ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

1.6.18

BECO DAS GARRAFAS EM COPACABANA


O Beco das Garrafas (que também já foi conhecido como Beco das Garrafadas) é uma espécie de vão entre dois prédios na Rua Duvivier, entre a Av. Nossa Senhora de Copacabana e a Atlântica (como você pode ver neste Street View), sem nada de especial, exceto o fato de ter sido o berço da bossa nova:



O apelido Beco das Garrafas ou das Garrafadas deveu-se ao fato de que moradores incomodados pela barulheira lá em baixo lançavam garrafas nos arruaceiros. E não se trata de lenda urbana. Na coluna Madrugada do Diário Carioca de 8/5/57 o colunista Mister Eco já fazia menção a esse fenômeno:

“O delegado Hermes Machado promete tomar providências contra determinado morador da Rua Duvivier, que atira na via pública latas, frascos de vidro, lixo etc., pondo em risco de vida (e de sujeira) os que naquela rua transitam. Por coincidência, na mesma rua está situado o famoso Beco das Garrafas, com o Ma Griffe, o Bacará e o Little Club, que esse nome ganhou pelas garrafas “y otras cositas más”, que os moradores inconformados com a barulheira dos notívagos uisquiados jogam lá de cima.”

Beco das Garrafas visto dos fundos: um beco sem nada de especial, exceto o fato de ter sido o berço da bossa nova. A grade separando as áreas dos dois prédios originalmente não existia.

Aliás, o Correio da Manhã de 6/6/57 faz uma zoação ao guarda noturno do Beco, numa época em que guardas noturnos percorriam as ruas ao menos da Zona Sul vez ou outra soando seus apitos, como eu mesmo me lembro.

Uma das coisas mais engraçadas do mundo é aquele camarada fardado de cáqui, de madrugada, na Rua Duvivier, plantado entre a algazarra que emana do “beco das garrafadas”, dando os seus apitinhos regulares para assustar as moscas. Trata-se de um guarda noturno, de plantão no local mais noturno do Rio, onde três bares, dois botequins, um inferninho e uma sorveteria garantem uma das madrugadas mais povoadas da cidade...

Bottles Bar

Em crônica (pouco conhecida hoje em dia) no Correio da Manhã de 1/8/57 intitulada Fechamento do Rio, o arquipoeta Carlos Drummond de Andrade menciona o beco:

Há em Copacabana um beco das garrafadas, em que estas, ao que me contam, constituem uma arma dos moradores de apartamentos, contra a desordem lá em baixo. Se o grupo faz demasiada zoeira, tome garrafa na cabeça. Já não se usa água fria, como em outros tempos [...]

Shows de bossa nova e assemelhados no Beco das Garrafas

No jornal Última Hora de 29/7/1958 (e também na revista Mundo Ilustrado de 19-25/7/59), o saudoso cronista Stanislaw Ponte Preta (Sergio Porto) escreveu uma crônica intitulada De Beco em Beco Stanislaw Enche a Página onde mencionou o famoso beco:

O Beco das Garrafadas seria um beco honesto se, metido entre os três barezinhos discretos ali instalados (“Ma Griffe”, “Baccarat” e “Little Club”), não existisse um botequim de vender cachaça, onde se reúne um pessoal menos esclarecido pouquinha coisa e que, por isso mesmo, faz arruaça, xinga nome de mãe e entre em festival de bolacha [=bofetada] com muita facilidade. E mal começa o pega, os moradores da localidade, acordados pelo eco, começam a atirar garrafas lá de cima, na esperança de uma fratura do crânio que às vezes acontece, para alegria geral.

De quais dessas janelas teriam sido lançadas garrafas?

Ricardo Amaral, em sua coluna na Última Hora de 15/1/64, faz elogios aos shows do Beco, com uma ressalva:

Uma boa bossa que está funcionando no Rio é o “beco das garrafadas”. Todos os seus barzinhos apresentam bons espetáculos de bossa nova: Nara Leão, Odete Lara com Sérgio Mendes no “Baccará” e Consuelo Leandro com o conjunto Bossa Três no “Little Club”. O primeiro é produzido por Aluízio de Oliveira e os dois últimos pela dupla terrível Mieli-Boscoli. É pena que não contem com recursos de som e luz para aperfeiçoar as apresentações.

Bossa Nova & Companhia no local da antiga boate Baccara

Na segunda metade da década de 1950 e primeira metade da de 1960, nas três boates do beco – Little Club, Bottle’s e La Griffe, depois Baccara – começaram a engatinhar grandes nomes da música brasileiras: Elis Regina, Wilson Simonal (o “Frank Sinatra do Beco das Garrafas”), Eliana Pittman, Trio Tamba, Sérgio Mendes, Nara Leão, Quarteto em Cy. No Little Club foi iniciada a grande inimizade entre Elis Regina e Ronaldo Bôscoli, que o milagre do tempo transformou em grande amor, noivado e casamento. Segundo matéria de O Globo de 6/7/92, “o Beco das Garrafas inaugurou a fase profissional da bossa nova. Na década de 60, artistas – muitos na esperança de “dar uma canja” – intelectuais, políticos e pessoas da sociedade disputavam lugar na plateia para assistir aos shows. O período áureo se estendeu até 1964.”

Vitrine da Bossa Nova & Companhia: partituras, métodos, biografias, histórias, songbooks, CDs, DVDs, LPs, bossa nova, samba, choro. Em agosto de 2018 a loja deixou de funcionar.

Com o fim da era da bossa nova, as três casas noturnas entraram em decadência e durante três décadas (70 a 90) funcionaram como inferninhos de strip tease e “putaria” (tinha até uns reservados escurinhos no fundo para transar), a Little Club passando a se chamar Don Juan e a Bottle’s, New Munich. Até que, com o advento do novo século e o declínio desse tipo de casa noturna, o beco reencontrou sua antiga vocação, sendo hoje talvez o único lugar do Rio onde o morador ou visitante pode ouvir um bom show de bossa nova. 

Placas de ruas na Bossa Nova & Companhia que funcionou de 2006 a 2018

A Baccara, na esquina com a Duvivier, metamorfoseou-se na BOSSA NOVA & CIA, uma loja de partituras, métodos, biografias, histórias, songbooks, CDs, DVDs, LPs, bossa nova, samba, choro, tendo até um museuzinho na parte do alto com curiosidades ligadas à bossa nova. A loja funcionou de 2006 a 2018. Quando passei lá em agosto de 2018, a loja estava sendo oferecida para aluguel. Uma lástima.


Placa na entrada da Bossa Nova & Companhia: "Quando ninguém falava em paz, saúde e ecologia, essa já era a plataforma da Bossa Nova. Hoje, quando esses temas estão na pauta das aspirações nacionais, a Bossa Nova voltou a ser a trilha sonora de um Brasil ideal" (Ruy Castro)

4 comentários:

Roger de Sena disse...

Postagem excelente! Valeu, Ivo!
Copacabana, o meu bairro do coração!

Ricardo disse...

Mais uma maravihosa postagem... adorei!

Celso Bahia Luz disse...

Interessantíssimo. Lembro-me pelos idos de 1961, eu e uns 2 amigos fomos ao Beco, e ficamos observando, no afã de ver a bagunça. Coitados de nós, nada vimos, pois ela só acontecia as altas horas, e nós tínhamos que estar em casa as 11. (enviado por e-mail)

Alexandre ilha disse...

Muito interessante, esse beco das garrafas é famoso