fui parar na capital paulista |
A convite de uma tia residente em São Paulo ––acompanhando minha mãe, em
1946, fui parar na capital paulista. Na época, note-se, ainda não
quatrocentona.
A família Gonçalves Biar - moradora em apartamento na esquina da então
verdejante Praça da República - acolheu-nos com a simpatia e elegância de
sempre e minha discreta suburbanice recebeu um primeiro lustro civilizatório. A
chefe do clã, minha tia, era a viúva Etelvina Gonçalves Biar. Seus filhos, Waldemar, Beatriz, Olga, Célia
e Rubens, o caçula - os três primeiros então casados. Na época eram ainda
jovens e, exceto Rubens, já próximos à fronteira dos 30 anos. Com tia Etelvina
morava, além de Rubens, estudante, Célia Biar, solteira, que, mais tarde viria
brilhar nos palcos e na Televisão. Na época, Célia -excelente desenhista -
trabalhava com a irmã na seção de modas de uma revista feminina.
São Paulo, para mim, tornou-se, então, a terra povoada pela inteligência
e pela cortesia. Fomos tratados com fidalguia e carinho.
Fazendo sua parte, Rubens incorporou o cicerone. Levou-me para conhecer a
cidade, bairros e jardins, não apenas as deslumbrantes Avenidas Ipiranga e São
João, com o Martinelli, pomposo e grande, disputando com o carioca edifício de
A Noite, a glória de ser o primeiro arranha-céu brasileiro. Um “colosso” como
exclamativamente gostava de dizer meu pai, um admirador da engenharia. Havia,
também, a sede do Banco do Estado de São Paulo (hoje, Edifício Altino Arantes),
novo gigante da arquitetura brasileira.
Martinelli |
E ganhei autonomia para sair, pelas manhãs, sozinho (o que já fazia aqui
no Rio) a procura do que me encantasse naquela cidade fervilhante de gente!
Sem dinheiro franqueado, caminhava a pé, a melhor forma de se conhecer um
espaço urbano. O que seria aquela São Paulo? Conseguiria descobri-la? Pois, para mim, o Rio já deixara de ser
apenas São Cristóvão para ser também a cidade. Agora, cabia descobrir São Paulo
além Praça da República e sua Escola Normal.
E São Paulo era o Viaduto do Chá, coalhado de jornaleiros gritando com
sotaques italianados, japoneses sorridentes e apressados e as Estações da Luz,
Sorocabana e a Franklin Roosevelt recebendo o Trem de Aço, o veloz Santa Cruz
da EFCB que encurtara o espaço entre o Rio e a Paulicéia. O vale do Anhangabaú,
o novo Chá em concreto e ao longe, em paralelo, Santa Efigênia elegantemente
metálica, criando dois tempos tecnológicos. O Museu do Ipiranga: o orgulho de
estar em sítio tão belo da história delineado por um fiapo de água.
Estação da Luz |
Por tudo isto, revia as paisagens. Do belo apartamento de minha tia, na
esquina do Arouche, cruzava a Praça da República, vencia a Ipiranga, subia a
Sete de Abril, assumia o Chá e visitava as ruas de São Bento e adjacências, que
muito se pareciam com as do velho DF (ainda abrigado no Rio); após revisitar o
Largo de São Francisco, eu comprava – mania que conservo na velhice - em discretas papelarias cadernos de desenho,
lápis e borracha. Descia, de volta, a Líbero Badaró, de olho no grande edifício
do Mappin.
Um passeio mais distante logo aconteceu em uma tarde de sábado, visitando
o Pacaembu para ver Corinthians e São Paulo, sem opções de torcedor, para me
convencer de que aquele estádio era o mais belo do Brasil.
Pacaembu |
E nos belos cinemas da Avenida Ipiranga vi filmes americanos que
registrei em velhos cadernos, mas que hoje não mais me ocupam a memória. Lá
longe, o sagrado Jaraguá mantinha-se vigilante sobre a cidade, a urbe que
jamais admitiu uma viela, um beco sequer, com o nome do ditador Vargas.
