, Recordações do Rio Antigo, “Diário de Rose de Freycinet”.)

A inglesa Maria Graham, que em 1821 acompanhou o marido, oficial da marinha real britânica, em missão naval à América do Sul, em 1o de março de 1822 escreveu o seguinte em seu diário de viagem sobre o calor carioca: O tempo agora está excessivamente quente, o termômetro raramente caindo abaixo de 88[Fahrenheit = 31oC], e tivemos a bordo 92o Fahrenheit [33,3oC]. Em outro ponto do diário, no contexto dos distúrbios entre tropas portuguesas e brasileiras após a decisão de D. Pedro de, desobedecendo às Cortes, permanecer no Brasil, quando quis ir até o Campo de Santana ver as tropas brasileiras reunidas, Maria Graham comenta que custou a conseguir uma carruagem para levá-la até lá, já que "estava quente demais para ir andando". Depois que o navio deixa o Rio rumo ao Chile, ela anota: "O frio aumentou sensivelmente. O termômetro Fahrenheit com frequência marcava 92o [33,3oC] no porto do Rio. Agora está em 68o [20oC], e temos muitos doentes."

Em seu diário de 5 de outubro de 1824, o naturalista naturalizado russo barão Georg Heinrich von Langsdorff, ao defender a transferência da capital brasileira para o Arraial de Curral D'El Rei, futura Belo Horizonte, devido à sua posição estratégica “no centro desta Província populosa e do Império”, cita como ponto negativo do Rio de Janeiro, além de “sua distância em relação às mais longínquas províncias”, o “calor e o clima” (Fonte: pág. 159 da edição dos diários pela Fiocruz, acessível aqui).

Também o arquivista real Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que chegou no Rio em 1811 acompanhando a transferência da biblioteca real de Lisboa para cá, em suas cartas ao pai reclama do calor carioca:

“Eu tenho curtido um grande defluxo procedido do ar infernal desta terra e tenho sofrido uma grande hemorragia de sangue (sic) pelo nariz, por cuja causa estou temendo os grandes calores do verão, porque me hão de afligir muito.” (21/7/1811, fonte: “MEMÓRIAS E COTIDIANO DO RIO DE JANEIRO NO TEMPO DO REI”, Biblioteca Nacional Digital)
“tenho sofrido grandes incômodos com o calor que vai agora apertando com força, não obstante as chuvas e trovoadas; em um destes dias caiu um raio no iate de S.A.R., o Monte de Ouro, mas não causou dano. Aqui são frequentes e fáceis em cair na terra, por serem muito baixas as trovoadas e os ares muito crassos.” (17/11/1812)
“tenho passado muito incomodado com esta quadra de calor, que sendo muito intenso, afrouxa, abate e torna a gente incapaz para tudo, chegando o termômetro a subir 95 graus [Fahrenheit = 35oC] e nunca descendo de 80 [26,7oC].” (25/1/1814)
“No princípio de janeiro, levantei-me da cama, mesmo por causa do intenso calor da estação e comecei a tomar tônicos e cáusticos, por causa do ouvido e olho” (2/2/1817)

Em seu Comunicado sobre a fundação de Petrópolis no Jornal do Commercio de 17/2/1845, afirma Julio Frederico Koeler, planejador da cidade serrana: Uma das maiores necessidades que experimentam os habitantes da corte e capital do Rio de Janeiro é a de poderem aliviar-se do intenso calor que sofrem durante os meses de verão. A serra da Estrela, uma das mais elevadas da cordilheira, lhes oferece esse refrigério, tanto pelo seu clima sumamente saudável e temperado, e águas abundantíssimas, como pela comodidade e rapidez com que é possível efetuar a mudança de uma atmosfera abrasadora para outra temperadíssima, com uma diferença de 25 graus do termômetro de Fahrenheit [13,9oC].

A austríaca Ida Pfeiffer, uma ex-pacata dona de casa que, depois de criar os filhos, resolveu se dedicar às viagens internacionais e deu duas voltas ao mundo, escreveu sobre o clima do Rio, cidade onde desembarcou em 17 de setembro de 1846: Achei o clima e o ar bem opressivos e desagradáveis, o calor, embora naquela época do ano mal passasse dos 24 graus na sombra, bem debilitante – nos meses quentes, que duram do fim de dezembro até maio, o calor sobe na sombra até 30 graus, ao sol acima de 40 graus. Eu suportei no Egito um calor maior com bem mais facilidade do que um menor aqui, o que talvez resulte do fato de ali ser mais seco, enquanto aqui reina uma grande umidade [...]

Na obra  BRAZIL PITTORESCO de 1861, escreve Charles Ribeyrolles: “Às vezes, nos calores tórridos do verão, a cidade cozinha-se como em uma cuba, e os próprios negros procuram abrigo. Mas onde achar o fresco, a brisa, a sombra, se não há árvores, se não há pórticos nas grandes praças?

