O texto a seguir, de Selma Caetano, foi extraído do folheto da exposição O Cronista Graciliano no Rio de Janeiro, exibida de 14/2/15 a 31/5/15 (embora o folheto indique 19/4) no Arte Sesc, da qual ela foi curadora e produtora executiva. Ilustrações também extraídas do folheto.
Homem de temperamento reflexivo, o romancista Graciliano
Ramos escondia, sob a aparência discreta, uma grande agitação interior.
Andarilho obsessivo, em suas lentas caminhadas pelo Rio de Janeiro fisgou a
alma da cidade.
Os 450 anos do Rio de Janeiro proporcionam excelente
oportunidade para um reencontro com o cronista Graciliano Ramos, que tão bem
compreendeu as contradições da cidade, retratando-a para além das aparências e
dos clichês.
A vocação de grande observador já se expressa nas cartas que
envia para a família em sua primeira passagem pela cidade, nos anos 1914 e
1915. Aos 21 anos de idade, Graciliano decide deixar a pacata Palmeira dos
Índios, e embarca no navio Itassucê para uma viagem rumo à então capital do
país. Aqui chegando, hospeda-se em uma pensão na Lapa, o tradicional bairro
boêmio, e o "medonho barulho da rua" o endoidece. Emprega-se como
revisor na imprensa carioca, mas não se adapta à rotina ruidosa dos jornais e à
vida literária do Rio de Janeiro da Belle Époque, onde “o pobre diabo
que for tímido, que não declarar que é um gênio, é uma criatura morta”.
Decepcionado, o rapaz da província retorna a Alagoas no ano seguinte.
A primeira e curta permanência de Graciliano no Rio é
decepcionante, mas não sem proveito. É do Rio a inspiração do enredo do romance
Angústia, de 1936. Mais tarde,
recordou: “A pensão do largo da Lapa está em Angústia. Dagoberto foi meu vizinho de quarto”. A agitação da
cidade refina sua alma de cronista e exacerba seu espírito critico.
Vinte e dois anos depois, em 1936, já com dois romances
publicados e um terceiro a caminho, Graciliano retorna ao Rio de Janeiro.
Viaja, dessa vez, a bordo do navio-prisão Manaus, sem pagar passagem,
carregando a acusação de ter participado do levante comunista de 1935. Logo
depois do desembarque, é levado para a
Casa de Detenção da rua Frei Caneca, no Catumbi. Se chega contra a vontade,
quando em liberdade aqui permanece até a morte.
Escreve Vidas Secas em um quarto de pensão, no
Catete. Dois anos depois, muda-se para uma agradável rua do bairro da Lagoa e,
logo em seguida, para um modesto apartamento na Tijuca, onde publica Infância.. Mora, ainda, em um edifício
de dois andares, em Laranjeiras, onde começa a escrever Memórias do Cárcere,
sobre os horrores vividos em 1936 no presídio da Ilha Grande. Muda-se, por fim,
para o Leblon. Falece, aos 60 anos de idade, no ano de 1953, numa casa de saúde
situada na Praia de Botafogo.
Crônicas, compostas nesses dois diferentes momentos, expõem
a convivência de Graciliano com o Rio de Janeiro. Ainda que deixando de lado a
ficção, ele escreve, com a força de seu estilo, exatamente sobre o que vê.
Adota como motivos de reflexão temas do cotidiano, banais porém carregados de
história e das contradições humanas — como um passeio de bonde [crônica que você pode ler clicando aqui], um nome de rua,
uma música de carnaval [leia aqui]. E ainda a Livraria José Olympio, tradicional ponto de
encontro dos intelectuais cariocas entre os anos 1930 e 1940. Por meio das
crônicas e também dos discursos políticos, pronunciados em diferentes espaços
da capital e publicados na imprensa comunista, desenha um retrato da vida
social, a um só tempo curioso e denso.
Em carta que envia à irmã Otacília, na primeira ida ao Rio,
em 1915, Graciliano revela sua admiração pela beleza da cidade, num passeio
pelo morro do Castelo, que seria destruído em 1921:
São duas horas da madrugada.. Venho de um magnífico
passeio ao morro do Castelo, onde estive a admirar lá de cima as belezas do
Rio. O panorama era delicioso. A cidade ficava-nos mesmo por baixo dos pés. O
Rio, à noite, é sublime. O monte por onde andamos, a galgar muros, a segurar
arames, para não cair, fazendo exercício de dançarinos de corda bamba, é o que
se pode desejar de pitoresco — ruas velhas, sujas, de calçamento reles; casas
caducas, sem platibanda, baixinhas, como as da roça; prédios em ruína, de
construção colonial; grupos de mulheres do povo a palrar, gritando, pelas
calçadas, os braços arregaçados; cabras e cães soltos pelas ruas. Uma delicia!
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