ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

20.6.16

VISITA AO MUSEU DO AMANHÃ


O Rio é rico em museus, alguns tradicionais, como o das Belas Artes e o Histórico Nacional, outros mais recentes (e, portanto, mais interativos) como o MAR e o ainda não inaugurado MIS. Mas o Museu do Amanhã é diferente de tudo. Primeiro, pelo projeto arrojado, futurista, pós-moderno do arquiteto espanhol Santiago Calatrava (embora os irreverentes de plantão digam que se assemelha a uma barata) que proporciona não só uma experiência estética para quem o contempla do lado de fora, mas também uma experiência espacial inusitada e surpreendente para quem o percorre por dentro. A exposição permanente pode ser descrita por termos como experiencial, sensorial, interativo, imersivo, audiovisual, multimídia, sensacional, em suma, um barato como diríamos nos anos sessenta. O filme amador acima dá uma ideia da experiência, mas deixe para ver depois de ter visitado o museu para não estragar a surpresa.

Explica a página do museu no site do Porto Maravilha: "A experiência promove o encontro entre ciência e arte, razão e emoção, linguagem e tecnologia, cultura e sociedade. Iniciativa da Prefeitura do Rio realizada com a Fundação Roberto Marinho, o museu já é ícone das transformações pelas quais a cidade vem passando." Nos fins de semana as filas são enormes (tipo Louvre), e nos seis primeiros meses de operação o museu já recebeu meio milhão de visitantes. Mas de terça a sexta é tranquilo. Funciona das dez às dezessete, com ingresso a 10 reais, meia para estudantes e jovens e gratuidade nas terças ou último domingo do mês, ou para estudantes ou professores da rede pública, ou ainda para sexagenários como eu ou ainda mais maduros. Está tudo explicadinho no site do museu. O museu faz parte de um grandioso projeto de revitalização da Zona Portuária e da orla do Centro da Cidade, como que criando uma nova cidade dentro da cidade já existente.

17.6.16

MORRO DO PINTO no SANTO CRISTO II

O MORRO DA JULES RIMET, CRÔNICA DE JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS PUBLICADA ORIGINALMENTE EM O GLOBO DE 30/6/2014. FOTOS DO MORRO DO PINTO TIRADAS EM 16 DE JUNHO DE 2016 PELO EDITOR DO BLOG.

Dizem — pode ser lenda urbana, pode ser a força de imaginação carioca —, dizem, na esquina das ruas Farnese e Mont’Alverne, que o morro é urbanizado assim porque Getúlio Vargas tinha uma amante na Rua Deolinda.

Torre da antiga fábrica Bhering aos pés do Morro do Pinto

A confirmar.

O Morro do Pinto é o da música do Geraldo Pereira, aquele em que o Escurinho — depois de ir ao Morro da Formiga procurar intriga, ir ao Morro do Macaco pra bater num bamba —, no final de seu périplo sincopado pelos morros do Rio, o Escurinho malemolente vai ao Morro do Pinto acabar com o samba.

Do Morro do Pinto dá para ver o Maracanã ao longe (centro esquerda, abaixo das bases dos morros). E os arranha-céus novos que  vão surgindo no Porto Maravilha

Pois eu, que não sou esse escurinho todo e quero mais que o samba peça passagem e vá em frente — eu tenho ido ao Morro do Pinto, no Cais do Porto, no intervalo de um jogo e outro da Copa. Vagueio sem rumo, na esperança de relaxar a hemoglobina e apascentar as hemácias, essas senhoras sanguíneas que me têm sido tão cruéis. Flano ao léu, zero o QI, os olhos cheios de uma cidade que poucos conhecem.

Travessa Sousa

Há quem enfrente a fila do bondinho do Corcovado para lá de cima observar a Zona Sul. Nada contra, mas quem ainda não colocou o cenário como pano de fundo num selfie do Instagram?

Eu tenho preferido entrar pela Rodoviária, pegar o Santo Cristo, subir a Rua Sara, atravessar a esquina com a Orestes, galgar a escadaria da Carlos Gomes, dobrar à direita na Rua do Pinto, entrar no Parque Machado de Assis e ficar lá de cima, embasbacado com o que vai embaixo — o avesso de um cartão postal que o mundo inteiro vem ver e a própria cidade desconhece. No canto esquerdo do olho, o prédio da Central; no direito, as antenas do Sumaré; no meio, 450 anos de história.

