No capítulo IV de seu primeiro livro de memórias, Baú de Ossos, onde recorda sua infância vivida no Rio Comprido, Rio de Janeiro, no início dos anos 1910, Pedro Nava aborda o Carnaval, as reuniões da família, os vendedores de rua com seus pregões característicos, o cinematógrafo iluminado com lâmpadas vermelhas porque "não ficaria bem uma sala de breu, com damas e cavalheiros", a Avenida Central em construção, passeios por diversos bairros, como Santa Teresa, Botafogo, Flamengo e Copacabana, e os bondes puxados por burros. Transcrevemos aqui a pitoresca descrição desses veículos de tração animal que antecederam os bondes elétricos.
“Isso vem a propósito de minhas lembranças dos bondes de
burro. Neles andei, talvez numa de nossas viagens ao Rio ou, mas certamente,
depois de nossa vinda definitiva de Juiz de Fora. Quando? não o posso dizer com
exatidão, pois minhas recordações desse Aristides Lobo da infância surgem
empilhadas e a fotografia positiva que delas obtenho resulta da revelação de
vários negativos superpostos, cuja transparência permite que as imagens de uns
se misture com as luzes dos outros. O essencial é que me lembro dos bondes de
burro com seus poucos bancos, com o condutor e o cobrador, os dois sem farda,
de terno velho, colarinho duro, chapéu de lebre, ou chile, ou bilontra — e a
bigodeira solta ao vento carioca. O primeiro governava os burros a chicotadas
mais simbólicas que propriamente para valer e, principalmente, com a série de
ruídos que tirava dos beiços, da língua, das bochechas, das goelas, e que eram
muxoxos e chupões, assovios e estalos, brados monossilábicos e gritos
churriados — a que as adestradas alimárias respondiam com o passo, a marcha, o
trote, a andadura e a parada. De distância em distância as parelhas cansadas
eram trocadas por outras mais frescas, nas mudas
dispostas ao longo dos itinerários. Uma destas perpetuou-se no nome que se
estendeu ao bairro todo — o da Muda da Tijuca. Lembro-me bem da que
ficava à esquina de Marquês de Sapucaí e Salvador de Sá, onde foi depois uma
estação de elétricos — estação não no sentido de paragem, mas do local onde se
recolhiam os bondes. Quem vinha de Aristides Lobo, era ali que trocava os
burros. Eles eram soltos ao mesmo tempo que as correntes que os prendiam à
trave que era desengatada, conjuntamente, do veículo. Quando eles se sentiam
livres, empinavam as cabeças, zurravam e corriam, sem necessidade de serem conduzidos,
para dentro da muda, para suas águas
e seu capim. Iam rebolando as ancas, repiqueteando os cascos ferrados, num
tilintar de cadeias arrastadas. [...] Os bondinhos de tração animal seriam
substituídos pelos elétricos, na zona norte, aí por volta de 1909. Estes eram
veículos mais solenes e cada vez que paravam faziam um ruído especial, parece
que vindo de acumuladores colocados por baixo e que lembravam, em mais grosso,
o golu-golu de um peru fazendo roda. Essa batida, entre líquida e metálica,
entre pingo e gongo, subia do chão do bonde, ganhava os bancos, vibrava na
carne dos passageiros, crescia dentro de mim numa bola de baba e naquela ânsia
de vômito que me afogavam sempre à altura de Salvador de Sá.”
Um comentário:
Sua crônica “Bondes de burro” usando o memorialista Pedro Nava (Baú de Ossos) ficou muito bom. A foto é preciosa! Parabéns. (enviado por e-mail e inserido aqui pelo editor do blog)
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