Maracanã em cerca de 1967, foto de Marcel Gautherot obtida no site do Instituto Moreira Salles |
Já vão longe aqueles idos. Tento tirar da memória alguns momentos daquele mundo que rolava com a infância na bola. Da fumaça do tempo procuro encontrar o menino que jogava pelada nos campinhos improvisados dos terrenos baldios, espalhados pela cidade pequena, com alguns bairros e poucas ruas calçadas. Às vezes o campinho era improvisado em algum fundo de quintal ou pastagem de uma roça perto do centro da cidade. O jogo era disputado debaixo de chuva ou sol escaldante.
Havia o Campinho do Fole no outro lado do rio. Ali eram jogadas aos domingos, pela manhã, as partidas mais importantes. O time de garotos da rua de cima contra o da rua de baixo. No vaivém do jogo não faltavam empurrões, bate-bocas, xingamentos e algumas brigas intensas. Terminando o jogo, o banho na correnteza de águas límpidas serenava os ânimos. Uma amizade feita de relações naturais logo se refazia com mergulhos e saltos a partir de barrancos íngremes.
O pai levava-me para ver os jogos dos times amadores da cidade no Campo da Desportiva. No início cercado com folhas de zinco, depois murado, o Campo da Desportiva era uma festa aos domingos. As folhas de zinco que cobriam a arquibancada zuniam forte quando as rajadas de vento penetravam entre suas frestas. Dava arrepios, parecia que algumas folhas de zinco na cobertura da arquibancada podiam se soltar a qualquer momento e causar danos entre os torcedores.
Lá, naquele campo de grama maltratada, o menino viu lances para não esquecer. Os dribles do meia-esquerda Macaquinho faziam os torcedores sorrir, a bola ficava grudada no seu pé, ninguém conseguia tomar dele. Delicado era um maestro, como sabia tocar a bola com sutileza para o companheiro. Carrapeta tinha uma visão de jogo que só o craque possui. Distribuía o jogo com a cabeça erguida, lançava a bola para o atacante fazer o gol, sem maior esforço. Mais adiante, na época da seleção amadora de ouro, conheci o centroavante Zé Reis, um artilheiro que se o marcador desse bobeira sabia marcar sua presença. Não era jogador técnico, mas longe de ser cabeça de bagre. Cumpria bem a sua missão de fazer gol. Jogou no Fluminense local, na seleção de Itabuna e no Leônico de Salvador, onde foi artilheiro do campeonato por várias temporadas.
E a pior derrota? Em 1950, Brasil contra Uruguai, final do campeonato mundial no Rio. O Brasil jogava pelo empate. Um gol fazia balançar o estádio com 200 mil pessoas. Foi de Friaça no início do segundo tempo, lenços acenavam para os valentes atletas uruguaios. “É campeão! É campeão!” Todos os brasileiros cantavam o grito de glória numa só corrente de vasto amor. Veio o gol de empate dos uruguaios, Schiafino o autor da proeza. Um calafrio penetrava ossos e nervos do Maracanã com a lotação máxima. O inexorável iria acontecer aos 34 minutos. O ponteiro Gighia chutava a bola e a grama. Ninguém acreditava no que se estava vendo, a bola entrando entre a trave e o goleiro Barbosa. Lenços já não acenavam. Aquela coisa que só infundia medo, estupidamente sem tamanho, percorria todo o estádio. Dominava o ar de milhões de brasileiro. Ninguém podia reverter o capricho dos deuses. Contava o locutor que, encerrado o jogo, a procissão de mortos saía do Maracanã, o país em chuteiras, que pensava e amava pelos pés naquele dia, em caos desencantava-se.
Na cidade pequena, eu via as ruas desertas, bares fechados, a praça em silêncio. O padre não rezou a missa das oito à noite. Daí para frente o canto amargo da memória iria lamber as chagas daquele menino que ficou frustrado no cais da vida, esquecido de si, preso ao nada.
Ainda tentei reagir àquela frustração sem igual com os amigos de minha rua. Soube na semana que, em cada domingo, o Cine Itabuna iria projetar na tela as partidas do Brasil no Campeonato Mundial de Futebol. Meus olhos ávidos não perderiam um lance em cada partida da nossa seleção. Hipnotizados acompanhariam cada jogada, cada drible, cada chute contra a meta adversária. Vibraria com a garotada em cada gol que o Brasil marcasse. Contra a Suécia e a Espanha tinha sido demais. Duas estrondosas goleadas. Era melhor não assistir a final contra o Uruguai. O que era uma trama cruel, orquestrada pelos deuses do futebol na final, não devia ser assistido. Seria para todos nós, pequenos torcedores, lotando o Cine Itabuna, muito doloroso a repetição do drama. Nenhum dos meninos ia conseguir resistir ao trauma tão profundo, vendo dessa vez com os olhos a festa dos jogadores uruguaios no Maracanã e a tristeza de nossos craques, chorando, sem saber explicar o que tinha havido de errado naquela derrota trágica.
Valia a pena driblar as sombras de um pesadelo que se alojava em meu pequeno coração. Afugentar aquela coisa que só infundia tristeza, aderia à pele, ardia tanto no coração. Empurrava-me com os outros meninos para os campos do abismo. O plano que armei com os meninos da Rua do Quartel Velho era simples. Não assistiríamos mesmo, na tela do Cine Itabuna, a derrota do Brasil na final contra o Uruguai. Em algazarra sairíamos pela rua gritando “É campeão! O Brasil é campeão!”, batendo com pau nas latas vazias.
Eu liderava o desfile com algazarra feita pelos queridos amigos, ia na frente da turma, segurava o cartaz com o letreiro grande:
BRASIL CAMPEÃO MUNDIAL DE FUTEBOL 1950.
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