Coreto

O Morro do Pinto é um daqueles paraísos que o carioca desperdiça diariamente, preguiçoso de sair do seu quarteirão e descobrir que a cidade é maravilhosa não só por causa das curvas do Aterro, das curvas das garotas e das curvas das pedrinhas no calçadão. O Rio não entende o Rio, acha que isso aqui é só sal, sol e sul. Faz a curva no fim do calçadão do Leblon e volta para casa, crente que viu tudo o que interessa.

Igrejinha de Nossa Senhora de Montserrat, que os cariocas costumam ver de longe, da Av. Presidente Vargas, mas poucos sobem o morro para ver de perto

Eu lamento a falta de curiosidade do carioca ixperto, sempre nos mesmos engarrafamentos humanos e águas de coco, mas não perco tempo com isso. Sigo no caminho que mestre Jaguar ensinou, o de ir na contramão do turismo e das multidões, rumo ao âmago do lepo lepo, ao fundo do BIP-BIP, a Busca Insaciável do Prazer.

Troto ladeira acima do Morro do Pinto, vizinho do Morro da Conceição e da Providência, feliz como cabrito que foge do zoo congestionado das calçadas da Zona Sul. Passo pela esquina do bloco Pinto Sarado, cruzo com a arquiteta Bel Lobo, que tem um ateliê na fábrica da Bhering, e paro no hambúrguer do Omar, o Troisgros local.

Tranquilidade

Da varanda, cercado pelo canto dos galos, eu agora escorrego a vista por uma outra região da cidade, e varro as chaminés de São Cristóvão, os guindastes do cais do porto, as torres da Igreja da Penha e, nos dias mais claros, a unha rochosa do Dedo de Deus. Alguém na mesa ao lado conta a incrível história do bandido Zé Piroca, morador da Rua Sara, o soldado maluquete que um dia subiu o morro pilotando um tanque roubado do quartel da Quinta da Boa Vista.

Vista para a via férrea com a sombra do fotógrafo abaixo

Pode ser lenda urbana, mais uma conversa de bar, mas é disso também, de adoráveis assombrações, que se faz uma cidade. Fato indiscutível é que foi derrubada a casa do Seu Normando, na Rua Deolinda, onde, nos anos 70, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho abriam a roda.

Velho bar

Os mais viajados vão achar que estão subindo as ladeiras da Alfama, o bairro de Lisboa — e há bandeiras de Portugal nas janelas, memória evidente de que antes de Getúlio, antes do Escurinho, o Morro do Pinto foi ocupado pelos portugueses no século XVIII. Eu, com menos milhagens, acho que estou de volta ao subúrbio, a uma foto do Malta ou a um maxixe do Sinhô. “Isso aqui é o melhor lugar do Rio para se criar marreco” — diz um morador, numa tradução ao carioquês de que ali há paz.

Chalé
Eu respondo com um “amém”, passo pelo coreto da Igreja de N.S. de Montserrat, peço contrito que tudo fique como está e mais adiante, ainda na Rua Mont’Alverne, dou um tempo no Bar do Carlinhos para ouvir o compositor local Carlos Gomes de Oliveira. Ele canta, de sua autoria, conforme atesta documento lavrado em cartório, o samba “Para pegar o caranguejo é preciso molhar a mão na lama”. Ao fundo, na gaiola, um papagaio parece gritar disparates contra a especulação imobiliária que, alimentada pelas obras do Porto Maravilha, começa a subir o Pinto.

O gato na moto

Para não dizer que fui ao morro e perdi a Copa, de um dos mirantes vê-se o Maracanã. E ainda conto mais sobre o grande torneio internacional que nos acomete: nos anos 1980, em uma das fundições da Rua Capiberibe, outro maluco do bairro, o Peralta, derreteu a Taça Jules Rimet, roubada com dois comparsas.

Casas com fachadas de azulejos tombadas pela Prefeitura na Rua Farnese

Não é uma história muito edificante em meio a tantas ladeiras gloriosas — mas este é o Morro do Pinto. A Taça do Mundo acaba aqui.

