"O Rio é amor bandido" |
CRÔNICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL O GLOBO DE 4/8/2016, UM DIA ANTES DA ABERTURA DOS JOGOS OLÍMPICOS
O meu lugar, peço licença ao mestre Arlindo Cruz, é repleto
de seres de luz — e de espíritos das trevas, especialmente entre os que o
governam. É acolhedor, mas sabe ser brutal. É brutal, mas acolhedor como poucas
metrópoles do mundo. Eu nasci, cresci e escolhi viver no Rio de Janeiro. Daqui
não saio. Nem se o prefeito Eduardo Paes perder a paciência numa rede social e
me mandar embora. Nem se os inomináveis — sim, há mais de um candidato abaixo
da crítica — assumirem o Piranhão em 2017. (Aos não iniciados em carioquice, é
esse o apelido da sede da prefeitura, erguida numa velha área de prostituição.)
O Rio nos maltratou às vésperas dos primeiros Jogos
Olímpicos na América do Sul, que começam oficialmente amanhã. A violência
urbana fugiu do controle. O aparato de repressão asfixiou comunidades populares
em atitude tão inaceitável quanto habitual. No segundo trimestre, a polícia
matou 124 pessoas na cidade; só em junho, foram 49 homicídios, o dobro do
registrado no mesmo mês de 2015. Ainda ontem de manhã, o Complexo do Alemão
padecia com mais um confronto entre policiais e traficantes.
Não foi à toa que a Anistia Internacional Brasil lançou a
campanha “A violência não faz parte desse jogo”, para denunciar violações de
direitos humanos na cidade olímpica. Um documento cobrando treinamento e
abordagens adequados pelas forças de segurança, respeito à liberdade de
manifestação pacífica, investigações imparciais e independentes e assistência a
vítimas foi assinado por 120 mil pessoas e entregue ao Comitê Rio 2016. No mês
passado, estreou o aplicativo Fogo Cruzado, um mapa colaborativo sobre
ocorrência de tiroteios e confrontos. Em um mês, houve mais de 600 relatos.
Em sete anos de preparação para os Jogos, o Rio tampouco foi
capaz de avançar na agenda ambiental, que prometia despoluir a Baía de
Guanabara e as lagoas de Jacarepaguá. As competições de vela vão ocorrer num
cenário livre apenas do lixo aparente, recolhido por balsas. E só Deus sabe o
que pode acontecer se chover.
Os investimentos em mobilidade urbana não livraram a cidade
de megaengarrafamentos na semana derradeira. Foram 120 quilômetros de puro estresse
na última segunda-feira e 200, na terça. A circulação inviável levou à
decretação do quarto feriado municipal durante a jornada olímpica, para
desespero do empresariado ante ao efeito do expediente interrompido na
atividade econômica. Todos esses passivos são conhecidos, merecem críticas e
exigem mobilização permanente da sociedade carioca. A cidadania participativa
do novo século não aceita o estelionato eleitoral nem se contenta com as
realizações possíveis. O anseio é pela cidade ótima; e as autoridades têm de
aprender a lidar com isso.
Mas a festa está na rua e o meu lugar, engalanado, é bonito
como nenhum outro. Quando o clima de celebração se instala, a paixão renasce.
As fotos lindas de todos os cantos da cidade que pipocam nas redes sociais são
a prova. Difícil imaginar cenário mais bonito para uma competição esportiva, do
Leme ao Pontal, da Lagoa ao Maracanã, do Centro a Deodoro.
As delegações estrangeiras, que desembarcam aos milhares com
uniformes coloridos e smartphones em punho, estão a nos escancarar o
significado dos Jogos. Os suíços tomaram a Lagoa; os franceses, a Hípica. A
Dinamarca ocupou Ipanema; a Itália, a Barra. O CCBB abriu espaço para a
magnífica exposição de obras dos museus D’Orsay e L’Orangerie, de Paris. Os
mexicanos montaram uma mostra arqueológica e uma exposição audiovisual sobre
Frida Kahlo no Museu Histórico Nacional. O “Abaporu”, obra-prima brasileira
hoje no acervo do Malba argentino, migrou para o MAR. Virou capital do mundo o
meu lugar.
O jamaicano Usain Bolt, multicampeão olímpico e mundial do
atletismo, está treinando em instalações da Marinha, na Avenida Brasil. O
igualmente laureado Michael Phelps, americano da natação, está na área. Simone
Biles, fenômeno da ginástica artística dos EUA, e nosso Arthur Zanetti, o homem
das argolas, também. A seleção bicampeã do vôlei feminino, orgulho nacional,
vai brigar pelo tri. E vai que a seleção de futebol desencanta...
O povo do samba foi escalado e entrará em campo (viva!) na
cerimônia de abertura e em programação intensa na região portuária
revitalizada. Anteontem, os boêmios do Sat’s festejavam a vitoriosa campanha
#agnaldoolimpico, que conseguiu fazer do garçom e churrasqueiro do bar de
Copacabana um dos condutores da tocha. O Comitê Rio 2016 formalizou o convite
após saber do flashmob etílico, que percorreu com um arremedo de chama olímpica
13 botequins do bairro. Mais carioca, impossível.
O Rio maltrata, mas é lindo. É lindo, mas maltrata. O Rio é
cigarra; a gente intui o inverno de escassez, mas não resiste à cantoria do fim
das tardes de verão. O Rio é amor bandido, é filho pródigo. A gente puxa a
orelha e belisca; se emociona e acolhe. Me abraça, meu Rio.
LEIA TAMBÉM NOSSA MATÉRIA SOBRE AS OLIMPÍADAS CARIOCAS CLICANDO AQUI.
Um comentário:
Flávia Oliveira, parabéns pelo texto que só li agora, graças ao Ivo Korytowsky. Tenho três filhos cariocas como você que também amam, curtem e vivem esta cidade. E aumentaram com mais dois netos a cariocada dos Rovedo... O Rio de Janeiro reproduz o que todas as cidades mais queridas do mundo inventaram. Quem disse que no Paraíso é tudo paz e amor? Quem disse que um casal feliz não tem seus dias de guerra? Saber viver, desfrutar os lugares, caminhar sem medos - esses e mais mil outros serão os grandes desafios que o Rio de Janeiro propõe aos cariocas, nativos e perfilhados, vencer. Sem medo de ser feliz. Exemplo cabal é este Ivo Korytowsky que se dedica de corpo e alma a espelhar e espalhar o Rio de Janeiro mundo afora. Mas tudo isso só ocorre depois de se fazer o imprescindível juramento de amor e fidelidade, que nem mesmo a morte há de separar. Abração!
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