O escritor Graciliano Ramos, que aos 21 anos decidiu tentar a sorte no Rio de Janeiro, morando numa pensão da Lapa e trabalhando como revisor na imprensa carioca (como você pode conferir clicando aqui), em 29 de janeiro de 1915 escreveu em carta para Leonor Ramos: Leonor: terrível, medonho, insuportável este Rio de Janeiro durante estes últimos dias. Um calor, santo Deus! Um calor de todos os diabos! Nunca senti tanto calor em minha vida! Ao meio-dia zumbe-nos alguma coisa nos ouvidos, como se tivéssemos um bando de moscas dentro da cabeça. Não se pode trabalhar. Não leio, não escrevo, não posso fazer nada, que isto é pior que as caldeiras do inferno. Deito-me na cama, em cima de uma coberta muito fina, abro um livro. Coisa pavorosa! Parece que os olhos me fervem e as letras dançam. Em cinco minutos, fico nadando num mar de suor. Ontem deram-se aqui dezesseis casos de insolação, sendo quatro fatais. Quatro, compreendes? Morreram quatro pessoas assadas. É um horror!” 

Em carta de 16 de fevereiro de 1966, meu pai, Joaquim Korytowski, reclamava: Aqui as novidades são poucas, o calor continua intenso e persistente. Parece que dentro de 1 semana se esgotou a chuva para o ano todo; agora é calor contínuo, dia e noite, só falta fazer sol à noite...

Mas se sempre fez calor no Rio, deve haver registros disso em nossa literatura. Aqui estão alguns: 

► Em Fogo fátuo, um romance de base memorialística do escritor brasileiro Coelho Neto, continuação de A Conquista, tendo como personagens sua geração de poetas, teatrólogos, jornalistas, intelectuais e boêmios cariocas no período que vai da Abolição até os primeiros anos da República Velha. No romance existem duas menções ao calor do Rio.

Página 41:
O verão ardia asfixiante com a febre amarela no auge. Tinha-se a impressão de que os telhados e as pedras do calçamento crepitavam.

Página 62:
O que está me fazendo falta é uma boa borrasca, como as de janeiro, na Europa: neve nas ruas, o vento a esfrolar frocos, o termômetro abaixo de zero, como eu, e um bom lume a arder no fogão Pode-se lá viver a 36o à sombra, com o mesmo capote com que se atravessava o Neva em trenó!? Isto é um país horrendo! Toda a minha indumentária decente está inutilizada: peliça, gorros de astracã, luvas forradas... Se eu arranjasse um emprego na fábrica de gelo, ainda bem. Mas qual! Hei de morrer assim.

► Em "folhetins" (como se chamavam então as crônicas publicadas na imprensa) "Ao Correr da Pena" escritos por José de Alencar antes de se tornar um romancista célebre. No folhetim de 26 de novembro de 1854, escreve Alencar: "A força do verão já se vai fazendo sentir. e aqueles que não estão presos à vida da cidade estão já tratando de fugir desse clima ardente, e de procurar algures um refrigério aos calores da estação." Mas menos de um mês antes (29 de outubro) Alencar citara tardes de verão mais amenas: "Quando estiverdes de bom humor e numa excelente disposição de espírito, aproveitai uma dessas belas tardes de verão como tem feito nos últimos dias, e ide passar algumas horas no Passeio Público, onde ao menos gozareis a sombra das árvores e um ar puro e fresco, e estareis livres da poeira e do incômodo rodar dos ônibus e das carroças." 

Em crônica de Machado de Assis na coluna "A Semana" da Gazeta de Notícias de 7 de janeiro de 1894: 
Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo, — quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto. Um amigo meu conta-me coisas terríveis do verão de Cuiabá, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administração pública. Tudo vai para as redes. Aqui não há rede, não há descanso, não há nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar conversações moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que conhecem pouco e são obrigadas a vinte ou trinta minutos de bond [bonde]. Começa-se por uma exclamação e um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminiscências, e a declaração inevitável de que a pessoa passa bem de saúde, a despeito da temperatura. 
— Custa-me a suportar o calor, mas de saúde passo maravilhosamente bem.  

 Em O Ateneu de Raul Pompeia: "Por ocasião dos intensos calores de fevereiro e março e do fim do ano, havia aí dois banhos por dia. E cada banho era uma festa [...]"

 Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto:

Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores e punha nas cousas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que ele mesmo provocava.

Em dezembro de 1906, na sua crônica mensal para a revista Kosmos, Olavo Bilac reclama do calor carioca:

Dezembro. Começaram os ásperos calores, as nuvens de pó sufocante, a tortura longa dos quatro meses infernais. Que pena tenho eu de não ser cigarra ou lagarto! essas duas espécies de criaturas nasceram para viver ao sol, como as fabulosas salamandras nasceram para viver no fogo: quanto mais arde o sol de verão, mais cantam as cigarras nas árvores, e mais se regalam os lagartos nas pedras escaldadas; felizes criaturas! não suam, e não sabem o que são brotoejas. Mas não sou lagarto, nem cigarra, – e tenho de suar, arfar, e penar como homem.