Voltei para a terra carioca sempre me perguntando: Quando, de novo, ver
São Paulo? Até quando terei que ficar no Rio?
Porém, uma história sem imagens... Na época, fotografias eram usadas
pelas famílias para registrar datas especiais. Minha visita não era deste naipe
e, assim, não tenho nenhum registro fotográfico daquele luminoso momento em
minha vida. Apenas a memória, agora em desespero, pois fragmenta-se e não
consegue trazer nomes e imagens com a mesma precisão de outrora. Vivi a
angústia de esperar um retorno jamais alcançado. Ninguém volta ao mesmo lugar no
espaço, pois o tempo é que o realiza, avançando mais do que as lembranças.
Anhangabaú |
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E o tempo não perde tempo em responder.
Em 1951, já iniciando o Curso de Arquitetura na FNA/UB, surgiu a
oportunidade de rever a pauliceia.
Através do trabalho de Raphael Matheus Peres, colega de turma e nosso
representante, conseguimos os favores de nosso mestre Júlio Cesar de Mello e
Souza, o Malba Tahan dos contos árabes
e mago das Matemáticas, para nos patrocinar uma visita à Primeira Bienal de
Artes na Pauliceia.
A exposição estava fragmentada em diversos edifícios e áreas da cidade, o
que nos obrigou a deslocamentos interessantes e descobertas de que, em São
Paulo, fazia-se arquitetura. Moderna.
Moderníssima. Enquanto, no Rio, só nos salvavam o Ministério da Educação,
a ABI e a Estação de Hidros...
em São Paulo, fazia-se arquitetura |
Voltei para o Rio em companhia dos colegas, todos nós inoculados pela
Arte. Boa parte deles, por terem um sedimento cultural maior do que o meu,
crescidos na escalada da cultura, como João Filgueiras Lima – o Lelé, Ruben Mauro
Ludolf, Elder Rocha Lima, Liberal de Castro, Raphael Perez, Jaci Hargreaves,
Reynaldo Fânzeres e outros, muitos outros.
Temos imagens, desta vez.
São Paulo crescera, ganha uma fisionomia mais urbana e impunha-se como
uma cidade cuja escala ainda não fora encontrada. E, tal como hoje, oferecia um
assustador horizonte de prédios amontoados.
assustador horizonte de prédios amontoados |
Posso jurar que voltei ainda carioca, sempre carioca. Mas outro
carioca...
Retornamos com a FNA a São Paulo na segunda Bienal, já no Ibirapuera e
desta vez, comemorando o 4° Centenário da Cidade e, empolgados, vimos a obra de
Oscar recém acabada, suas arrojadas marquises, suas rampas e o desfio de um generoso espaço moderno a nos revelar Calder, os
nossos Portinari e Guinhard e, para espanto geral, o fabuloso mural de Pablo
Picasso: a Guernica.
Outras vezes retornei à pauliceia, cada vez mais desvairada e grandiosa.
Mas em minha mente guarda-se um craquilé de formas e cores e de
progresso. Passo na velha Praça da República e não mais vejo as belas árvores e
canteiros. Sou esmagado pela imensidão da Paulista e seus múltiplos gigantes de
concreto e aço. Deslumbro-me com o MASP
e o ousado espaço conquistado por Lina Bo Bardi.
Deslumbro-me com o MASP |
Curvo-me e respiro a densa névoa de uma garoa que já não se faz sentir.
Volto às minhas amadas montanhas, às praias ensolaradas, onde o mar me
sussurra que estou em outro lugar, outro povo, outro pensar..
2 comentários:
Belo texto , como sempre!
AMEI!! É COMO SE A GENTE VIAJASSE COM ELE. MESMO QUE EU NÃO CONHEÇA SAMPA
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