Sacada

OBRIGADO POR VISITAR MEU BLOG. Clique no label "Morro do Pinto" abaixo para ver outras postagens neste blog sobre esse aprazível morro da Zona Portuária carioca. E veja meu vídeo sobre a visita que fiz ao morro:


15.6.16

VIAGEM NO VLT CARIOCA (VEÍCULO LEVE SOBRE TRILHOS)


O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), quando estiver plenamente implantado, interligará todo o Centro e Zona Portuária carioca em aproximadamente 28 km de trilhos e duas linhas com um total de 26 paradas, integrando todos os demais modais, como metrô (Estação Cinelândia e outras), trem urbano (Central), ônibus interestaduais (Rodoviária), aviões (Aeroporto Santos Dumont), barcas (Praça XV), bonde de Santa Teresa (perto da Cinelândia) e o Teleférico da Providência. Quando fiz o filme amador acima (15 de junho de 2016) o VLT estava funcionando parcialmente da Parada dos Navios, na Zona Portuária, até o Aeroporto Santos Dumont, com bondes mais ou menos de meia em meia hora, mas quando estiver funcionando plenamente, 24 horas por dia, o sistema terá capacidade de transportar 300 mil passageiros diários. O VLT é a nova encarnação do bonde que por um século transportou os cariocas cidade afora, mas extinto nos anos sessenta (com a honrosa exceção de Santa Teresa) para ser substituído pelo mal-sucedido "trólei" (ônibus elétrico)   — é o "bondinho do futuro". Um legado das Olimpíadas (junto com os BRTs, o Porto Maravilha e a expansão do metrô) pelo qual está de parabéns nosso prefeito (independentemente de posições ideológicas, partidárias, etc.) Seja bem-vindo e boa viagem (e clique no label bondes abaixo para ver nossas outras postagens sobre esse simpático veículo tão associado à história carioca)!

5.6.16

DICA DE FILME: SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO – A FORMAÇÃO DE UMA CIDADE


Vi hoje o filme SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO - A FORMAÇÃO DE UMA CIDADE e eis minha impressão, que publiquei no ADORO CINEMA. Para quem é apaixonado pelo Rio de Janeiro, para quem se interessa  pela história da Cidade Maravilhosa ou tem curiosidade em conhecer, para quem é de fora e vai visitar o Rio, o filme é nota dez, bem pesquisado, com ótima iconografia (mapas, gravuras, etc.), ótima fotografia, ótimo texto, ótimo material de arquivo, ótimos depoimentos. Agora para quem não está interessado por nada disso... vale o bonequinho dormindo de O Globo. Uma grande safadeza desse jornal que prejudica a carreira comercial de um filme que tem, sim, muitas virtudes.

1.6.16

RIO DE JANEIRO EM 1584: CARTA DE FERNÃO CARDIM

Como teria sido a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro duas décadas após sua fundação? O jesuíta português Fernão Cardim, aqui esteve como secretário do visitador da companhia, de 1583 a 1598, retornando como provincial da companhia de 1604 a 1609, como lemos na Wikipedia. Em carta ao padre provincial de Portugal descreveu sua passagem pelo Rio de Janeiro, em dezembro de 1584. A carta encontra-se na obra Tratados da terra e gente do Brasil que pode ser acessada na Brasiliana Eletrônica. Os textos de Cardim fornecem uma visão privilegiada do Rio de Janeiro quinhentista, e os jesuítas se destacaram como protagonistas desse processo inicial de colonização. A seguir trecho da carta de Cardim.

Rio de Janeiro em 9/11/1599 em gravura de autor anônimo ilustrando a obra de Olivier van Noort Descrição da penosa viagem ao redor do mundo por Olivier van Noort). Foi o primeiro holandês a fazer uma viagem ao redor da terra, iniciada em 1598. Dos quatro navios iniciais, apenas um retornou, em 1601. A letra B no mapa mostra a cidade na época circunscrita ao Morro do Castelo e encosta. A letra D deve ser a fortaleza de Nossa Senhora da Guia, atual de Santa Cruz, e C deve ser o Pão de Açúcar, mal desenhado.

Do Espírito Santo partimos para o Rio de Janeiro, que dista ali 80 léguas. Dois ou três dias tivemos bom tempo, e logo nos deu um temporal tão forte, que foi necessário ficarmos árvore seca [mastreação de um navio com todos os panos ferrados] quase dois dias com muito perigo, por estarmos sobre uns baixos dos goitacazes mui perigosos [região de Campos dos Goytacazes], e não muito longe da costa. Ali estivemos a Deus misericórdia, e cada um se encomendava a Nossa Senhora quanto podia por vermos perto a morte. Deste perigo nos livrou Deus por sua bondade, e aos 20 de dezembro de 1584, véspera de São Tomé, arribamos ao Rio. Fomos recebidos do padre Ignacio Tolosa, reitor, e mais padres, e do Sr. Governador [Salvador Corrêa de Sá], que manco de um pé com os principais da terra veio à praia com muita alegria, e os da fortaleza também a mostraram com salva de sua artilharia. Neste colégio tivemos o Natal com um presépio muito devoto, que fazia esquecer os de Portugal; e também cá Nosso Senhor dá as mesmas consolações, e avantajadas. O irmão Barnabé Telo fez a lapa, e às noites nos alegrava com seu berimbau.

