ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

17.8.06

NO LARGO DO BOTICÁRIO

LÉA MADUREIRA




Acho engraçado como certas imagens nos vêm à memória e, só muito depois, vêm os fatos. Surgem em fragmentos, peças de um quadro incompleto. Como esse pé, calçado em botas de borracha. Depois é que a cena se forma. Aliás, antes, pode vir o cheiro. Lembro-me de aromas, tão nitidamente, que pensei, dia desses, encontrar a compoteira com o doce de abóbora-com-coco feito por minha avó, na cristaleira que nem mais existe. Sempre aos sábados, quando se passava cera no assoalho, a sobremesa caprichada. Podia ser, também, de banana, mamão ou goiaba, entanto rasgava a mais recôndita lembrança e apresentava-se real, misturando-se, assoalho (então polido), e o doce. Desmontava-me a razão!

Horas, minutos ou dias mais tarde, aparece, em movimento, a cena. Voltemos a ela! Aquelas botas molhadas pertencem ao homem de avental que joga baldes d'água na calçada. É Seu Oscar da Leiteria. E amanhece. Bem cedinho, o comércio abre as portas. A vizinhança debruça-se às janelas, prendendo-as aos ferrolhos, para que o sopro da manhã percorra os aposentos da casa. Já há quem desça à padaria, quitanda, leiteria, às seis horas. Os açougues abrem um pouquinho mais tarde e, do tripeiro, a carrocinha vai chegar lá pelas nove, com aquele fígado-manteiga, na medida certa de proteína e ferro que as mães insistiam em cada almoço, uma vez por semana. Pelo menos!



Essas eram algumas das semelhanças em qualquer bairro do Rio, na década de cinqüenta. Estamos à rua Cosme Velho, próximo ao 822, junto ao Largo do Boticário. Tio Expedito, à mesa de café, chama atenção da tia Flora para as manchetes do jornal, bastante irritado. Mais um aumento do bonde! Esse, agora, vai pesar no orçamento, com os filhos todos na escola. Bem que gostaria de ensinar ao mais velho o jogo de xadrez! Mas vai longe, ainda, o dia de se aposentar na Repartição da Light, onde trabalha.

E tio Expedito repetia meu avô: Isto aqui, para endireitar, só mesmo com a Tomada da Bastilha! Que extensão tomou aquele "mar de lama" que Getúlio julgava atravessar! E hoje, quantas tomadas da Bastilha, hein, tio Expedito?

Tia Flora traz o paletó e o chapéu. Ele passa a mão pelo jornal sobre a escrivaninha e vai para a cidade. Nunca a possibilidade de ler tudo que lhe interessava, em casa! Bem como nunca percebera a vida que se agitava ao seu redor. Hoje sobrará tempo para ler o jornal e, até, ensinar xadrez aos meninos. Mas os motivos ele inda não sabe...



A manhã é agradável, sob o céu de verão, ainda que já se eleve um pouquinho a temperatura. Atravessa a rua para a calçada do comércio, cumprimentando Manoel, o quitandeiro, e Oscar, o leiteiro. Ergue o nariz pra inspirar o delicioso cheiro de pão fresquinho, quando acontece. O chão ensaboado é uma arapuca a aguardá-lo. Oscar tenta, ainda, agarrá-lo pelo paletó, mas tchibum, prende o pé dentro do balde, a rolar rua abaixo.

Dois meses para as crianças alcançarem grande progresso no xadrez e ganharem muitas partidas, sem deixar de lado os deveres escolares. Tia Flora prepara o jantar mais cedo, que não é preciso esperar o marido. E vai reunir a família, junto ao rádio, para ouvir Jerônimo, O Herói do Sertão. Oscar, muitos vidros de ungüento pelas costas, arrisca umas partidinhas também, na casa do amigo, após a refeição.

O Largo do Boticário não era assim tão completo, tão cheio de árvores, flores e das mais belas construções neocoloniais, com os muros de azulejos azuis e, outros, suavemente coloridos. Os pássaros não chegavam à moldura das janelas. Mas o que mais acontece, nesse exato minuto? Os estudantes deitados pelos trilhos do bonde. Será mais um protesto? Na certa impedirão a tarifa absurda. Ah, sim, agora a ordem voltará a reinar!...

Com a perna engessada, atravessando esse recorte do tempo. Então é que ele vê!