Que fazer, para poder dormir, depois do trabalho diurno, nestas horríveis noites do nosso verão, – de ar abafado, de árvores paradas, de hálito ardente saindo da terra, de peso opressivo caindo do céu, onde palpitam e tremem com um brilho seco as estrelas, como carvões acesos no fundo de um forno?

► Em Baú de Ossos, primeiro livro de memórias de Pedro Nava, onde ele conta como seu avô literalmente “morreu de calor”, especificamente, de tísica galopante resultante de um banho gelado tomado para aliviar o calor. Conta Nava:

Só o que meu avô não tolerava era o calor. Aquele túnel ardente em que se tornava a Rua General Câmara em janeiro, fevereiro, março, quando pesava um ar de forno úmido, cuja imobilidade lhe fazia suspirar pelos secos ventos da Fortaleza. A noite ainda era pior e parecia que as rochas escalavradas das nossas encostas esperavam que o sol escondesse para substituí-lo, irradiando aquela temperatura que tinha cheiro de tijolo cozido. Meu avô aproveitava essa hora para sair pelo bairro com a mulher, procurando um pouco de ar respirável. [...] Num dia particularmente quente [em 1880], falhou o seu juízo e ele chegou em casa mais cedo, ar deliberado, acompanhado de galego portador de uma barra de gelo. Mandou pô-la na banheira, abriu a torneira, deixou derreter e quando a água estava bem fria, surdo às advertências de Dona Nanoca, meteu-se no banho, em que ficou até sentir o mal-estar que o levou para a cama tremendo todo, naquele arrepio profundo da febre, que põe ventos polares nas areias da Líbia. [...] A 1o de junho de 1880 meu avô saiu de casa para sempre. Seguiu o mesmo trajeto cotidiano, agora no coche fúnebre que minha avó viu estrelar-se como ameba preta dentro de suas lágrimas [...] Ali, na Quadra 38, Sepultura Perpétua 2.502, a terra lhe comeria as carnes e o lençol-d'água lhe lavaria os ossos.

Vimos assim que o Rio de Janeiro sempre foi quente no verão, mas será que o aquecimento global aumentou ainda mais as temperaturas? Para responder a estas perguntas, obtive no banco de dados do INMET (Instituto Nacional de Meteorologia) as temperaturas máxima média, compensada média e mínima média, mês a mês, de 1961, quando os dados começaram a ser registrados, até 2015. Depois calculei as médias anuais, que você pode ver no quadro abaixo. Observe que faltam alguns anos, seja porque a série nesses anos está incompleta (caso de 1979 a 1982), ou porque os dados não foram registrados naqueles anos (caso da lacuna de 1991 a 2002).

Ano
Temperatura Máxima Média
Temperatura Média Compensada
Temperatura Mínima Média
1961
28,07
24,53
21,65
1962
26,55
23,19
20,47
1963
27,55
23,85
20,76
1964
26,34
22,99
20,24
1965
27,79
24,21
21,36
1966
27,80
24,23
21,36
1967
27,09
23,88
21,30
1968
26,09
22,74
19,97
1969
27,10
23,76
21,11
1970
27,12
23,65
20,79
1971
27,32
23,77
20,81
1972
27,87
24,16
21,28
1973
27,62
24,26
21,54
1974
26,92
23,58
20,70
1975
26,61
23,27
20,43
1976
26,73
23,44
20,64
1977
27,57
23,95
21,01
1978
27,03
23,59
20,70
1983
26,95
23,69
21,18
1984
27,46


1985
27,06


1986
27,77


1987
27,66
0,00
21,23
1988
27,29
0,00
20,77
1989
27,10
0,00
20,91
1990
27,82
24,19
21,19
2003
30,60
25,52
22,16
2004
29,63
24,77
21,44
2005
30,57
25,49
22,02
2006
30,29
25,09
21,67
2007
30,92
25,51
21,89
2008
29,80
24,80
21,48
2009
30,85
25,72
22,21
2010
30,85
25,62
22,18
2011
29,91
24,77
21,59
2012
30,80
25,39
22,12
2013
29,46
24,90
21,74
2014
29,80
25,36
22,02
2015
29,99
25,67
22,50

Observamos que, de 1961 a 1990, a temperatura média compensada (23,74oC) praticamente empata com aquela de 1787 (23,41oC), ou seja, durante séculos a temperatura carioca manteve-se estável. Mas no século XXI as temperaturas dão um salto, como mostra o quadro a seguir:


Faixa de anos
Máxima média
Média compensada
Mínima média
1961 a 1990
27,24
23,75
20,93
2003 a 2015
30,27
25,28
21,92


A temperatura máxima média aumentou mais de três graus, a temperatura média aumentou um grau e meio, e a mínima média ficou um grau mais alto. Moral da história: O Rio sempre foi quente, mas no século atual esquentou ainda mais. (PS. Clique no label calor carioca abaixo para ver outras postagens sobre o tema.)