   Trouxemos no navio uma relíquia do glorioso Sebastião engastada em um braço de prata. Esta ficou no navio para a festejarem os moradores e estudantes como desejavam, por ser esta cidade do seu nome, e ser ele o padroeiro e protetor. Uma das oitavas à tarde se fez uma célebre festa. O Sr. governador com os mais portugueses fizeram em lustroso alardo de arcabuzaria, e assim juntos com seus tambores, pífaros e bandeiras foram à praia. O padre visitador com o mesmo governador e os principais da terra e alguns padres nos embarcamos numa grande barca bem embandeirada e enramada: nela se armou um altar e alcatifou a tolda com um pálio por cima; acudiram algumas vinte canoas bem esquipadas, algumas delas pintadas, outras empenadas, e os remos de várias cores. Entre elas vinha Martim Affonso [Arariboia], comendador de Cristo, índio antigo abaetê [homem bom e de palavra] e moçacára [amigo], sc. grande cavaleiro e valente, que ajudou muito os portugueses na tomada deste Rio. Houve no mar grande festa de escaramuça naval, tambores, pífaros e flautas, com grande grita e festa dos índios; e os portugueses da terra com sua arcabuzaria e também os da fortaleza dispararam algumas peças de artilharia grossa e com esta festa andamos barlaventeando um pouco à vela, e a santa relíquia ia no altar dentro de uma rica carola com grande aparato de velas acesas e música de canto de órgão, etc. Desembarcando viemos em procissão até a Misericórdia, que está junto da praia, com a relíquia debaixo do pálio; as varas levaram os da câmara, cidadãos principais, antigos e conquistadores daquela terra. Estava um teatro à porta da Misericórdia com uma tolda de uma vela, e a santa relíquia se pôs sobre um rico altar em quanto se representou um devoto diálogo do martírio do santo, com choros e várias figuras muito ricamente vestidas; foi asseteado [martirizado] um moço atado a um pau: causou este espetáculo muitas lágrimas de devoção e alegria a toda a cidade por representar ao vivo o martírio do santo, nem faltou mulher que não viesse à festa; por onde acabado o diálogo, por a nossa igreja ser pequena lhes preguei no mesmo teatro dos milagres e mercês, que tinham recebido deste glorioso mártir na tomada deste rio, a qual acabada deu o padre visitador beijar a relíquia a todo o povo e depois continuamos com a procissão e danças até nossa igreja: era para ver uma dança de meninos índios, o mais velho seria de oito anos, todos nuzinhos, pintados de certas cores aprazíveis, com seus cascavéis [guizos] nos pés, e braços, pernas, cinta, e cabeças com várias invenções de diademas de penas, colares e braceletes. Parece-me que se os viram nesse reino, que andaram todo o dia atrás deles; foi a mais aprazível dança que destes meninos cá vi. Chegados à igreja foi a santa relíquia colocada no sacrário para consolação dos moradores, que assim o pediram.

   Têm os padres duas aldeias de índios, uma delas de São Lourenço [na atual Niterói], um légua da cidade por mar; e a outra de São Barnabé [nas vizinhanças do rio Macacu], sete léguas também por mar, terão ambas três mil índios cristãos. Foi o padre visitador à de São Lourenço, aonde residem os padres, e dia dos Reis lhes disse missa cantada oficiada pelos índios com canto de órgão com suas flautas; casou alguns em lei de graça, e deu a comunhão a outros poucos. Eu batizei dois adultos somente, por os mais serem todos cristãos.