Léa Madureira é autora do livro de poemas Por não haver navegado (Editora Uapê) e do livro de contos Os vinte e sete degraus (Oficina do Livro). Texto acima, inédito, cedido pela autora para este blog. Fotos de Ivo Korytowski.

11 comentários:

Anônimo disse...

O b r i g a d a!

Que belo tratamento você deu ao Largo do Boticário, Ivo! Se na ficção há muitas verdades, aos que perguntaram se morei ali, entre os belos azulejos, não, mas grande empatia me cinge a esse recorte do Rio. Sou carioca do Maracanã (tenho guardada, também, uma outra história...) Mas gosto muito desses quadros, de um tempo que se esparrama em "refúgios onde as almas se restabelecem", como diria Mia Couto! Tanta claridade!
Vida muito longa a você, seu blog e, claro, a esse Rio que resiste, como o Largo do Boticário.
Bjcs, Léa

Elaine disse...

Ivo,
Cada vez que entro no seu blog, me sinto uma extraterrestre. É impressionante como nós "Cariocas" não conhecemos o Rio de Janeiro. Ainda bem que você existe e nos mostra o caminho.
Beijos e bom final de semana!
Sds...Elaine Paiva

Anônimo disse...

Leitor de carteirinha do blog "Literatura e Rio de Janeiro", visitando, conhecendo, sentindo tanta coisa bonita,que só o Rio pode inspirar, chego a dizer: merece uma antologia esses textos em prosa e verso. Porque mostram um Rio em sonho de mãos dadas com a história, aceso nos seres e coisas pelo sol que brilha no dia, fora da selva que assusta na memória escrita às avessas, perante os dias de hoje, sem verdes nem azuis. (enviado por e-mail)

Anônimo disse...

Não sei se é pertinente usar este espaço para dizer que o texto de Léa Madureira é de grande delicadeza. Senti o cheiro dos doces caseiros, pois sou filha de mineira e percebi, talvez porque hoje o dia esteja nublado, o quanto o Rio mudou, tornou-se perigoso e há menos gentileza entre as pessoas.
22.08.2006

Anônimo disse...

Dears Ivo and Lea,

Que dupla boa!!!
Das cores vivas do casario as lembrancas vivas da felicidade ingenua, muito lindo!
Tenho certeza de que o lancamento do livro foi um sucesso!
Congratulations!
Beijinhos com carinho,

dolores

Anônimo disse...

Como foi prazeroso ler sua encantadora historia. Me trouxe lembranças da minha infância também.
As fotos são lindas e o seu texto um primor!!! (enviado por e-mail para a autora)

Anônimo disse...

Querido Ivo,
Já disse que seu blog é ótimo, sempre. A cidade passeia sob nossos olhos nas fotos e nas letras. Adorei o Largo do Boticário! Léa fez um texto delicioso e comovente. Me fez voltar á infância e adolescência, àquele lugar aonde iremos brevemente, não é? Estou te devendo e não esqueci. Um beijo grande pra vcs.

Anônimo disse...

Sou paulistana, adoro o Rio, estive quatro vezes na cidade, nunca repeti um passeio, nunca pisei na água do mar e ainda não fui à Confeitaria Colombo. Quando estava indo ao Pão de Açucar vimos que com o mesmo valor conseguiriamos ficar mais um dia na cidade (durangos kid), e saimos andando, (acho que é o bairro Cosme Velho), então me deparo com uma vila, como arquiteta curiosa entrei, e não é que era o Largo do Boticário, qdo li a placa não acreditei, achei o máximo. Não vou citar as coisas que gostei pq seria chover no molhado, sou uma urbanoide inveterada, adoro cidades, cuidem bem desse patrimonio brasileiro.

Anônimo disse...

Ivo,
Acho que cheguei atrazada, mas nunca é tarde para se aproximar e dizer um grande, imenso > MUITO OBRIGADA = MERCI BEAUCOUP !
EU vivo na França e imagine você que eu nasci no LARGO DO BOTICARIO n° 28 e no ano de 1946. Sai de la aos 15 anos......mas nao pude me impedir de levar comigo a placa ORIGINAL do
BECCO do BOTICARIO (com dois C mesmo) e que ainda esta comigo até hoje.
Um enorme beijo...et encore MERCI
Stella Valladares Maia
maia.stella@neuf.fr

Anônimo disse...

Como é bom ser carioca e desfrutar de lugares maravilhosos como o Largo do Boticário.

Moira disse...

Ivo

Como sempre somos cariocas com muito orgulho!
Amo você sempre!
beijos
Moira