Esta capitania do Rio dista da Equinocial 23 graus para o Sul, e da Bahia 130 léguas. É muito sadia, de muitos bons ares e águas. No verão tem boas calmas [calores] algumas vezes, e no inverno mui bons frios; mas em geral é temperada. O inverno se parece com a primavera de Portugal: tem uns dias formosíssimos tão aprazíveis e salutíferos [salutares] que parece estão os corpos bebendo vida. E' terra mui fragosa [em que há muitas fragas, rochas escarpadas] e muito mais que a serra da Estrela; tudo são serrarias e rochedos espantosos, e tem alguns penedos tão altos que com três tiros de flecha não chega um homem ao chão e ficam todas as flechas pregadas na pedra por causa da grande altura; destas serras descem muitos rios caudais que de quatro e sete léguas se veem alvejar por entre matos que se vão às nuvens, e do pé de algumas destas serras até riba há uma grande jornada; são todas estas serras cheias de muitas e grandes madeiras de cedros, de que se fazem canoas tão largas de um só pau, que cabe uma pipa atravessada; e de comprimento que levam dez, doze remeiros por banda e carregam cem quintais de qualquer cousa, e outras muito mais. Há muitos paus de sândalos brancos, aquilo e noz-moscada e outros paus reais muito para ver. Agora se descobriu um pau que tinge de amarelo [tatajuba, árvore da família das urticáceas], como o brasil [pau-brasil] vermelho; é pau de preço; é abundante de gados, porcos e outras criações; dão-se nela marmelos, figos, romeiras, e também trigo se o semeiam; a um grão respondem 800 e mais e cada grão dá 50 e 60 espigas, das quais umas estão maduras, outras verdes, outras nascem; também se dão rosas, cravos vermelhos, cebolas-cecéns, árvores de espinho, todo gênero de hortaliça de Portugal; as canas também se dão bem, e tem três engenhos de açúcar, enfim é terra mui farta.

   A cidade está situada em um monte de boa vista para o mar [Morro do Castelo], e dentro da barra tem uma baía que bem parece que a pintou o supremo pintor e arquiteto do mundo, Deus Nosso Senhor, e assim é cousa formosíssima e a mais aprazível que há em todo o Brasil, nem lhe chega a vista do Mondego e Tejo: é tão capaz que terá 20 léguas em roda cheia pelo meio de muitas ilhas frescas de grandes arvoredos, e não impedem a vista umas às outras, que é o que lhe dá graça. Tem a barra meia légua da cidade, e no meio dela um lagoa de 60 braças em comprido, e bem larga que a divide pelo meio, e por ambas as partes tem canal bastante para naus da Índia; nesta lags [Lagea Rattier, Ilha da Laje] manda el-rei fazer a fortaleza, e ficará cousa inexpugnável, nem se lhe poderá esconder um barco; a cidade tem 150 vizinhos com seu vigário, e muita escravaria da terra.

   Os padres têm aqui o melhor sítio da cidade [o colégio dos jesuítas no morro do Castelo, terceiro colégio do Brasil, fundado pelo padre Manuel da Nobrega em 1567]. Têm grande vista com toda esta enseada defronte das janelas: têm começado o edifício novo, e têm já 13 cubículos de pedra e cal que não dão vantagem aos de Coimbra, antes lha levam na boa vista. São forrados de cedro, a igreja é pequena, de taipa velha. Agora se começa a nova de pedra e cal [Igreja de Santo Inácio], todavia tem bons ornamentos com uma custódia de prata dourada para as endoenças, uma cabeça das Onze Mil Virgens, o braço de São Sebastião com outras relíquias, uma imagem da Senhora de São Lucas. A cerca é cousa formosa; tem muito mais laranjeiras que as duas cercas de Évora, com um tanque e fonte; mas não se bebe dela por a água ser salobra; muitos marmeleiros, romeiras, limeiras, limoeiros e outras frutas da terra. Também tem uma vinha que dá boas uvas, os melões se dão no refeitório quase meio ano, e são finos, nem faltam couves mercianas bem duras, alfaces, rabões e outros gêneros de hortaliça de Portugal em abundância: o refeitório é bem provido do necessário; a vaca na bondade e gordura se parece com a de Entre-Douro e Minho; o pescado é vário e muito, são para ver as pescarias da sexta-feira, e quando se compra vai o arrátel [unidade de medida] a quatro réis, e se é peixe sem escama a real e meio, e com um tostão se farta toda a casa, e residem nela de ordinário 28 padres e irmãos afora a gente, que é muita, e para todos há. Duvidava eu qual era melhor provido, se o refeitório de Coimbra se este, e não me sei determinar: quanto ao espiritual se parece na observância bom concerto e ordem com qualquer dos bem ordenados de Portugal; e estes padres velhos são a mesma edificação e desprezo do mundo, e esta fruta colheram cá por estes matos sem prática nem conferências, e são um espelho de toda virtude, e muito temos os que de lá viemos para andar, se havemos de chegar a tanta perfeição da sólida e verdadeira virtude da Companhia.

   Nas oitavas do Natal ouviu o padre visitador as confissões gerais, e renovaram-se os votos dia de Jesus, e aquele dia preguei em nossa igreja, houve muitas confissões e comunhões por causa da festa e jubileu.